26 janeiro 2018

é fazer as contas

Expliquem-me como se isto fosse um exercício de uma ficha de matemática de uma criança de seis anos:

Pergunta 1: quantos casos conhecem de pessoas concretas que foram até agora injustamente apanhadas pela onda de acusação do movimento #metoo (e #balancetonporc, etc.)?
(podem consultar jornais para responder)

Pergunta 2: quantos casos conhecem de pessoas concretas que [OK, vou reduzir as possibilidades a uma parte ínfima da realidade] foram vítimas de assédio sexual grave no local de trabalho?
(podem consultar jornais para responder)

Pergunta 3: qual é maior - o número indicado em 1 ou em 2?

Pergunta 4: se eu tivesse de pagar um euro por cada vez que ouço ou leio "coitadas das vítimas de abuso sexual no local de trabalho, o que lhes fazem é insuportável e inaceitável" (ou algo do género), e se recebesse um euro por cada vez que ouço ou leio "coitados dos homens que estão a ser acusados injustamente, o que lhes fazem é insuportável e inaceitável", ficava rica ou endividada?

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Solução da pergunta 4 (e amoral da história): enriquecia bastante. Apesar da diferença abissal entre o número de pessoas que viram a sua vida destruída ou muito abalada devido a abuso sexual, e o número de pessoas (salvo erro, todos homens) que viram a sua vida/carreira/tranquilidade injustamente destruída por acusações falsas sobre um pretenso comportamento de predador sexual, o que mais vejo por aí são reacções no sentido de proteger os acusados de abuso sexual, sugerindo que praticamente todas as acusações são falsas ou pelo menos muito exageradas e descabidas, e ignorar o número muitíssimo maior de vítimas desse abuso.

Perguntarão: mas então, não te parece horroroso e inaceitável que algumas pessoas se aproveitem da onda #metoo para se vingarem de alguém? Parece, sim: horroroso e inaceitável. Espero que os tribunais sejam muito claros sobre a inadmissibilidade deste comportamento.

No entanto, também me parece muito estranho que haja tanta empatia para com a meia dúzia de homens acusados injustamente, e tanta indiferença em relação ao sofrimento de inúmeros milhares de pessoas que foram vítimas de violência sexual. Mais: parece-me estranho que a estratégia de reacção às acusações injustas passe por desprestigiar todo o movimento #metoo, como se todas as acusações fossem invenções descabidas e fruto de um puritanismo ridículo.

Alguém me explica o que está a acontecer aqui? Alguém me explica os motivos da falta de empatia em relação às vítimas de abuso, do impulso de as desacreditar e desprezar, da necessidade de deitar areia para os olhos e de confundir o debate?


10 comentários:

Unknown disse...

O que se passa é claro como água: ainda têm que ser dados muitos passos no caminho da igualdade de géneros. E o pior cego é o que não quer ver - ou então argumenta de má fé.

Miguel Madeira disse...

O caso do Louis CK, pelo que li, parece-me talvez ser uma acusação injusta - creio que nos tais casos de mastrubação à frente de mulheres, ele perguntou-lhes sempre se se podia masturbar ao pé delas (e pelo menos num caso, elas acharam isso tão estranho que pensaram que ele estava a brincar e riram-se, o que ele interpretou como um "sim").

Suspeito até que ele terá sido prejudicado pela bizarrisse da sua preferência - se ele simplesmente tivesse perguntado a mulheres se queriam ir para a cama com ele, e elas tivessem dito que não, provavelmente o caso acabaria ali, como uma espécie de engate falhado; mas a parte da masturbação dá um lado creepy à situação (fazendo lembrar um tarado de esquina) que provavelmente contribui para isso ser visto como assédio

cassandra disse...

Num mundo caótico o oportunismo e má fé estão a prevalecer.
Numa abordagem dinamica da História,esta confirma:
-Poder e Sexo
-Sexo e Ascenção Social
são problemas milenares que envolvem ambos os sexos.
-Fragilidade feminina
completamente alterada com a evolução tecnológica e com acesso pela mulher ao controle da fecundidade

Inteligência emocional versus inteligência racional pode revelar uma maior fragilidade do sexo masculino para os novos tempos.

Helena Araújo disse...

Miguel Madeira, o próprio Louis C.K. explica o que havia de errado no seu comportamento:
“These stories are true. At the time, I said to myself that what I did was okay because I never showed a woman my dick without asking first, which is also true,” Louis CK said.

“But what I learned later in life, too late, is that when you have power over another person, asking them to look at your dick isn’t a question. It’s a predicament for them. The power I had over these women is that they admired me. And I wielded that power irresponsibly.”

Manuel Rocha disse...

E não admite que aquilo a que chama "empatia" possa ser apenas "antipatia" por ambientes de "caça às bruxas"? E não concebe que aquilo a que chama "indiferença" possa ser apenas incapacidade para encontrar um caminho sensato para resolver um problema cuja equação em termos maniqueístas é falaciosa, para dizer o mínimo ?

Cump.

MR

Miguel Madeira disse...

Bem, talvez eu esteja a ser mais papista que o papa (já que ele próprio acha que o seu comportamento foi errado), mas essa conversa do "The power I had over these women is that they admired me" parece-me uma definição muito alargada de "poder" - se vamos por aí, qualquer relacionamento ou tentativa de relacionamento entre uma pessoa famosa (e quando digo "famosa" pode ser numa escala muito pequena, estilo o ponta-de-lança de equipa de futebol de juniores da vila) e um/a fã é intrinsecamente coerciva.

Helena Araújo disse...

Miguel Madeira,
Se for realmente uma tentativa séria de relacionamento, em contexto de respeito e igualdade, não é coerciva. O problema é que ele não queria um relacionamento, ele simplesmente aproveitava as boas cartas que tinha com essa pessoa para ter prazer sexual à custa dela.

Helena Araújo disse...

Manuel Rocha,
por favor, defina "caça às bruxas" e dê exemplos concretos de situações em que alguém está a ser vítima de "caça às bruxas".
Também costuma usar o termo "Holocausto" para tudo o que mexe, ou apenas tremelica?
E qual é o problema, a equação e a falácia?

Manuel Rocha disse...


Helena Araujo,

Por falta de tempo, remeto para o artigo de Daniel Oliveira no Expresso (
http://expresso.sapo.pt/blogues/opiniao_daniel_oliveira_antes_pelo_contrario/2018-01-29-O-novo-macartismo-puritano), que me parece lançar bons tópicos para debater a polémica.

Cump.

MRocha

PS. Essa do "holocausto" terá de me explicar melhor, pois não atingi.

Helena Araújo disse...

Não tenho acesso a esse texto. Mas, pela síntese que o Daniel Oliveira fez no facebook, parece-me que ele também não explica como é que passa dos casos concretos para a expressão "caça às bruxas".
Quanto à referência ao Holocausto, fi-lo por ser um bom exemplo do mesmo fenómeno: essa palavra está a perder a sua força, porque muitas pessoas a usam para descrever algo que não tem nada a ver com o Holocausto.