Há um ano, mais mês menos mês, comprámos uma casa centenária.
Nada como comprar uma casa velha e com inquilinos para fazer uma pós-graduação na escola da vida.
Já contei as peripécias com os inquilinos. Não vou contar as peripécias com os arquitectos. Pensando bem, conto, e resume-se a isto: amigos, amigos, negócios à parte.
E cá vão peripécias da obra:
I.
Recuperar uma casa num mundo que, até há 15 anos, estava do lado de lá da cortina de ferro, é um manancial de descobertas: os terríveis materiais usados no período comunista, a falta de cuidado na preservação da casa, a desconfiança mútua em relação às técnicas dos "Wessis" e dos "Ossis".
Ou o dia em que andei a inspeccionar as instalações sanitárias e o arquitecto criticava "esta torneira até parece trabalho de russo!" e o canalizador se defendia, olhando para mim de esguelha, "não sabia que os russos trabalham tão bem!" e eu pensava "será que o sorriso de Monalisa me está a sair bem compostinho?"
II.
O momento mais difícil foi quando descobrimos o Schwamm.
Nem sei como dizer isso em português. O Porto Editora traduz para "bicho da madeira", de onde se prova que o Porto Editora nunca comprou uma casa alemã com 100 anos e Schwamm.
É uma espécie de fungo com longas veias, que se instala na madeira e a corta em cubinhos (ok, reconheço que isto é um exagero geométrico); as "veias" vão buscar a água às partes da casa que estejam mal vedadas e alimentam assim o fungo, que se espalha pelas madeiras. Um dia a casa desaba, e percebe-se que tinha Schwamm.
Como este da foto, que só esteve activo um ano:
O electricista descobriu uma trave corroída no chão do andar de mansarda, e as obras tiveram de parar, para procurar o local onde a praga estaria activa.
Tiraram as paredes que serviam de forro do telhado, levantaram o soalho para ver o estado dos barrotes.
Um belo dia, o carpinteiro diz-me assim: "encontrámos hoje o Schwamm, e logo num sítio onde não contávamos nada com ele".
Lá estava o fungo, nojento e vivo, a destruir o chão do que será o quarto do Matthias, no vão entre a parede e o telhado muito inclinado.
E sobre o fungo, naquele sítio onde "não contávamos com ele", pairava um fantoche imundo com um sorriso trocista: um diabo.
Até esse momento, pensei sempre que não era supersticiosa.
Mas quero ver quem aguenta o sangue-frio ao descobrir um diabo trocista no sítio onde cresce, inverosímil, uma das maiores ameaças de uma casa antiga.
Disseram-me para não ligar, disseram-me para pedir ao padre que fosse benzer o edifício e encharcar o diacho em água-benta, disseram-me para perguntar aos entendidos por que motivo há 100 anos alguém se lembraria de emparedar um diabo de trapos, disseram-me para vender a casa porque só nos vai dar más surpresas, e disseram-me que até já havia um interessado em Munique.
Em desespero de causa, pedi ajuda aos amigos brasileiros. Que devia pegar numa vela branca, envolver-lhe o pé em mel, e pô-la a arder debaixo do boneco, disseram. Contudo, comentaram outros, se macumba funcionasse, os jogos de futebol na Bahia acabavam todos empatados.
Preparei a vela, mas não tive coragem de a pôr na casa, sujeita ao olhar - também trocista - dos operários. O demo continuava lá, suspenso de uma trave, e a vela continuava na nossa cozinha, indecisa como eu.
Ao fim de alguns dias o diabo desapareceu. Ninguém sabe como - às tantas, está agora a sorrir trocista numa loja de antiquário.
As madeiras foram substituídas, as paredes de tijolo foram queimadas e impregnadas para eliminar as "veias".
A casa está a ficar como nova, e linda (será preciso fazer aqui uma declaração de interesses?).
Mas ficou um sobressalto: "que mais irá-me acontecer?"
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