30 setembro 2016

karma sim, karma não

A máquina de lavar a roupa já tinha 14 anos, e continuava como no primeiro dia, parecia karma sim. Mas avariou-se, karma não. Encontrei uma máquina de lavar Bosch fantástica por 250 euros, karma sim. O Joachim pediu a um amigo que viesse ver se era caso para extrema-unção à máquina velha. O amigo veio, e ressuscitou-a. Foi-se embora todo contente, a dizer que era o MacGyver. Liguei a máquina, e... karma não. Fui comprar a tal máquina (na internet) por 250 euros, já custava 301. Comprei por 301. Duas horas depois descobri que ainda havia uma por 250. Tentei ignorar o maldito karma oscilante. Daí a uma hora recebi uma mensagem a dizer que a compra por 301 tinha sido cancelada. Anda cá, meu karma, quero dar-te um beijo na boca. E agora vê se dormes descansadinho, fica quieto e calado até a máquina me entrar cá em casa, OK?


24 setembro 2016

aconteceu em Perugia

(o milagre da máquina fotográfica de bolso)






esta cidade

Nem sei como não apanhei uma tendinite de tantas vezes que tirei a máquina fotográfica do bolso e cliquei. Quase sempre na vertical, para apanhar as sucessões vertiginosas de arcos sobrepostos entre as casas das ruas mais estreitas, quase sempre frustrada por não conseguir apanhar toda a altura da rua e os contrastes da luz. Bem me arrependi de não ter trazido a máquina fotográfica digna desse nome. É verdade que me tomaria metade da mala de bagagem de mão que trouxe para a semana, e é certo que não a levaria tão facilmente no bolso das calças, sempre pronta a disparar. Mas andei por aí descontente, sofrendo a dor de haver tanto para fotografar, e tão pouco com que fazer imagens de qualidade. Um desperdício, um desperdício. E logo com esta cidade, tão generosa.







 








 



23 setembro 2016

remendos








beleza


Percorro as cidades italianas perplexa: como é que conseguem transformar tudo em beleza?
As cores gastas, as marcas de humidade, os remendos nas fachadas, o desalinho, as ruínas, as cicatrizes do tempo - tudo. Até aquelas telhas que em Portugal se chamam francesas e são feias, até essas: beleza.


 












tudo a correr bem aqui nesta espécie de Evereste


 



No primeiro dia deambulámos sem destino pela cidade. Sem destino, é como quem diz: primeiro desesperadas em busca do pequeno-almoço, depois em busca do supermercado para comprarmos com que fazer o almoço. De caminho procurámos o atendimento Erasmus da universidade, o que não é nada fácil porque o nosso mapa é bidimensional mas a cidade é toda ó pra cima e ó pra baixo. Se nos enganamos numa rua, arriscamo-nos a baixar uns quinhentos metros, e a ter de subir tudo outra vez.

Os italianos são amorosos. Largam o que estão a fazer para nos virem explicar com toda a calma para onde devemos ir. E nós vamos, e damos connosco outra vez quinhentos metros abaixo ou acima de onde devia ser. Perguntamos de novo a alguém que passa na rua, que olha para o nosso mapa com ar de quem nem sabe que cidade será aquela, e depois de alguns momentos de hesitação nos aponta, muito convicto, um rumo. Que é errado, claro, mas nós agradecemos imenso e fazemos de conta que seguimos o seu conselho, até sairmos do seu campo de visão. Depois, já em liberdade, asneamos de novo pelas escadas e ladeiras.

Numa das faculdades vimos uma mulher com um manto a cobrir todo o corpo. Olhei com mais atenção para tentar perceber se seria um manto amigo, ou de uma muçulmana perigosa e subjugada. Afinal era uma budista, pelo que moderei imediatamente o meu olhar invasivo e despudorado com o qual pretendia proteger uma hipotética muçulmana da sua sociedade machista que não lhe tem respeito.

A seguir ao almoço fiquei em casa a dormitar em frente à televisão, tentando aliviar um sarilho de pulmões que trouxe de Portugal e é pouco adequado a estas diferenças de nível na cidade. Enquanto eu descansava, a Christina foi resolver todas as questões da universidade e visitou o apartamento do tal italiano que se anunciava como o mais bonito da praça. Não era, mas em contrapartida o apartamento é uma maravilha: numa casa com mais de duzentos anos, mesmo no centro da cidade antiga, com uma vista fenomenal para as colinas verdes à volta. Ainda nem tinham passado 24 horas de termos chegado aqui, e já a vida corria incrivelmente bem à minha filha. Vai ser um bom semestre.

No meio da minha sonolência abri um olho para a televisão, e descobri que o papa Francisco estava em Assis, que é como quem diz, ao virar da minha esquina. Pensei ir até lá, porque não é todos os dias que se encontram dois Sãos Franciscos na mesma terra, mas como a nossa semana começou de modo tão promissor, achei que há uma probabilidade bastante grande de encontrar o papa por aí, sem ter de ir a correr até à cidade vizinha. Em vez disso, fomos para um terraço ver a paisagem, a luz branca de Assis na encosta, as nuvens poderosas sobre os montes, o pôr-do-sol. Passámos por duas freiras, e olhei-as com desconfiança: que estariam a fazer aqui, em vez de estarem em Assis? Seriam muçulmanas disfarçadas de católicas? (Sim, que não há limites para a astúcia do inimigo quando nos quer confundir!)

No dia seguinte, ao sairmos de casa depois do pequeno-almoço, demos com a praça IV Novembre ainda mais fechada ao trânsito que de costume, e uma magnífica concentração de seguranças e guarda-costas. Era o presidente da República que visitava a cidade. Lá vinha ele, a sair do museu que queríamos ver nesse dia. Acenou timidamente à meia-dúzia de populares que ali estava, mas eu esqueci-me de acenar e aplaudir porque estava muito ocupada a fotografar o estilo dos seguranças para mostrar às amigas que pediram. Não as sabia tão interessadas por moda masculina, mas os seus desejos são ordens para mim.





22 setembro 2016

roteiro



É muito fácil chegar ao nosso apartamento: avança-se entre o fontanário e a catedral, chega-se a um pórtico que deve ser do Cinquecento e vira-se à esquerda, desce-se umas escadas suavíssimas em curva, outra vez à esquerda, depois à direita uns três séculos para trás, atravessa-se um túnel em abóbada sob uma insula romana, vira-se para um beco estreito e rodeado de casas muito altas, e mesmo antes de chegar ao séc. XVII ou XVIII entramos na porta para o apartamento que deve ter sido dos etruscos, e esta semana é nosso. É amoroso, com a sua mistura de arquitectura moderna e pedras milenares, mas a verdade é que na primeira noite, na cama junto a um arco baixo de tijolos, sob as faixas paralelas abobadas, pensei que se houver um terramoto por estes dias ainda vou parar a um estudo de estratigrafia arqueológica, com o nome de "velha etrusca".  

A Christina disse que não vai haver terramoto nenhum esta semana, de modo que parece que ainda não é desta que me torno famosa.

  

 












20 setembro 2016

prazenteiramente

No autocarro que nos levava do aeroporto para a cidade, a minha filha disse-me "bem-vinda!" na língua local. Quase nem reparei, porque estava a ver um rapaz que passava numa Vespa, e a sentir que era um belo cartaz de boas vindas.
O segurança do café da estação tinha ar de modelo, e um fato de corte elegante e cair perfeito.
Enquanto esperávamos o dono do apartamento airbnb, junto ao fontanário da praça principal, observámos divertidas os estudantes sentados em grupos nas escadas da catedral, tipo anfiteatro medieval. Um rapaz veio conversar com a Christina, por causa da guitarra dela, e combinou encontrarem-se hoje para cantar juntos.
No restaurante - no restaurante de comida deliciosa! - à pergunta "podemos pagar?" o dono respondeu, com uma piscadela de olho, "só se quiserem", e depois foi todo contentinho contar a piada a outro cliente.
Em casa, a Christina começou a combinar visitas para encontrar um quarto de estudante. Perguntou a um dos contactos como o podia reconhecer no local combinado, e ele respondeu: "vou ser o italiano mais giro que está lá".

Estamos em Itália,

Temo que durante esta semana os meus post se tornem um pouco, como direi, prazenteiros.

19 setembro 2016

um país de mirones

Na altura do escândalo Clinton/Lewinsky, odiei que me tivessem contado uma anedota sobre um charuto, porque foi assim que fiquei a saber algo sobre o Clinton que não era da minha conta. Hoje em dia, é normal fazer piadas sobre o Clinton e os charutos - tornámo-nos todos desavergonhadamente mirones, e ainda temos o desplante de afirmar que quem está mal é o Clinton. O "livro proibido" que nos deixa espreitar pelo buraco da fechadura para a intimidade de terceiros banaliza a devassa da privacidade. O país vai desatar a fazer piadinhas e alusões torpes, como se ser mirone fosse socialmente aceitável e até louvável.

Quando eu era nova, os mirones escondiam-se nas dunas para gozar o panorama. Patetas! Hoje em dia, em nome da liberdade, já não precisam de se esconder nas dunas, e até podem tirar fotografias e publicar. Quem não quer ver o seu retrato no jornal, não vá à praia...

Queremos viver numa sociedade de mirones? Eu não quero. Ponho-me no lugar dessas pessoas cuja privacidade é devassada, ou no lugar de algum familiar muito próximo, e fico revoltada com este enxovalho absolutamente gratuito. Isto não é uma sociedade civilizada, é uma sociedade que aceita que alguns façam um lucro fácil por conta de espectáculos indecorosos à custa do bom nome de pessoas concretas.

Os políticos, como todas as outras pessoas, têm direito à sua privacidade. Tem de haver motivos fortíssimos de interesse público para ofender esse seu direito de personalidade. Esses motivos têm de ser escrutinados antes de publicada a devassa, e não depois.


16 setembro 2016

amos e criados



Cada um faz de criado dos senhores que pode: o Durão Barroso foi o anfitrião do encontro que lançou a invasão do Iraque, o Passos Coelho vai apresentar o livro do grau zero da decência em Portugal.


chibo, coscuvilheiro, bisbilhoteiro, intrigante, intriguista, mexeriqueiro - noutro registo: ignominioso, abjecto, afrontoso, aviltante, desonroso, indecoroso, infame, oprobrioso - em última análise: lesa-pátria




Lembram-se daquele episódio deplorável que envolveu uma revista criada especialmente para mostrar imagens muito íntimas de um arquitecto importante da nossa praça? Foi em fins dos anos oitenta, e pelos vistos na época nenhum órgão de informação se queria sujar com essa ignominia. Na altura, até tínhamos vergonha de falar disso. Alguém comentou que tinha visto o artigo, e que se sentia sujo por ter visto o que não devia ver. Muitos anos mais tarde, ouvi uma insinuação de que aquilo não era um mero ataque ao arquitecto, era um aviso a algum poderoso sobre o que lhe podiam fazer a ele. Seria?

Lembram-se do caso Clinton/Lewinsky? Nunca percebi porque é que o Clinton não disse logo à entrada "tenham paciência, mas a minha vida privada não vos diz respeito, e por isso não vou responder a essas perguntas". Podia ter perdido a presidência, mas salvava a sua dignidade e desenhava uma fronteira clara sobre o que se pode exigir a um político. Em vez disso, o mundo inteiro andou a debater publicamente e sem qualquer pudor os detalhes da vida sexual de um homem. Como é possível as pessoas espreitarem as camas alheias com óbvio gozo achando-se simultaneamente bastiões da moral?

Entretanto, o nosso sentido de decência vai sofrendo constantemente novos rombos. Já chegámos aos telefonemas privados (conseguidos por escuta e ao abrigo do segredo de Justiça) transcritos em jornais e divulgados no youtube. E se tivessem revelações bombásticas, que eventualmente justificassem a obrigação jornalística de informar... mas nem isso. Pura coscuvilhice e prazer de enxovalhar as pessoas.

Nos dias que correm, é normal no nosso país fazer impunemente insinuações sobre "saber-se coisas" da vida das pessoas, revelar nas entrelinhas detalhes da vida privada que não deviam ser da conta de ninguém, devassar abertamente a privacidade dos políticos. Serão avisos aos poderosos, ou até já a própria prática da chantagem? E, se o forem: queremos realmente ser cúmplices deste jogo que torna os nossos políticos reféns de coscuvilheiros e chibos indecorosos, ao serviço de sabe-se lá que obscuros interesses?

Tal como fiz na altura do processo Clinton/Lewinsky, não quero saber um único pormenor do que está no livro do José António Saraiva. Os artigos de João Lemos Esteves e de João Pedro Henriques chegam bem para ter uma ideia do nível dos conteúdos, e para querer evitar a todo o custo o contacto com a imundície que vai na cabeça do seu autor.

Não vou ler o livro, e é isto que pensarei das pessoas que o comprarem ou lerem: gente sem sentido de honra nem decência, que tira prazer de espreitar camas alheias, que não se importa de ser cúmplice num enxovalhamento aviltante dos mais altos representantes de Portugal, que se está nas tintas para a necessidade de garantir aos políticos um ambiente público baseado na confiabilidade, no respeito pelos mais elementares direitos humanos, e na decência. Gente que, pelo mero prazer de cuscar a privacidade alheia, participa em processos que podem tornar os nossos políticos reféns de pessoas sem escrúpulos, oferecendo a estas um poder  profundamente antidemocrático.


13 setembro 2016

parábola

Respondeu-lhe Jesus: o reino dos céus é comparado a uma mulher que, ao saber que o preço de um carro alugado cinco semanas na época alta ia para cima de 1200 euros, emprestou um carro à sua amiga e não aceitou dela um único tostão. Então aquela amiga, prostrando-se, a reverenciava e muito agradecia. Encontrando-se as duas, porém, a beber um café no momento da devolução do carro, passou uma cigana e pediu uma esmola, e a que acabara de louvar a generosidade da amiga pôs automaticamente cara de "não me incomode". A amiga que emprestara o carro deu também uma esmola à cigana, e continuou a falar como se nada se tivesse passado. Nem exigiu à outra 1200 euros pelo aluguer, nem nada.

Moral da história: há ateus (ou agnósticos, outro dia pergunto) que fazem parábolas ainda melhores que as que os evangelhos contam.

(Estou a morrer de vergonha desse euro que não dei.)


11 setembro 2016

onde estava no 11 de Setembro de 2001?

Já contei tantas vezes estas histórias, que temo que elas se comecem a contar sozinhas. Para quem ainda não as conhece, cá vamos nós outra vez:

Em 2001 vivíamos em San Francisco. No dia 11 de Setembro fomos acordados pelo  meu sogro, que nos ligava da Alemanha, a dizer que os EUA estavam a ser atacados. Em San Francisco era ainda madrugada, em Nova Iorque passava das nove da manhã, as duas torres já estavam a arder.
Corremos para a televisão, ligámos duas lado a lado, hipnotizados.
O Joachim telefonou à escola, e a directora pediu que levássemos os nossos filhos, porque queriam falar com eles sobre o que estava a acontecer.
Eu não fui trabalhar. Fiquei em frente à televisão o dia todo, a assistir em directo àquele horror em bruto, agravado pela repetição frequente de uma sequência odiosa de imagens: mostravam as pessoas em queda livre, e a seguir um grupo de palestinianos a aplaudir alegremente. No próprio dia 11 de Setembro vi essa sequência dezenas de vezes.
Quando fui buscar os miúdos à escola, a meio da tarde, no "livro de bordo" havia um recado da directora: "Em nome do futuro e da paz, contem às vossas crianças como é a vida dos palestinianos. É preciso andar nos mocassins dos outros para os entender."

Na quinta-feira seguinte houve uma cerimónia ecuménica no City Hall. Representantes de todas as religiões iam fazendo as suas orações e apelos, até que o Reverendo Brown, de uma Igreja Baptista, começou: "quando eu era pequeno e me ia queixar à minha mãe porque a minha irmã me batera, ela perguntava-me o que é que eu tinha feito à minha irmã. Que fizeste tu, América? Que tens andado a fazer, AmééériiiccccCCCCAAAAAAAAA?" - e por aí fora. A praça aplaudiu, entusiasmada (já disse que estava em San Francisco?), mas hoje penso que aquele discurso foi completamente descabido. O país em choque, ainda sem saber sequer quantos mortos teria havido, e ele a confundir vítima e criminoso.

Entretanto já começara a haver ataques a mesquitas e centros muçulmanos, e formaram-se piquetes de cristãos para fazer escudos humanos nesses locais.

Depois, foi o que se viu: os ataques de antraz, o atirador de Washington DC, os boatos (o próximo alvo é a Golden Gate Bridge! Roubaram os planos de abastecimento de água da Bay Area! Em Stanford há bactérias em quantidade suficiente para matar todos os californianos!), o medo servido em doses cavalares nos jornais e nas televisões. O PATRIOT ACT, Guantanamo, as invasões do Afeganistão e do Iraque. E o Donald Rumsfeld a chamar "danos colaterais" aos civis mortos pelo exército americano. ("Danos colaterais"! Que fizeste tu, América? Que tens andado a fazer, AmééérrrriiicccaAAAAA?)

As primeiras bombas que anunciavam a desestabilização da "pax americana" no Iraque foram notícia de primeira página e abertura de telejornal. Pouco depois deixaram de ser notícia. Ficamos a saber dos horrores pelos refugiados iraquianos que procuram a Europa em número cada vez maior.

Para piorar, muita da relativa segurança em que vivemos é conseguida por meios que vão contra os nossos princípios mais básicos - nomeadamente a prática da tortura. Nem quero pensar no valor da factura que vamos pagar um dia por aceitarmos hoje com tanta naturalidade que as vidas dos ocidentais valem mais que as dos outros.





Pensando bem, a questão não é onde estava no 11 de Setembro de 2001, mas onde estamos hoje. O que estamos a fazer para impedir a propagação do ódio? O que estamos a fazer para que o mundo se torne um lugar melhor para todos?