15 outubro 2017

mais histórias da RDA



Hoje esteve um belíssimo dia de outono em Berlim. Quase diria: melhor que o verão.
Andei na "minha quintinha", o talhão de meia dezena de metros quadrados por trás da casa, a fazer os preparativos para o tempo frio (calha bem que hoje é o dia mundial da mulher rural), depois fritei umas flores de abóbora em polme e fomos jantar com os vizinhos no terraço deles, que dá para a rua.
Acenámos à mãe do vizinho da frente, e convidámo-la para vir petiscar connosco. Ela veio, "só um minutinho", e daí a nada estava a suspirar, que vizinhos assim é que é, bem diferentes do que ela tem na pequena localidade onde mora, nos confins leste de Berlim.

"O meu vizinho deve ser uma boa peste, daqueles que dantes ouviam e viam tudo. Faça chuva ou faça sol está no jardim a controlar o que se passa na rua. Nem dá gosto ir para casa, sabendo que ele está lá feito espião. Já não estamos em tempo disso! Ui, que tempos aqueles! Sabem, o meu marido trabalhava numa fábrica enorme, e escreveu para lá uns cartazes. Eu decidi ficar caladinha e quieta, por amor ao meu filho. Se também eu começasse a fazer barulho, ainda mo levavam, para ser adoptado e educado por alguma família próxima do regime. Era o que eles faziam: metiam os pais na cadeia, e entregavam os filhos a famílias que os educavam conforme a ideologia do Estado. Os riscos que nós corríamos! Mas eu não queria fugir. Não queria que os meus pais sofressem, e sentia-me muito ligada à minha terra. Preferi ficar, e lutar para ir mudando as coisas. Mas também tinha de ter muito cuidado, para não me tirarem o meu filho.
Uma vez deram-lhe uma nota muito má em comportamento (para além das disciplinas, também davam notas de comportamento, aplicação, organização e participação), por ter faltado às comemorações do 1º de Maio. Inventámos logo uma mentira, que uma tia velhinha estava acamada e precisava de ajuda, e que tínhamos ido prestar o auxílio necessário. A tia estava cheia de saúde, mas nós é que não podíamos deixar que o rapaz fosse castigado por não andar no rebanho a cumprir ordens. Demos-lhe todo o apoio!"

- E não prenderam o seu marido?, perguntei eu.
- Não, teve sorte. O muro caiu antes de o virem buscar.

Falei de quando vivíamos em Weimar, e daquela vez em que o Matthias, de 6 anos, começou a contar à professora uma história familiar um bocadinho embaraçosa. Eu disse-lhe "Matthias, não é preciso contar tudo na escola" e a professora cortou: "ai isso é que é! à professora conta-se tudo!"
Por aquela altura a Christina ia fazer a primeira comunhão, e não pude impedir-me de imaginar como seria a nossa vida se isto se estivesse a passar 13 anos antes, num país que punia as pessoas que escolhiam permanecer na Igreja, e o Matthias se sentisse que era seu dever a contar à professora da escola primária tudo o que se passava em casa.

Ela continuou:

"Havia quatro raparigas católicas na minha sala da escola primária. Nos feriados religiosos elas podiam faltar à escola, mas no dia seguinte a professora humilhava-as em frente de todos. Eu ficava revoltada, até comentava em casa com a minha mãe. Depois da queda do muro encontrei essa professora numa estação de caminho-de-ferro. Disse-me:
- Eu conheço-te - és a Maria! Que bom ver-te!
- Eu também a conheço, e de ginjeira, respondi. Ponha-se a andar, nunca mais a quero ver!"

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