28 maio 2008

ecce homo

Foi inaugurado ontem um monumento para lembrar os homossexuais perseguidos pelo III Reich. Já vem tarde, e vem - em minha opinião - mal: porquê lembrar apenas os homossexuais perseguidos pelos nazis, se depois da guerra continuaram a ser perseguidos?
Delimitar a perseguição à época nazi torna-a um fenómeno ultrapassado, um problema "deles".

Venha, pois, um centro de documentação como existe no Memorial do Holocausto.

Um jornal berlinense, o Tagesspiegel, tem na sua edição de 24.05.2008 um artigo muito informativo, com o título "Ecce homo".
Aqui vai um pequeno resumo (o artigo completo, em alemão, está aqui):

Quando, em 1992, se começou a falar na construção de um memorial do Holocausto, surgiu também a ideia de algo semelhante para lembrar a perseguição aos homossexuais. Contudo, aquele ainda não era o tempo certo para lembrar todos os grupos perseguidos. Só em 2002 é que o Parlamento pediu desculpa às vítimas homossexuais e anulou os veredictos da justiça nazi. O problema é que muitos homossexuais sobreviventes dos campos de concentração foram, depois da guerra, reenviados para a prisão para cumprirem o resto da pena. A lei alemã do pós-guerra continuou a criminalizar a homossexualidade, tal como fazia desde 1871, e o o parágrafo 175, que os nazis tinham tornado ainda mais duro, não foi modificado. Entre o fim da guerra e 1969, ano em que esse parágrafo foi retirado, dezenas de milhares de homossexuais foram condenados. A Polícia abriu mais de 100 000 processos, 50 000 pessoas tiveram pena de prisão. Criaram-se "listas cor-de-rosa", polícias espiavam casas de suspeitos e escreviam protocolos sobre quem entrava, quem saía, e quanto tempo ficavam. Na era Adenauer muitas pessoas foram presas no local de trabalho - e mesmo que o caso não chegasse a uma condenação em tribunal, a fama da pessoa estava arruinada, o despedimento era provável.
Em 2002 o Tribunal Constitucional afirmou que a existência de casais homossexuais não é anticonstitucional, criando uma situação paradoxal: na Alemanha vivem pessoas com cadastro criminal devido a homossexualidade, que podem oficializar uma relação homossexual protegida pelo Estado.

Embora o texto da lei fosse semelhante no período nazi e no pós-guerra, as consequências eram bem diferentes.
No III Reich os homossexuais corriam risco de vida. Considerados inimigos do Estado, porque não cumpriam o seu papel de procriadores, estavam sujeitos a condenações que iam desde a pena de morte até à imposição de se sujeitarem "voluntariamente" a uma castração. Já em 1933 começaram a ser enviados homossexuais para campos de concentração. Muitos não sobreviveram às condições de vida no campo, outros foram vítimas de acções de execução, tais como, em 1942, 200 prisioneiros de Sachsenhausen, mortos "quando iam a fugir".
[complemento da tradutora: Muitos foram também sujeitos às selváticas experiências de médicos que queriam descobrir mais sobre a "doença" e possíveis "terapias".]

Contudo, mesmo nas décadas mais recentes, parece haver resistências a lembrar as perseguições aos homossexuais.
Em 1979, a empresa de transportes públicos de Berlim tentou por todos os meios evitar a afixação de uma placa no edifício do metro na Nollendorfplatz. Só dez anos mais tarde o poder político conseguiu impor a afixação, onde se lembra essas pessoas, "atingidas por um golpe de morte, rodeadas por um silêncio de morte".
Em 1985, a comunidade do campo de concentração de Dachau recusou a proposta de fazer uma placa que lembrasse os homossexuais perseguidos naquele campo, mesmo apesar de o presidente da República, Richard von Weizsäcker, ter referido essas vítimas no discurso proferido esse ano, por ocasião do 40º aniversário do fim da guerra.

O monumento em Berlim aparece incrivelmente tarde, pesem embora as palavras de apoio recebidas de importantes personagens, tais como Lea Rosh, Paul Spiegel (na altura representante do Conselho Central dos Judeus na Alemanha), Günter Grass e Christa Wolf, além de inúmeros políticos. "Poderia forrar todas as minhas paredes com o papel das cartas de apoio recebidas", diz Eckert, o dinamizador desta iniciativa, "mas as acções só vieram da parte de políticos declaradamente homossexuais".
Para Eckert, isto é um sintoma: já não existe antipatia aberta contra a homossexualidade, mas ainda falta a coragem de afirmar.

Também houve conflitos: Alice Schwarzer e a redacção da revista Emma protestaram contra o monumento, onde se passa um filme que mostra dois homens a beijar-se, alegando que mais uma vez se esquecem as mulheres.
Na realidade, o parágrafo 175 referia-se aos homens. Só estes foram perseguidos até à morte pelos nazis. As mulheres, embora sujeitas a dificuldades e perseguições, foram-no em muito menor grau, porque a orientação sexual não punha em risco a sua condição de reprodutoras.
Rapidamente se arranjou um compromisso: o filme será mudado de dois em dois anos, e de cada vez se discutirá novamente qual é o filme mais adequado para o momento.

A RDA retirou o parágrafo 175 em 1968; a Alemanha Ocidental fê-lo em 1969, mas foi preciso esperar mais quatro anos para que um vento de emancipação dos homossexuais varresse este país. Começou com a exibição, num dos canais estatais, de um filme de Rosa von Praunheim, com o título "O Homossexual não é perverso, perversa é a situação em que vive". Continuou com a realização de demonstrações que acabaram por se cristalizar no cortejo anual Christopher Street Day. Houve ainda, em 1983, um escândalo com um general que foi afastado do seu cargo por alegada homossexualidade, e posteriormente reabilitado.

O tema homossexualidade é cada vez menos motivo para escândalos.
Esta evolução é menos resultado do lobbyism de grupos de homossexuais, ainda relativamente fracos, que do aparecimento de uma doença mortal conhecida como "a peste dos homossexuais". Trágico, mas real: foi a epidemia de SIDA que levou os homossexuais a, mais ou menos voluntariamente, afirmar-se em público e exigir o cumprimento dos seus direitos. Num instante surgiram por todos os lados projectos de ajuda às vítimas da SIDA, e políticos que dialogavam com o mundo da homossexualidade. Em Berlim, um dos acontecimentos sociais mais importantes do ano é a Gala da SIDA, na Ópera.
Esta naturalidade está evidente também na existência da organização "Gays e Lésbicas na CDU", ou de um grupo chamado "Homossexuais e Igreja" que se apresentou cheio de auto-confiança nas Jornadas Católicas, o grande encontro anual dos católicos alemães, realizado recentemente.


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Este é o filme que vai estar em exibição permanente nesse monumento durante os próximos dois anos.
Ao vê-lo, lembrei-me do desconforto que sentíamos há trinta anos, quando apareceu em Portugal a primeira telenovela, e a sala nos era invadida com aqueles beijos de desentupir bancas que o Tonico Bastos dava à Gerusa. Quem é que hoje em dia se incomoda com os beijos da telenovela?
Quantos anos demorará até acharmos que este filme é uma banalidade sem substância para um monumento destes?

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