15 julho 2019

professora

Com a sorte que tenho habitualmente, lá calhou de este fim-de-semana ter sido convidada para um jantar, e de ter ficado sentada ao lado de uma mulher interessante e conversadora que passou a noite a contar histórias da RDA e das muitas diferenças entre as duas Alemanhas.

De facto, a conversa começou mal: pelo lado dos refugiados e dos filhos dos turcos e árabes, pela dificuldade de os integrar. Pois se nem alemão falam! E que os miúdos destas famílias deviam ser metidos compulsivamente nos infantários, para lhes dar a oportunidade de aprender alemão desde bem cedo, e para poder influenciar a sua educação, promovendo a sua integração neste país. Algo absolutamente necessário - dizia-se naquele canto da minha mesa - para evitar o que se passa depois nas salas de aula: alunos que não falam alemão e que não respeitam as professoras pelo simples facto de serem mulheres, e famílias que fazem ameaças de violência aos professores quando não estão satisfeitas com o desempenho deles. Eu a ouvir, e a pensar nas tantas vezes que já ouvi estes queixumes, como se fosse essa a situação generalizada (não é) e como se identificar o problema não fosse já meio caminho andado para o resolver (como mostrou o exemplo da Rütli-Schule). Pensei também nas tantas histórias semelhantes que já ouvi em Portugal. Pais que agridem professores, ou o caso de um amigo meu que recebeu uma carta anónima: "sei onde moras - se me chumbares vou violar a tua mulher e a tua filha". Mas fiquei muito caladinha, que não sou maluca para dizer a um público alemão que há portugueses que fazem o mesmo que se está a criticar nos turcos e nos árabes. Terreno minado. Por sorte, ao falar-se na obrigação de frequentar o infantário, a "Ossi" lembrou-se do país no qual cresceu, de ter ido para a creche ainda muito pequenina, e de ter sido obrigada a pôr a filha na creche também muito cedo, porque na RDA não se punha a hipótese de uma mãe querer ficar em casa a criar os filhos. Uma violência, dizia ela. A "Wessi" do grupo concordou: as crianças pequeninas precisam do conforto e da segurança do ambiente doméstico, em vez de serem formatadas num espaço colectivo. "A própria ama do meu neto, em Hamburgo", dizia uma delas, "não tem tempo para se ocupar bem de cada uma das crianças que lhe são confiadas. Uma vez vi uma refeição com eles, e percebi porque é que o miúdo anda sempre com fome: ela não dá a papa a cada um dos bebés, cada um tenta comer como pode, e acaba por cair muito mais papa no babete que dentro da boca".

Já não estávamos a falar dos refugiados, e foi pena, porque a questão é muito pertinente: qual deve ser a margem de liberdade dos pais para decidirem sobre a educação dos seus filhos? Que direito temos de impor regras semelhantes às do regime totalitarista da RDA a estes pais que vivem na Alemanha em situação de total dependência da nossa boa vontade?

A minha vizinha de mesa contou mais histórias do país em que nasceu. De como se decidiu o seu futuro profissional: o Estado escolheu o curso que ela iria tirar, e também a profissão. Sem ser tida nem achada, estudou engenharia e acabou professora. Era professora quando o muro caiu e entrou em contacto com outras realidades do ensino. Como daquela vez em que um grupo de professores de uma escola de um Estado no norte da Alemanha veio assistir às suas aulas. Ela entrou, disse "bom dia" aos alunos, estes levantaram-se, disseram "bom dia, Frau Fulana", e sentaram-se. Os professores ao fundo da sala não se mexeram, apenas fizeram cara de esfinge. A aula começou, as esfinges continuavam impassíveis. A aula inteira assim, e ela a sentir-se cada vez mais insegura perante aqueles professores que vinham da riquíssima Alemanha Ocidental para passar a sua aula a pente fino. No final, foi de coração pesado para a reunião de avaliação com o director. Os professores convidados estavam lá, e continuavam com um ar muito sério. "Como é possível acontecer tal coisa numa sala de aulas?", perguntou um deles, e ela ficou ainda mais aflita. Até que percebeu que eles estavam surpreendidos pela disciplina, atenção e concentração dos alunos, e se justificou: é a condição sine qua non para poder trabalhar com eles. Uns meses mais tarde, quando foi a sua vez de ir à escola deles, percebeu a surpresa: alunos a mascar chiclete, alunos com os pés em cima da mesa, alunos a conversar uns com os outros. O professor não era uma figura de autoridade, era apenas o adulto que tentava atravessar a aula sem soçobrar naquele mar agitado. Educação antiautoritária, remataram em coro a "Ossi" e a "Wessi". Essa foi a minha deixa para louvar as escolas dos meus filhos, a Montessori em San Francisco e a Jenaplan em Weimar: onde os miúdos trabalhavam com enorme concentração, agarrados não pelo colete-de-forças da disciplina imposta de forma autoritária, mas pelo prazer enorme que tinham em trabalhar para aprender.

E depois a professora começou a contar como fazia para conseguir que a turma funcionasse: identificava os alunos problema, e tentava ganhá-los para o seu lado. Uma vez metidos dentro do barco, o trabalho tornava-se muito mais fácil. Mas os primeiros tempos com cada turma nova exigiam dela um esforço redobrado de análise: que problemas teria aquela criança? Como seria possível ajudá-la, e mantê-la sob controlo durante a aula? O seu primeiro teste era levantar a mão para fazer uma festinha na cabeça do aluno. Se ele tivesse o reflexo imediato de se encolher, era sinal de que apanhava em casa, e que a professora não teria qualquer sucesso se tentasse dominá-lo pela força (na RDA ainda era relativamente aceitável agarrar num aluno insubordinado por uma orelha e sentá-lo num canto da sala) e não devia de forma alguma ir falar com os pais, porque essa conversa resultaria seguramente em ainda mais violência contra a criança.

O olhar dela iluminou-se ao contar do dia em que foi escolher o seu primeiro carro novinho em folha, e o chefe do stand de automóveis a atendeu com imensa simpatia. Tanta, que ela começou a desconfiar que aquele homem jovem teria alguma fixação em mulheres de meia-idade. Umas semanas mais tarde, quando foi buscar o carro encomendado, o chefe do stand ofereceu-lhe uma rosa. Ela louvou o serviço aos clientes, mas ele sorriu: "não faço isto a todos. Só a si, para lhe agradecer ter-me trazido para o caminho certo." Foi então que ela o reconheceu: o aluno mais difícil de toda a sua carreira de professora. Demorou meio ano até conseguir ganhá-lo. O miúdo vivia numa situação de violência doméstica tão brutal que nem conseguia ter bom rendimento escolar, apesar de ser inteligentíssimo. Ela conseguiu a pouco e pouco conquistar a confiança dele. Dava-lhe explicações depois das aulas, e garantia-lhe que poderia contar sempre com ela. Ao fim de meio ano o miúdo deixou de se retrair com medo quando ela levantava a mão na direcção da sua cabeça. E tornou-se um dos melhores alunos da turma.

No nosso cantinho do jantar de repente havia uma "Ossi", uma "Wessi" e uma "estrangeira" com os olhos cheios de lágrimas.

2 comentários:

Maria disse...

Comovente a história da compra do primeiro carro, de repente fiquei com um cisco nos olhos...

Maria

Ana P disse...

Também eu!