27 novembro 2017

o abraço como forma de abuso


A propósito deste artigo no Expresso (de onde tirei a fotografia), sobre o fundador da Pixar, John Lasseter, ter metido um semestre sabático para repensar o seu comportamento, devido a ter-se começado a falar do seu hábito de abraçar a despropósito e a desprimor depois do segundo ou terceiro copito nas festas da empresa, alguém disse no facebook que já estamos a viver em distopia.

É um comentário curioso, porque em distopia já nós vivemos há séculos. Só que era no outro extremo desta questão - as suas vítimas eram outras, e sofriam em silêncio.

Os comentários nesse post eram muito semelhantes aos que defendem o piropo: que exagero / então agora já não se pode elogiar? / quem se sentir assediado que se defenda / daqui a nada proíbem tudo.

O meu contributo para esse debate:

Começo por um detalhe que me incomoda muito, e surgiu nesse conjunto de comentários: a sugestão de que as mulheres se devem defender do assédio com violência físi
ca. Reclamo para mim o direito a andar no espaço público sem ter de me defender com estaladas ou pontapés nos tomates. O caminho é em direcção a uma sociedade civilizada, e não ao far west.

E há uma questão de fundo que muitos dos comentadores parecia estarem a esquecer: a situação que temos tido até agora é degradante e indigna. Os abusadores agem com um sentimento de segurança que advém do silêncio da vítima. Este silêncio das vítimas torna-as inexistentes, permite à sociedade viver na ilusão de que tudo está bem, e leva muitos a reagir automaticamente a favor dos assediadores, porque nem se dão conta do que estes têm andado a fazer.
Quanto à defesa do abraço propriamente dito: convém não confundir as coisas. Há muitos tipos de abraço - o único permitido (e desejável) é aquele que não vai além do que a relação entre as pessoas justifica. (Desculpem estar aqui a dizer lapalissadas.)


Pergunto a quem está tão preocupado com a, digamos assim, “criminalização do abraço”: sendo certo que a fronteira entre um e outro é pouco nítida, entre ter um abraço a menos e ter um apalpão a mais, o que preferem? Preferem que uma pessoa só abrace se tiver a certeza de que esse contacto é bem-vindo, ou que, por sistema, seja a pessoa abraçada quem tem de gastar tempo e nervos a pensar se aquele abraço desagradável terá sido "normal" ou abuso, e como é que devia ter reagido?
Penso que é positivo ser claro para todos que um contacto físico desagradável pode ter consequências para quem passou os limites, e é muito positivo que o ónus esteja do lado que quem passa os limites, e não da sua vítima.

Concordo que de momento está a haver exageros de sentido contrário, e até que há algo de anacrónico nesta onda de repúdio, porque se baseia nos valores de hoje, mas incide também em muitos casos de assédio que ocorreram num tempo em que esse comportamento era considerado, quando muito, “delito de cavalheiro” (não sei se a expressão existe em português; neste contexto, em que os poderosos estavam habituados a abusar impunemente, acho-a muito apropriada). No entanto, mesmo com todos os exageros e relativas injustiças, parece-me fundamental denunciar, alertar e debater, e que se torne muito claro que, a partir de hoje, a sociedade não admite e não perdoa este comportamento.

No caso do artigo do Expresso, de que só li a parte que o jornal deixa aberta a todos: parece ser um caso em que o próprio reconhece que abraçou de forma abusadora. O barulho à volta dele pode até ser exagerado e injusto, mas o facto de se falar tanto disto abre a porta para que, quando alguém for abraçado de uma forma que sinta como desagradável, possa olhar o outro nos olhos com segurança, e perguntar: "que merda é esta?!" Depois da vaga actual de crítica e repúdio, a outra pessoa entenderá, e saberá os riscos que corre se continuar a insistir nesse comportamento. E sem esta vaga - às vezes exagerada - de repúdio, quem abusa podia continuar a rir-se e a virar o bico ao prego, envergonhando quem se queixa. Que é o que tem acontecido até agora.

Quanto aos temores sobre o plano inclinado em direcção ao puritanismo exacerbado, ou algo do género: concordo que neste momento estamos a passar do oito ao oitenta, mas esse oitenta é necessário para que estabelecer na cabecinha de toda a gente que os apalpões sub-reptícios não são admissíveis, e para que as/os apalpadas/os saibam que têm o direito de protestar e de envergonhar quem os pratica, em vez de engolir em seco e fazer de conta que não aconteceu. Uma vez conseguida esta plataforma de novas regras do jogo, podemos começar a falar do plano inclinado. Se for caso disso. 

 
O que não podemos permitir é a situação que tínhamos até agora em que os abusadores faziam impunemente os que lhes apetecia (e mais que impunemente: pensando que é essa a ordem natural das coisas - vide Trump a explicar em tom gabarolas que quando se é famoso/poderoso se pode grab them by the pussy), e em que a pessoa assediada tem de comer e calar, porque se falar é ela quem fica mal.


3 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

Todos se estão a esquecer da Lei Sálica?
Que bela abertura para apanhar logo uma chapada,muito bem dada,diga-se...
O assédio é uma questão de tempo,de modo,de local,etc.,etc.,.Como coisa de humanos,no caso vertente,pois há assédio animal e animalesco e similares,depende da avaliação de cada um.E em todos os casos de assédio as partes têm opiniões diferentes,salvo caso de doença séria.Um chato,um estúpido,um boçal,um brutamontes,podem com justiça serem acusados de assédio quando nunca pretenderam assediar. O abraço do urso é o paradigma,ainda que o animal queira ser terno...
Quero com isto dizer que só animais é que assediam? Sim,parece-me que tenho razão,embora não a tenha toda...e a pouca que tenho aproveitará a alguém?

purpurina disse...

A mim custa-me aceitar que gente inteligente esteja a falar a sério quando argumenta o exagero destas acusacoes e o risco de se cair no extremo de proibir tudo.

Sempre me pareceu que os limites do que é assédio sao muito simples de definir, e quem o pratica sabe bem o que faz. É uma questao de intencoes: se o que se diz tem a intencao de agradar a quem ouve, nao é assédio; se for para agradar a quem diz, para lhe massajar o ego (seja em privado ou em frente a amigos), entao é. Elogios sinceros e respeitosos nao sao assédio para ninguém.

Sei que estou a simplificar (e a falar apenas de assédio verbal, claro - embora acredite que o fundamento seja válido em todos os casos). Claro que poderá haver excepcoes, em que se erra na assumpcao do que poderá ser agradável para o outro, mas mal-entendidos resolvem-se sem problemas quando há respeito pelo outro.

É sempre uma questao de respeito.

/sofia

Helena Araújo disse...

Sim: respeito é a palavra-chave.