12 janeiro 2019

mal por mal, prefiro o pelourinho...


Do mesmo modo, e pelos mesmos motivos que critico o apelo feito por uma deputada brasileira logo após a vitória de Bolsonaro, para que os alunos filmem as aulas dos professores "marxistas" e os denunciem, tenho de criticar a reportagem da Ana Leal sobre "terapias de reorientação sexual".

Tudo isto me provoca profundo asco: filmar consultas de psicologia com câmara escondida. Usar, para fazer esta reportagem, um homem que durante o debate acabou por revelar que hesitou muito sobre se devia entrar ali como infiltrado, e que no decorrer da "terapia" sofreu imenso. Passar na televisão partes dessas consultas e partes de sessões de "reorientação sexual" filmadas sem conhecimento dos envolvidos. E, como se isto não fosse já suficientemente horrível, passar na televisão frases que não têm nada a ver com o assunto em si - a inclusão, na reportagem, de comentários sobre o perfil de uma jornalista famosa ou sobre o salário de um bastonário, comentários absolutamente irrelevantes para o tema, é muito reveladora do espírito mesquinho e reles com que esta reportagem foi feita.

A reportagem e o debate subsequente suscitaram-me algumas dúvidas:

- O Carlos estava inteiramente livre quando tomou a decisão de se infiltrar, ou foi pressionado pela Ana Leal para o fazer? A Ana Leal cuidou de lhe garantir um acompanhamento psicológico para aguentar a pressão desta "terapia"? Ou será que o "atirou às feras" sem se importar com o seu sofrimento, porque precisava daquele material filmado à traição? Concretamente: será que o Carlos foi uma dupla vítima, pressionado tanto pela jornalista interessada no material que ele poderia recolher, quanto pelos "terapeutas" que lhe queriam fazer uma lavagem ao cérebro para o "curar"?

- Também gostava muito de saber como é que o Carlos abordou a Maria José Vilaça. Disse-lhe que a procurou justamente por estar muito interessado na abordagem que ela faz da homossexualidade, na sua qualidade de "psicóloga católica", pediu-lhe ajuda para se "curar", deu-lhe a entender que estava interessado em acompanhamento espiritual e em participar na "terapia de grupo" feita na igreja? Ou disse simplesmente que estava com problemas, e foi a psicóloga que tomou a iniciativa de o convencer a "curar-se" e a recorrer a acompanhamento espiritual? 

Demasiadas dúvidas. O que podia ter sido um momento de denúncia e de esclarecimento, sobre um tema extremamente sério e que exige posições claras por parte dos responsáveis, tornou-se a feira que se viu.

Não, não vale tudo. Não, os fins não podem justificar os meios. Não se pode admitir que um jornalista produza material recorrendo a "cobaias" quando tem obrigação de saber que a experiência vai ser extremamente violenta do ponto de vista psicológico. E também é inadmissível esta devassa resultante da exibição de filmagens com câmara escondida.

Fico a pensar no mundo para o qual caminharemos se isto passar impune e se tornar um método aceitável na nossa sociedade: para se protegerem, todos os médicos, todos os psicólogos, todos os professores filmarão as consultas e as aulas. Se um lado publicar partes dessa interacção, o outro lado defende-se publicando outras partes igualmente embaraçosas contra o seu oponente. E, mesmo que não seja publicado, todo esse material fica guardado algures, à mercê sabe-se lá de que hacker ou gatuno.

Alguém quer viver num mundo assim?

Mal por mal, prefiro o pelourinho: as pessoas eram humilhadas, é certo, mas só depois de ter havido um julgamento, e a sessão de humilhação era circunscrita ao largo da aldeia e a um período limitado.

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E entretanto, gostava que algum jornalista se desse ao trabalho de investigar, estudar e responder com seriedade a estas perguntas, entre outras:
- Que história é essa de "o lobby gay ter obrigado a Sociedade de Psicologia a retirar a homossexualidade da lista de doenças"?
- O que é que um psi deve responder a quem se lhe dirigir dizendo que quer "ser curado" da homossexualidade?

3 comentários:

ematejoca disse...

Também eu prefiro o pelourinho.

É pena que não haja programas de esclarecimento em vez de jornalistas que só pensam nas audiências.

Realmente, o Carlos foi vítima da psicóloga católica e da jornalista sem escrúpulos.

LuaR disse...

As Tv's andam um lixo que só visto. Pena que os contraditórios se façam em blogues, no Facebook e noutros sítios de abrangência às fatias. Como fazer chegar a indignação e informação a todos, quando estamos cada um de nós a indignar-se sozinho?
Não obstante quero dizer - lhe que gosto muito, muito, de ler o que escreve. Vive fora de Portugal, pelo que penso entender ( desculpe, se calhar devia ter a certeza, mas não vejo tudo).
Como está tão bem informada acerca deste rectângulo ex-periférico, ex-à-beira-do-abismo?
Reitero o início do comentário: quem dera que tudo o que a leva ao apuro de análise e às questões que coloca fosse escarrapachado na via pública, para todos lerem. ''
... /Solenidade e risco'', sim! Parabéns.

Helena Araújo disse...

LuaR,
vivo em Berlim, mas a internet facilita muito.
No entanto, muitas vezes dou comigo a pensar em temas que em Portugal não são de modo algum importantes. A minha "bolha" prega-me destas partidas. :)
Obrigada!