25 janeiro 2007

jogar a feijões

Já que andam todos a falar disso, não quero perder esta oportunidade de vir debitar também os meus disparates, porque não sou menos que os outros...

Ora então: no dia 11 de Fevereiro vamos a referendo.
Se ganhar o sim, fica tudo mais ou menos como está, com a diferença de se resolver um grave problema de higiene pública.
Se ganhar o não, fica tudo mais ou menos como está: quem tem dinheiro, vai a um médico no estrangeiro, e quem não tem, paciência - fizeste-o, desenrasca-te.

Andamos muito entretidos a jogar a feijões, não é?

***

Se me deixassem mandar (agarrem-me, que eu...)
fazia assim:

Primeiro mudava o artigo 140º do Código Penal.
Deixava a parte sobre a pena da mulher como está, e acrescentava mais uma pena para o pai biológico que não respeitasse o previsto num regulamento que estipularia, nomeadamente:
- a criação de um registo do ADN de todos os homens residentes em Portugal;
- a criação de um Centro de Prevenção de Aborto ao qual a mulher que quer abortar se dirige, e que a obrigará (obrigará!) a levar a gravidez até ao fim, com a garantia de que, a partir do parto, é o pai biológico que se responsabiliza integralmente pela criança (e isto quer dizer: é o pai que fica em casa, que lava a criança, que lhe dá o biberão, que a embala nas noites de cólicas, que a leva ao médico, que lhe vigia os primeiros passos, etc.);
- a identificação, via ADN, do pai do recém-nascido, e a entrega imediata do bébé ao pai biológico (na melhor das hipóteses, o companheiro da mãe). O qual, se não aceitar a criança, fica sujeito à mesma pena que a mulher receberia por abortar.

E depois, fazia um referendo: concorda que a mulher pode realizar um aborto a pedido, e que o pai biológico pode furtar-se, de forma sumária e com a máxima discrição, às suas reponsabilidades?

Era giro, não era?
Deixem-me delirar, que me está a saber muito bem.

Deixem-me imaginar um polícia a tocar à campainha do pai de família, e a entregar-lhe um filho da puta perante o olhar esgazeado da honesta esposa e do casalinho de filhos planeado e legal. O ar estarrecido da mãe do adolescente que se adiantou com aquela serigaita da turma dele. A cara do padre. A cara do menino que se estreou na sopeira, entretanto despedida (e a cara de alívio do pai, "ai que podia ser meu..."). Uma sociedade a inventar novos nomes de escárnio: galdério, vai-com-todas, pai solteiro, badalhuôco e, cúmulo do insulto, penis-driven.
Deixem-me imaginar na Alemanha os chefes das empresas sem saberem qual será o maior risco: empregarem um homem em idade fértil (dos 9 aos 99, digamos) ou uma mulher em idade fértil. As reuniões de chefias "eh, pá, temos de deixar de meter homens na empresa, que eles são uns esquisitos, sempre a faltar por causa dos filhos, sempre a pedir regimes especiais de horários..." - hehehe, desculpem, mas este cenário dá-me muito gozo.

Como seria um mundo em que uma gravidez indesejada fosse um problema muito maior para o homem que para a mulher?

Eles passavam a andar, literalmente, encolhidos. Inventavam um cinto de castidade com sistema de abertura retardada.
Deixavam-se de bazófias ("ai, filha, camisinhas não é comigo") ou, para citar uma lamentável expressão, já não se riam sobre "o tradicional conflito de interesses entre o grelo e o útero", porque estariam demasiado ocupados a gerir o trágico conflito de interesses entre o pénis e o útero.
De uma penada, os factos arrumavam definitivamente com a dupla moral e a arrogância dos moralizantes.
E no dia 11 não faltaria um único eleitor a votar - porque se trataria de um assunto que poderia doer a todos.
Se o "não" ganhasse, isto sim, era uma revolução!
(Mas é claro que, se as regras fossem estas, o "sim" teria uma vitória retumbante)

Bem, isto sou eu a delirar.
E desculpem, já passou.
(Mas foi muito bom)

***

Agora, a sério:

1.

Haverá quem pratique o aborto como método anticoncepcional?
Contaram-me que, na católica Polónia, muitas mulheres optam por abortar em vez de tomar a pílula, devido a cálculos simples de álgebra do pecado: um aborto dá um ou dois pecados por ano, a pílula dá quase trezentos.
Alguns blogues portugueses referem o fenómeno: o Pedro Caeiro diz que conhece vários casos, a Susana afirma que "as pessoas sabem que fazer um aborto não tem mal", o Lutz critica a vontade de culpabilizar os outros - como se houvesse mulheres que fazem um aborto sem sentir qualquer espécie de culpa.

Pessoalmente, uma tal realidade surpreende-me e choca-me: trata-se de uma minoria? trata-se de uma patologia?
Bem sei que não me compete fazer lavagens a cérebros alheios. Limito-me a resolver para mim que teria muita dificuldade em identificar-me com uma sociedade que banalize o aborto como um mero método anticoncepcional.
(Do mesmo modo que não me identifico com uma sociedade presa do lixo televisivo, agarrada à segurança dos consumos de marca, sôfrega de juventude, e etc. - irrita-me, mas vou ficando por aqui. De onde se conclui que eu, pecador me confesso, também sei jogar muito bem a feijões...)

Contudo, penso que não é o que está em causa em Portugal.
E mesmo se fosse: de que modo se actua (e deve-se actuar?!) sobre semelhante fenómeno de mentalidades? Não será, com certeza, com uma pena de prisão até 3 anos.


2.

A partir do que leio e ouço, concluo que a maior parte das mulheres conhece a diferença entre o valor simbólico de um embrião e um quisto no útero e que, quando essa questão se coloca, a decisão de abortar é uma das mais difíceis da sua vida. Elas saberão das razões da sua escolha.
E nós, que pretendemos desenhar a actual sociedade portuguesa, sabemos das nossas? Penalizando a mulher que aborta, estamos a forçar o nascimento de uma criança em circunstâncias adversas. Queremo-nos responsabilizar por essa criança que foi desejada pela sociedade, mas não pela mãe?
Aliás: a sociedade desejou realmente essa criança, ou desejou simplesmente moralizar-se?

Tem-se falado pouco sobre o facto de um embrião não abortado acabar por se transformar numa criança concreta.
É terrível para uma criança nascer de uma mãe que não a quis, ou ser entregue a um pai que nem se lembra de a ter feito, ou crescer em contextos de miséria afectiva ou material.
Se se pretende agir para evitar a morte do embrião, é fundamental ajudar a mãe, criando as condições para que o nascimento da criança seja esperado com alegria e optimismo.


3.

Considero o aborto uma tragédia.
Considero o aborto uma tragédia, mas (já cá faltava o maldito "mas") as razões do meu "não" não se esgotam na afirmação do direito à vida e do princípio da dignidade da vida humana. Se eu votar "não", interferindo assim na vida de outras pessoas, obrigo-me a ajudar cada criança que encontrar a pedir na rua, a ser mãe de fim de semana para miúdos dos asilos, a dividir o meu salário com mulheres que não têm o suficiente para criar os filhos, a adoptar o bébé de uma adolescente, de uma alcoólica, de uma toxicodependente. Etc.
Se eu votar "não" e continuar na minha vidinha de burguesa, indiferente à miséria em que crescem muitas das crianças "não abortadas", não passo de uma hipócrita.
E, pensando bem, se considero o aborto uma tragédia e voto "sim", mas não faço nada para ajudar as mulheres que se dispõem a praticá-lo, não passo de uma comodista cínica.

No entanto, não há motivo para preocupação: estamos a jogar a feijões, e por isso o 12 de Fevereiro vai ser para todos mais ou menos igual ao 10 de Fevereiro.
Porque desenhar uma cruzinha numa folha de papel não custa nada, mesmo nada. Escolhemos "não" ou "sim", e vamos para casa com a consciência do dever cumprido.
Por seu lado, as mulheres que querem abortar saberão de uma forma ou de outra resolver o seu problema.


4.

Independentemente do seu resultado, este referendo perverte a discussão sobre os bens jurídicos fundamentais. De que adianta a sociedade dizer que a vida humana é inviolável e digna de toda a protecção, se convive airosamente com situações de profunda miséria, chegando mesmo a forçá-las? Isto não é uma contradição? De que adianta abrir excepções a esse entendimento por motivos meramente pragmáticos?
E não há também uma contradição no facto de irmos votar? Votamos como se isto nos dissesse respeito, embora nos dois casos a mulher seja abandonada à sua sorte: ou penalizada à revelia das suas circunstâncias particulares, ou largada à solidão de ter de decidir entre a vida e a morte.
Não seremos capazes de fazer melhor?


5.

Uma última nota: convém não embarcar na ilusão de que uma sociedade vai ser alguma vez perfeita.
É bom que o Direito aponte uma direcção, e é péssimo quando o preço da letra da lei é pago pelos mais frágeis.
Vale para as duas escolhas deste debate, penalização e despenalização do aborto.

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