16 março 2020

uma simples gota de chuva




Hoje o dia nasceu lindo, mas fui levar o Joachim ao trabalho de carro porque ele tinha um bolo de chocolate para partilhar com os colegas. Descobrimos que o seu cartão permite estacionar o carro na área do hospital, e por isso decidi regressar a casa a pé, atravessando a cidade praticamente deserta.

Passei por uma padaria aberta e convidativa com os tons quentes das baguetes e dos pães dourados. Lembrei-me da primeira manhã em Paris depois do ataque ao Bataclan: o poder tranquilizador da normalidade.
O pão alinhado em cestos ao longo da parede, as cores, a luz, a vitrina com bolos e croissants: tudo tão acolhedor! Noutra altura teria entrado para comprar qualquer coisa, mas agora só entro em recintos fechados se for absolutamente necessário.

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O corona vírus faz-me pensar num poema de Brecht:

Aquele que amo 
Aquele que amo

disse-me
que precisa de mim. 

Por isso
tenho cuidado comigo
e temo que qualquer gota da chuva
me possa destruir. 



Der, den ich liebe 


Der, den ich liebe 
hat mir gesagt, 
dass er mich braucht. 

Darum 
gebe ich auf mich acht 
sehe auf meinen Weg 
und fürchte von jedem Regentropfen 
dass er mich erschlagen könnte. 

Por estes dias vivemos com a ameaça omnipresente de uma banal "gota de chuva".

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A seguir ao almoço o Joachim telefonou-me a informar que uma colega mostrou imagens de tanques de guerra a serem levados para Paris. Vem por aí uma lei marcial? Será que daqui a umas horas seremos todos obrigados a ficar fechados em confinement total? Por precaução fui ao supermercado aqui perto buscar algumas coisas que nos faltam. Pelo caminho encontrei várias pessoas com o mesmo destino e com um ar ligeiramente alarmado, munidas de mochilas e sacos.

No supermercado havia uma atmosfera de rescaldo de pilhagem. A massa, o arroz, a farinha e o papel higiénico esgotados. As pessoas olhavam em volta desorientadas: levar o quê?
Na caixa não havia sacos - provavelmente seria uma tentativa pueril do supermercado de evitar que as pessoas comprassem demasiado.
Um senhor velhinho comentou que já não havia batatas. Ele tinha vindo ao supermercado comprar batatas para o jantar, e já não havia. "Mas amanhã há de novo", rematou.

Não lhe disse nada, mas perguntei-me se haverá "amanhã". Ou se tudo vai mudar ainda mais drasticamente muito em breve.

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No caminho para casa passei por um salão de beleza que tinha um papel na porta: "Por ordem do governo, este estabelecimento encontra-se fechado até meados de Abril. Fiquem em casa e protejam-se."

Ao lado, o cabeleireiro de homens tinha um cartaz a dizer: "Aberto - Entre!"
Estava às moscas. Aliás: a cidade está praticamente às moscas.

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O Joachim regressou a casa com o bocadinho de bolo de chocolate que conseguiu salvar para mim. Diz que todos os colegas gostaram imenso, e se sentiram muito gratos por este gesto.

Estava uma luz lindíssima, e fomos até ao miradouro sobre a baía de Brest. Cruzámo-nos com menos de uma dúzia de pessoas - e eu, por consideração a elas, desviei-me mais de dois metros.

Tememos que o Macron anuncie daqui a pouco 45 dias de recolha obrigatória para todos, e fizemos este passeio quase como o condenado que fuma o seu último cigarro.

Está a anoitecer em Brest.


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