28 janeiro 2015

violins of hope - o concerto no 70º aniversário da libertação de Auschwitz




Onde começar esta história? Talvez em Yaakov Zimmerman, o luthier de Varsóvia, que ensinou o seu ofício a Moshe Weinstein, que o transmitiu ao filho, Amnon Weinstein. Diz-se que Zimmerman tinha um coração ainda mais excelente que os violinos que fazia. Desapareceu no gueto de Varsóvia. Moshe Weinstein conseguiu fugir com a mulher para a Palestina em 1938. Anos mais tarde, o choque de descobrir que o Holocausto não poupara um único dos seus familiares fez com que nunca mais falasse da família que deixara para trás no Leste da Europa. O filho Amnon, nascido em 1939, comentaria que em criança se sentava à mesa com os pais e quatrocentos ausentes.
Um dia, pouco depois da guerra, um músico entrou na oficina de Moshe Weinstein, para lhe oferecer o seu violino. Era um instrumento alemão, do tempo em que esse músico vivia na Europa e era um artista muito apreciado. Com ele conseguira sustentar-se e aos seus em tempos terríveis, e por ele conseguira fugir para a Palestina, onde se criava a Palestine Orchestra com o objectivo de salvar o maior número possível de músicos judeus, juntamente com as suas famílias. "Se não o comprares, eu deito-lhe fogo!" - Moshe comprou esse violino, e vários outros que lhe foram sendo oferecidos pelos músicos, em boicote dos instrumentos alemães. Esse boicote, curiosamente, tem ainda hoje repercussões: os instrumentos de corda alemães são mais baratos que os outros, porque o mercado se orienta pelos instrumentos dos músicos mais famosos, e muitos deles são judeus. De modo que a colecção de violinos e violoncelos foi crescendo, mas ficou esquecida num canto da loja, uma vez que ninguém os queria comprar.
Amnon herdou a colecção do pai, e o seu trauma. Durante muitos anos evitou olhar para o abismo que atravessava a sua história. Até que um dia entrou na sua loja um homem que tocara violino em Auschwitz. Queria que Amnon arranjasse o instrumento, para o dar ao neto. O luthier descobriu na madeira as marcas do uso à chuva e à neve. Depois abriu-o, e da caixa caíram restos de cinzas.

Ontem ouvi estes instrumentos na capital do país que quis calar para sempre os seus proprietários: um concerto único, inesquecível, para lá de todas as palavras.

Tocaram o Adagietto da 5ª de Mahler, Melodias Hebraicas op. 33 de Joseph Achron, o Adagio de Kol Nidrei de Max Bruch, o Andante do Concerto em Lá menor de Bach, a Elegy for String Orchestra de Samuel Adler (o compositor veio ao palco), o Adagio do Romance para violino e orquestra nº 2 em fá maior op. 50 de Beethoven. No final, apresentaram "Violins of Hope", uma peça de Ohad Ben-Ari composta especialmente para este concerto (1. A questão; 2. Guerra; 3. Tocar, sem palavras; 4. Sirene; 5. Lágrimas; 6. Violins of Hope.)

Para mim, o momento mais insuportavelmente belo da noite foi quando Ulrich Matthes, num lugar discreto por trás da orquestra, leu esta passagem de Elie Wiesel:

Je réfléchissais lorsque j'entendis le son d'un violon. Le son d'un violon dans la baraque obscure où des morts s'entassaient sur les vivants. Quel était le fou qui jouait du violon ici, au bord de sa propre tombe ? Ou bien n'était-ce qu'une hallucination ?
Ce devait être Juliek.
Il jouait un fragment d'un concert de Beethoven. Je n'avais jamais entendu de sons si purs. Dans un tel silence.
L'obscurité était totale. J'entendais seulement ce violon et c'était comme si l'âme de Juliek lui servait d'archet. Il jouait sa vie. Toute sa vie glissait sur les cordes. Ses espoirs perdus. Son passé calciné, son avenir éteint. Il jouait ce que jamais plus il n'allait jouer. 
Je ne pourrais jamais oublier Juliek. Comment pourrai-je oublier ce concert donné à un public d'agonisants et de morts ! Aujourd'hui, encore, lorsque j'entends jouer du Beethoven, mes yeux se ferment et, de l'obscurité, surgit le visage pâle et triste de mon camarade polonais faisant au violon ses adieux à un auditoire de mourants et de morts.
Je ne sais combien de temps il joua. Le sommeil m'a vaincu. Quand je m'éveillai, à la clarté du jour, j'aperçus Juliek, en face de moi, recroquevillé sur lui-même, mort. Près de lui gisait son violon, piétiné, écrasé, petit cadavre insolite et bouleversant. 

Elie Wiesel, La Nuit, 1958




A luz saiu de Ulrich Mathes. À frente do palco Guy Braunstein ergueu o violino e começou a tocar - a tocar no violino que traz nos poros as cinzas de Auschwitz - a tocar como só ele consegue, junto à nascente frágil e teimosa da sua própria esperança.

(Neste site há excertos do ensaio geral e algumas entrevistas.)


5 comentários:

CNS disse...

Belíssimo texto.

Helena Araújo disse...

Obrigada, CNS. Isto é tudo a somar: tenho o privilégio de assistir a um concerto histórico, e depois ainda me elogiam. :)

jose disse...

Sabe se será publicado de algum modo?
Obg.

ser.so.ser disse...

visitar este blog é sempre um prazer, abre horizontes, mostra-me coisas que desconhecia. Que este óptimo trabalho continue. É um prazer perder-me por aqui.

Helena Araújo disse...

José,
disseram-me hoje que daqui a duas semanas vai estar disponível no Digital Concert Hall. Desta vez vale mesmo a pena comprar um voucher para um dia, ou uma semana, e ver com toda a calma.

pontodeluz, obrigada! (desde que não me acusem de baixar a produtividade dos portugueses... ;) )