21 junho 2007

A Süddeutsche Zeitung é que me compreende

E aqui vai o artigo traduzido:


Crianças superprotegidas

Big Mother is watching you

Parque de aventuras? Nem pensar. A tendência para reduzir o espaço lúdico dos filhos, de forma a protegê-los melhor, acentuou-se com o desaparecimento da Madeleine.

Será que vão encontrar a menina? Os pais vão conseguir alguma coisa? Estas foram as reacções iniciais. Todos compreendiam a crise que os pais da pequena Madeleine estavam a atravessar.

Depois veio o golpe. Com toda a força. Como é que os McCann ousaram deixar os filhos sozinhos num apartamento de férias. É verdade que estavam num restaurante a apenas 50 m do apartamento, e que vigiavam as crianças de meia em meia hora. É o que eles dizem. Mas muita coisa pode acontecer em 30 minutos. Um incêndio. Um acidente. Tudo. E depois, estas ondas mediáticas. Quem pensam eles que são?

"O que aqui é importante é a incrível negligência imbecil dos pais. Nos Estados Unidos já houve pais que, por menos, perderam a custódia dos filhos e chegaram a ter um processo-crime!", critica uma mulher num blog, enquanto outra afirma: "o que estes pais fazem, deixar três crianças sem vigilância, na Califórnia pode ser penalizado como maus tratos a crianças."

A polícia e o procurador da república foram contactados, como se fosse realmente relevante os McCann serem "bons" ou "maus" pais. Por vezes, as reacções pareciam parte de um ritual de exorcismo para afastar os perigos que poderiam atingir os nossos próprios filhos. Como o "terceiro olho" contra o mau-olhado que, na Ásia, algumas mães pintam nos filhos recém-nascidos: vejam, eu sou uma boa mãe, eu sou um bom pai, eu nunca deixarei os meus filhos sozinhos, e por isso nunca lhes acontecerá algo de mal.

O desaparecimento de uma criança é um dos maiores medos dos pais. Mas os fortes ataques aos McCann são indício de algo diferente. Por coincidência, ocorreu por estes dias um encontro entre pedagogos e sociólogos na Universidade do Kent, para reflectir sobre a vigilância paternal em tempos de "educação intensiva de crianças".
Frank Furendi, um dos participantes, não se mostrou nada surpreendido com as reacções. Desde que, há alguns anos, editou o livro "A Paranóia dos Pais", tem observado como a situação está a piorar. "Não podemos tornar cada criança e cada adulto refém de um worst case scenario", diz ele. "De momento, damos sinais de que os adultos são tão pouco dignos de confiança, que a Polícia tem de vigiar todos. É isso o que as crianças aprendem, o que é uma tragédia muito maior para o país que o rapto de uma criança. Se toda a nação for dominada por esta cultura disfuncional e desorientada, isso terá consequências esmagadoras."

Pode parecer insensível. Mas Furendi acusa uma tendência que se está a desenvolver não apenas nos países anglo-saxónicos. Os pais já não pesam os riscos, nem ponderam entre o que os filhos já são capazes e o que ainda é demasiado arriscado. Consideram desde logo o pior possível que pode acontecer, o worst case, e procuram evitar todos os riscos.


A segurança absoluta não existe. E conduz a cuidados exagerados, que não consentem nada às crianças, que não as deixam nunca longe da vista, não as deixam tornarem-se independentes. Uma mãe inglesa foi no seu próprio carro atrás do autocarro que levava o seu filho para o campo de férias.

A vigilância pode durar até as crianças chegarem à idade adulta. Nos EUA chama-se "helicopter parenting" ao fenómeno de pais que vigiam os filhos até eles entrarem no College. Richard Mullendore, professor de Pedagogia, comenta que o telemóvel se tornou o maior cordão umbilical do mundo. Quem se admira ainda que nos telemóveis das crianças sejam integrados emissores para vigilância. Como afirma uma mãe, estes emissores permitem às crianças tornarem-se de novo livres, porque já não é preciso andarem sempre acompanhadas por um adulto.

É o medo que leva a isto. Um medo que já não é propriamente racional, o medo da morte súbita infantil, da comida pouco saudável, dos parques infantis sem segurança, e até da própria família, já que a maior parte dos casos de abuso ocorrem dentro da família. E é sobretudo o medo do mundo lá fora, dos desconhecidos, ou seja, dos adultos.

Esta desconfiança em relação a todos os adultos leva ao fim da solidariedade social, que até agora permitia que os pais deixassem os seus filhos sair em liberdade, seguros de que outros adultos estariam atentos. Se hoje alguém na IKEA se curvar para uma criança que chora e que talvez se tenha perdido da mãe, corre o risco de ser confrontado com uma mãe fora de si a tentar afastar um possível raptor. Por seu lado, os professores temem que, por consolarem uma criança com um abraço, sejam acusados de pedofilia.

De facto, os casos trágicos como o do desaparecimento da Madeleine continuam a ser tão raros como no passado. Em contrapartida, os cuidados de segurança tomaram proporções obsessivas. As crianças são levadas de carro para todo o lado: para o play date combinado há semanas, para o desporto, para a lição de piano. Na Inglaterra, ainda em 1971, oito em cada dez crianças iam sozinhas para a escola; hoje em dia é apenas uma.

Um relatório do "Children’s Play Council" concluia já nos anos 90 que muitas crianças se tornaram prisioneiras na sua própria casa. Na Alemanha, o raio de acção de crianças da escola primária (ou seja, o círculo no qual se movem livremente) reduziu-se desde os anos 70 de 20 km para 4 km. Cada vez há menos crianças autorizadas a brincar sozinhas fora de casa. Os pedagogos falam de uma "infância tornada ilha", quando as crianças já não têm acesso a jardins abandonados, aterros lamacentos, cabanas e grutas plenas de segredos e aventuras. Agora, sentam-se em frente ao computador. E tornam-se obesas. E solitárias.

A forte ocorrência nos EUA, na Inglaterra e na Austrália deste fenómeno de pais demasiado cuidadosos, já com laivos de histeria, pode talvez ser explicada pela confiança que nesses países se dá à "meritocracia", ou seja, a crença de que qualquer pessoa pode subir na vida a partir unicamente do seu esforço. O que significa, inversamente, que os pais, e só os pais, são responsabilizados se o filho não consegue atingir aquilo que devia: a melhor universidade, o melhor escritório de advogados, o posto mais alto. Os pais apoiam e exigem e vigiam. Tempo para brincar é tempo perdido. Rapidamente se considera desleixada uma família cujas crianças andam na rua.

E a "indústria da segurança infantil", para usar a expressão de Furedi, reforça a insegurança dos pais. Os pedagogos e os profissionais terão transformado cada aspecto da educação num problema. "Tentou-se profissionalizar a vida da família".Porque todos os pais têm primeiro de aprender a ser pais, o Estado acredita que tem a obrigação de ensinar. E esquece que uma das aquisições humanas é a capacidade para aprender com a experiência e os erros. A improvisação já não interessa, tal como o deixar andar e o deixar ir.

Nos EUA, "O Livro Perigoso para Rapazes" faz de momento furor. Mostra como se fazem aviões, se caça coelhos e se lança pedras com uma fisga. Tudo sob vigilância paterna. "Nós costumávamos chamar a isto brincar", resume um pai, "mas hoje dá a sensação de se tratar de deveres."


(SZ de 15.6.2007)

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