27 junho 2019

Maria João Pires e Martha Argerich em Hamburgo, a distante fronteira da Europa, e outras ilusões

Hesitei muito se ia a Hamburgo extasiar-me com os diálogos musicais da Maria João Pires e da Martha Argerich, ou se poupava as três ou quatro horas de viagem de autocarro interurbano para cada lado, e ficava em casa de perna ao alto por causa dos malditos mosquitos que continuam a fazer estragos em mim. Mas eram a Maria João Pires e a Martha Argerich, e fui.

Na caixa da estação rodoviária disse "um bilhete para Hamburgo no próximo autocarro" e a senhora olhou para o computador e franziu o nariz. Só tenho às 11:15, disse ela. E no das 10:45?, perguntei eu. Tenho, mas é muito mais caro, disse ela. Vá no seguinte, espera apenas meia hora e poupa 20 euros.
(E ainda há quem se admire de eu andar na vida com cara alegre.)

O cais do meu autocarro devia ser o nº 10, porque mesmo ao lado era o 9 3/4: estava cheio de um pessoal colorido e bizarro que ia apanhar a ligação especial para o festival Vision. Já o cais para Hamburgo estava quase vazio e os passageiros pareciam gente normal.
(Pareciam gente normal só porque quem vê caras não vê corações - quem podia adivinhar que entre eles havia alguém como eu, tão atinadinha por fora e tão maluca por dentro, disposta a passar oito horas num autocarro para ir ver um concerto?)

Em Hamburgo tudo estava a correr muito bem, e até tive a surpresa de me arranjarem um bilhete para um lugar fantástico a poucas filas de distância das deusas, mas foi só até ao momento em que me chamaram a atenção para uma folha ao lado da caixa: por motivo de doença, Maria João Pires não podia participar neste concerto, e seria substituída por Gabriela Montero. É melhor não revelar agora tudo o que me passou pela cabeça e pelo coração, porque andam por aí psicólogos à solta e ainda me fazem a ficha sobre as tantas variações de sentimento de culpa por ter querido ser muito feliz . Adiante.

À parte ter sido um concerto improvisado à pressa para colmatar um buraco negro, foi um concerto com momentos excelentes. Martha Argerich - por quem sinto muita admiração, e agora ainda mais por me ter dado conta de que já a vi subir muitas vezes ao palco apesar de bastante doente - esteve igual a si própria: sublime.
Evgeni Bozhanov foi uma descoberta que quero acompanhar com cuidado. 





Gabriela Montero tocou muito bem a quatro mãos com Martha Argerich a Fantasia de Schubert que conhecemos saída das mãos da Maria João Pires. Tarefa ingrata, tarefa ingrata. Mas no final do concerto conseguiu virar a página, sair do papel de substituta e conquistar um lugar só seu de pianista. Foi no último ponto do programa, onde se lia: "Improvisos por Gabriela Montero".
Entrou no palco, sentou-se ao piano, e pediu ao público que lhe entoasse o início de alguma melodia, para ela improvisar. Alguém cantou uma palermice qualquer, e a cara de incredulidade e gozo da pianista foi imperdível: inteiramente senhora da situação. Alguém sugeriu "Eine Kleine Nachtmusik" (oh, público de Hamburgo: a sério? É só o que vos ocorre?) e ela partiu à desfilada. A segunda melodia proposta foi o início da Quinta de Beethoven (a sério, oh, público de Hamburgo?) que ela improvisou ao estilo de Bach até ao momento em que começou a travar docemente a música, para fazer uma magnífica curva na direcção de um boogie woogie. O público estremeceu, e no final aplaudiu com entusiasmo. Mas o concerto não tinha terminado ainda. A pianista anunciou que o improviso que se seguiria era feito a pensar na Martha Argerich e no que sentia quando tocava piano com ela. E arrancou com uma peça de enorme delicadeza. No final, fez uma vénia rápida na direcção da sala, para logo a seguir olhar para a porta do palco. Escondida do público, Martha Argerich ouvira-a na ombreira dessa porta. E foi lá, resguardadas da nossa curiosidade, que deram um comovente abraço.

Depois do concerto voltei para casa no autocarro das onze e meia da noite. Um autocarro de dois andares que parecia a torre de Babel: pejado de gente a falar em línguas estranhas. Atravessava a Europa em direcção a um lugar de que nunca ouvi falar: Medyca Granica, uma remota fronteira da Polónia com a Ucrânia. A Ucrânia à distância de uma travessia nocturna em autocarro?! Nunca me ocorrera que a fronteira oriental da Europa é praticamente aqui ao lado.


Estava previsto chegar a Berlim às 2:50 da manhã. Inclinei o assento, e dormi. Acordei estremunhada quando as luzes do autocarro se acenderam. Saí, muito surpreendida com a claridade da noite. "Olha o aquecimento global", pensei eu, "depois de trazer os mosquitos de África agora traz também as noites brancas de São Petersburgo". Só depois olhei para o relógio: 4 da manhã.
Um pouco mais tarde, já na minha cama, tive dificuldade em adormecer. Uma dúvida me angustiava: será que saí do autocarro na cidade certa?
(Espero que os psis estejam todos de férias, e o Freud a dormir o soninho dos justos.)


1 comentário:

Maria disse...

Passar oito horas num autocarro para ir ver um concerto? Que loucura mais saudável, Helena! Como eu a compreendo e, por favor, nunca deixe de ser assim.
Pena ter perdido a Maria João Pires, que acredito estivesse mesmo doente.
Tive a sorte de assistir a todos os concertos no início de Belgais. Momentos mágicos, especialmente quando os concertos eram cá fora e a lua aparecia; e no intervalo, a Maria João ia para a cozinha ajudar a servir sopas, sumos e sandes vegetarianas; e no fim ia a todos os autocarros agradecer a nossa presença.
Imagine, agradecer-nos por termos ido lá ouvi-la (e aos outros músicos convidados) a um preço ridiculamente baixo.
Uma mulher extraordinária que achava que a cultura deveria ser acessível a todos.
E agora lembrei-me da Sophia, que também pensava assim...
Bom Domingo.

Maria