19 abril 2018

fuga da morte





  (daqui)

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A palavra de hoje na Enciclopédia Ilustrada é "fuga". A propósito da Fuga da Morte, de Paul Celan, lembrei-me dos trabalhos do Anselm Kiefer inspirados por este poema.

No verão passado vi os dois quadros, "Margarethe" e "Sulamith", lado a lado no SFMOMA. Uma guia passou por eles com um grupo de turistas, disse duas ou três frases, e avançou. Como é possível dizer tão pouco perante aquela imensidão de tudo? Fiquei parada, perplexa, sem palavras, cheia de pena daquelas pessoas que estiveram em frente destes quadros de Anselm Kiefer mas não os viram realmente.
(No mesmo verão aconteceu-me algo ainda mais curioso: vi uma senhora que avançava pelas salas do impressionismo no museu de Portland, Oregon, e ia direita às placas com o nome do pintor. Não ia de quadro em quadro, ia de nome em nome.)
Depois apercebi-me da minha sorte por eles terem passado a correr. Pude ficar eu, todo o tempo que me apeteceu sem ninguém entre mim e aquelas imagens, sem barulho, a entrelaçar o que via com as frases que lembrava do poema.

Anselm Kiefer nasceu (aimeudeus, isto era para ser um post curtinho!) em Março de 1945, na região da Floresta Negra. A guerra só chegou à sua cidade no princípio de 1945, mas chegou com toda a brutalidade. Imagino o sobressalto em que a sua mãe terá vivido os últimos meses da gravidez: em pleno inverno, grande parte da população passava o dia nas florestas, com medo dos bombardeamentos das casas. Para além da destruição das bombas e dos incêndios, os chefes nazis, antes de fugir, deram autorização de saque e ordens de destruição das pontes e das estradas mais importantes, para dificultar o avanço do inimigo. O pequeno Anselm tinha seis semanas quando os franceses conseguiram entrar na cidade destruída. Terra queimada terá sido a sua primeira imagem do mundo. 

Aos vinte e um anos trocou o curso de direito pela arte - justamente no momento em que os estudantes alemães começaram a quebrar o ambiente de silêncio do pós-guerra, e perguntavam às pessoas da geração dos seus pais que papel tinha sido o deles durante o horror nazi. A frase "não confies em ninguém com mais de 30 anos" fazia todo o sentido na Alemanha: quem tinha mais de 30 anos em 1968 tinha grandes probabilidades de estar intoxicado por ideias, reflexos e preconceitos nazis. A Alemanha, até então atordoada de destruição e de urgência de se reconstruir, e embalada no milagre económico que trazia abundância a todos, viu-se finalmente obrigada a um processo de olhar de frente para a sua própria História.

Não admira, portanto, que o confronto com esse período da História alemã seja um tema recorrente nos quadros de Anselm Kiefer. Paisagens sem horizonte, campos devastados, aviões de guerra, a mitologia - e o poema de Celan.

Margarethe e Sulamith: a palha doirada para o cabelo da Gretchen de Goethe, e a palha escurecida de cinza para o cabelo da mulher judia. A paisagem campestre para uma, a entrada para o crematório para a outra - numa sala que os nazis quiseram construir para lembrar os valentes soldados alemães. "Na casa vive um homem (...) atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares"



Fuga da morte

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith

in CELAN, Paul – «Sete Rosas mais tarde: Antologia Poética»
(sel., trad. e introd. de João Barren¬to e Y. K. Centeno),
Lisboa, Edições Cotovia, 1996.


2 comentários:

Ana Paula disse...

Terrivelmente belo! obrigada pelo post.

Lipe disse...

Mto Obrigado pela partilha