27 setembro 2017

segurança para as mulheres nos transportes públicos



Ontem, num S-Bahn de Berlim, ouvi dois miúdos de cerca de dez anos a conversar:
Ela: De que tipo de transportes públicos gostas mais?
Ele: S-Bahn, por ser o mais rápido. A seguir, Metro.
Ela: Eu prefiro autocarros.
Ele: Autocarros?! Odeio autocarros! São muito lentos.
Ela: Mas se precisares de ajuda tens o motorista por perto. Nos comboios, o motorista não te vê e não te pode ajudar. Sempre que é possível, prefiro ir de autocarro.

Está tudo aqui: aos 10 anos, ela já está condicionada para fazer escolhas em função da segurança, e aceita gastar cinco ou dez vezes mais tempo numa deslocação em transportes públicos; ele move-se com mais liberdade porque a sua segurança pessoal não é uma preocupação e um critério na escolha.

Essa miúda berlinense não é uma excepção. No outro lado da escala etária e do mundo, recebi no mês passado em San Francisco, de uma amiga de 65 anos, o conselho de usar o metro para ir ao centro, porque se fosse de autocarro podia ter experiências desagradáveis na zona da Market Street.

Não sei quanto deste sentimento de insegurança nos transportes públicos é subjectivo, quanto é condicionado pela educação das raparigas ou por estratégias de poder (como por exemplo o que ultimamente acontece na Alemanha: a disseminação propositada da ideia de que a insegurança aumentou devido aos refugiados), e quanto se baseia em factos e em ameaças reais. O primeiro passo para conduzir este debate com seriedade seria perguntar às mulheres que usam transportes públicos:
- se a segurança é um tema que as preocupa, e se se sentem seguras ou, pelo contrário, ameaçadas;
- que medidas tomam para se sentirem em segurança;
- quais são as horas e os locais em que sentem maior insegurança;
- quais os motivos para a sensação de insegurança;
- que casos concretos de violência ou assédio tiveram;
Não estou a inventar nada - limitei-me a copiar questões de um estudo realizado em Heidelberg em 1994, com um inquérito a 575 mulheres entre os 13 e os 86 anos sobre o seu sentimento de segurança no espaço público, que revelou que, entre as inquiridas, havia:
- 74% vítimas de assédio verbal
- 69% vítimas de olhares invasivos e desagradáveis
- 48% vítimas de perseguição na rua
- 44% que foram agarradas ou empurradas
- 39% vítimas de assédio sexual
- 23% que tiveram alguém a barrar-lhes o caminho
- 6% vítimas de violação
- 6% que foram assaltadas
- 3% que foram atacadas com uma arma

Não sei se estes números correspondem à realidade no espaço público e em particular nos transportes colectivos portugueses. Mas vejo que a PSP entende que  "as mulheres, só por o serem, correm riscos específicos", e dá uma série de conselhos às mulheres caso viajem sozinhas à noite nos transportes públicos. Admito portanto, com base nestas recomendações da PSP, que o problema da segurança das mulheres nos transportes públicos em Portugal não é apenas subjectivo e condicionado, nem invenção da extrema-direita para instalar uma agenda xenófoba. E se o problema existe, há que lhe dar resposta. 

Não li a proposta concreta da Joana Amaral Dias para a criação de espaços reservados para mulheres nos transportes públicos. Gostava de saber se propõe segregação (carruagens ou compartimentos separados), ou se se trata apenas de lugares prioritários, perto de funcionários dos transportes públicos, ou perto de um microfone com ligação para agentes de segurança. Também gostava de saber se inclui medidas para aumentar a segurança nas paragens, nos túneis do metro, e no caminho entre o transporte e a casa de destino (uma vez que muitas vezes os ataques ocorrem depois da saída do veículo).

Quanto às críticas que esta proposta suscitou, por parte de feministas, vejamos algumas das que li:

"Aonde vamos parar se são as mulheres que têm de mudar as suas rotinas?", perguntam.
Vamos parar aonde já estamos há muito tempo: aos dez anos, as miúdas já começam a escolher o transporte público em função da segurança; e aos 65 anos continuam a fazê-lo; as mulheres que têm meios para isso deslocam-se no seu próprio carro ou de táxi; durante a noite há muito menos mulheres a viajar sozinhas nos transportes públicos - no limite, preferem ficar em casa a correr o risco de serem importunadas.
As mulheres tomam decisões em função da sua segurança de forma tão rotineira que já nem reparam. E a muitas é aconselhado fazer um curso de autodefesa. Ora, haverá mudança de rotina mais violenta que essa de ter de aprender a dar um pontapé na região genital de um homem?

"Não à segregação!", protestam.
E não se dão conta de que, especialmente à noite, a segregação já existe no nosso quotidiano: quem tem meios para isso, em vez de ir nas "carruagens mistas" dos transportes públicos, vai de táxi ou no seu carro privado. Quem não tem meios fica em casa, ou então entra no pequeno grupo de mulheres que durante a noite andam nos transportes sem ser acompanhadas.

"Esta medida é um retrocesso - fere a igualdade, vitimiza as mulheres e dá delas a imagem de seres inferiores", dizem.  
Uma coisa é igualdade, outra coisa é equidade. Se há no espaço público um tipo de violência que se dirige especificamente contra as mulheres, e geralmente é exercido por homens ou grupos de homens mais fortes que elas, não faz sentido falar em igualdade. Esta só é atingida depois de dar às mulheres condições para se movimentarem no espaço público livres dos riscos que as atingem especificamente. 
Gostava muito de saber das mulheres que não têm meios para andar de táxi ou num carro seu, e que por isso se sujeitam a andar nos transportes públicos ou até a não sair à noite, o que pensam sobre haver lugares reservados para elas nos transportes junto de alguém ou de um equipamento que lhes possa proporcionar ajuda em caso de perigo: é um retrocesso ou uma melhoria importante na sua qualidade de vida?

"A solução é educar, educar, educar.", dizem também. Com certeza que sim (ou talvez não, mas não vou discutir isso neste post) - no entanto, enquanto a educação está a germinar para dar frutos, é preciso arranjar soluções exequíveis para os problemas que hoje afectam as mulheres.

"A Joana Amaral Dias lembrou-se de inventar um tema populista sem interesse nenhum a não ser conseguir publicidade.", acusam.
Não sei. A PSP considera que é um problema, eu tenho motivos concretos e pessoais para considerar que é um problema. O tal inquérito às utentes dos transportes públicos podia ajudar a fazer mais luz sobre o assunto.

"Como se não houvesse problemas mais importantes", lamentam-se.
Pois, enquanto houver fome em África não se faz mais nada...

Não tenho a menor dúvida de que uma mulher tem direito a andar no espaço público - seja numa rua escura seja num transporte público - sem ter de medir os riscos e sem ser importunada.
Não tenho a menor dúvida de que uma mulher que for vítima de violência de género ao andar numa rua escura ou entrar num veículo de transporte público sem ter medido os riscos não é culpada dessa violência. Também não tenho dúvidas sobre isso: a culpa é toda do agressor.
As mulheres não são culpadas, mas podem ser vítimas - e carregam tanto o peso de terem de estar permanentemente de sobreaviso como as consequências de terem tido o azar de apanhar um delinquente pela proa.

Finalmente: não podemos deixar que sejam as mulheres mais pobres - as tais que não têm meios para promoverem a sua segregação privada em carro privado ou táxi - quem paga o preço dos nossos princípios feministas. Sim, estou a introduzir no debate a questão das classes sociais. Estou até a insinuar que praticamente nenhuma das pessoas que critica o "retrocesso" e a "segregação" se lembraria de dizer hoje a uma filha sua de 18, 30 ou 40 anos que no fim da festa tem de regressar a casa de metro e autocarro porque não faz sentido ela, por ser mulher, querer viajar separada dos homens. 

Os termos deste debate lembram-me a canção de Brecht: "Vocês, que amam a própria pança e a nossa obediência/ Aprendam de uma vez por todas/ Como quer que virem e revirem/ Primeiro vem a barriga, depois vem a moral/ Primeiro é preciso que também os pobres/ Recebam a sua parte do pão."

Não é o pão, é a segurança: tem de ser igual para todas. E só depois vem a moral.

6 comentários:

Espiral disse...

Gostei muito do teu texto.
Clara, simples e centrado exactamente no problema. A insegurança que as mulheres sentem.

Eu pertenço ao pequeno grupo de mulheres que sempre viajou de transportes públicos ou teve que andar em sítios esquisitos a horas menos boas. Por não ter outra hipotese (economicamente), por ter que o fazer (motivos laborais) mas também pela convicção que tenho todo o direito de usar aquele transporte público aquela hora, sejam duas ou três da manhã, e todo o direito de andar naquela parte da cidade.

Sim, sei os riscos que corro. Sim penso na minha segurança. E não, não me estou a pôr a jeito ou sou "destrambelhada". Infelizmente o meu instinto de auto preservação continua activo, uso estratégias de defesa, falar ao tlm com alguém, ir mesmo muito atenta ao que se passa a volta, ter alguma especie de arma (algo pesado) na mão. É triste, mas acho que faço sempre isso.

Mas se ninguém fizer disto, de andar na rua e transportes, o normal é pior não é?

Helena Araújo disse...

Espiral, parabéns pela tua determinação!
Infelizmente ainda há uma grande distância entre os direitos que temos, e o modo como outros os respeitam.
Partindo da tua experiência, quais são as tuas propostas para melhorar a segurança das mulheres nos transportes públicos?

Lucy disse...

Peço desculpa, mas acho a proposta da JAD completamente "fora". Não tenho carro. Ando sempre, e com muito gosto, em transporte públicos, de dia e de noite. Não tenho medo, sim, talvez, por vezes, alguns sustos. Penso que se tem de ter um mínimo de bom senso e algumas estratégias mas também acredito que a maioria de quem por aí anda são "boas pessoas" e o facto de sermos um grupo é precisamente o que me tranquiliza. E também já vi mulheres a roubar, com muita perícia, nos transportes. Estar limitada a viajar só com mulheres não me dá tranquilidade de maior.

Espiral disse...

Deixa-me pensar.
Não é uma questão fácil.

Acho que pode ter vários ângulos em que se pode actuar...

Primeiro de tudo, e talvez o mais difícil, é nós mulheres vermo-nos como legitimas usufruidoras desses espaços, para normalizar esses comportamentos. Ainda hoje de manhã, num autocarro cheio, um homem meteu-se comigo, em voz alta, não disse nada extremamente ofensivo, mas foi incomodativo "esta noite sonhei contigo, etc etc". Pareceu-me que teria algum défice cognitivo, mas não vejo como desculpa (sou psicóloga de formação): reparei que se dirigiu a outras mulheres, portanto só se metia com o grupo frágil e que para ele obviamente era sexualmente atraente. E eu como outras mulheres, fizemos algo que me irrita: ignoramos, viramos a cara, como se "senhora digna não tem ouvidos". E isso chateia-me. Devia ter dito "para de falar comigo assim" ou algo do género. Mas há sempre o receio, porque instintivamente vi que ele era forte(e se me empurrasse ou agarrasse?) ou piorasse a agressão verbal?.. é complicado...

Em segundo, mudar as pessoas a volta: ninguém disse nada, nem mulheres, nem homens, ninguém. Há incomodo sim, mas as pessoas estão cada uma na sua vidinha. Acho que essa indiferença também chateia.

Em terceiro virá a parte prática e que talvez seja mais fácil apesar de pouco prática. Segurança (polícia) nos comboios (a certas horas já há), e também em metro ou carris. Tenho algumas dúvidas em relação a carrugens "proprias para mulheres". É preciso ter cuidado para não parecer segregação, e pior segregação pela negativa (somos vitimas, portanto mais fracas portanto inferiores...)


Não sei se fui clara, ou se respondi , mas foi o que pensei .



Helena Araújo disse...

Lucy, obrigada pelo comentário!
Também tenho a certeza que a maioria das pessoas que por aí andam são boas pessoas. Mas também há os grunhos - e a medida proposta é, segundo me parece, para proteger as mulheres do assédio sexual, e não de assaltos.
Não gosto da ideia de carruagens separadas. Mas penso que é importante haver uma resposta para esta ameaça que se dirige especificamente às mulheres.

Helena Araújo disse...

Espiral,
se calhar a indiferença dos outros era uma ponta de meada por onde se pode pegar. Toda a gente faz de conta que não está ali, e deixa a vítima sozinha. Era preciso mudar essa atitude.
Não sei se afrontar o abusador é a melhor solução. No caso do que estava a importunar as mulheres no autocarro, imagino que começarem todas a trocar comentários trocistas sobre ele "sonhar tanto" era capaz de ser uma solução.
Há tempos a minha filha ajudou uma rapariga no comboio, que estava a ser importunada, convidando-a simplesmente para ir para perto dela. O facto de serem duas, e de a minha filha ter começado a conversar com a outra, deixando bem claro que ela não lhe era indiferente, fez com que o abusador se calasse.

Também tenho dúvidas em relação às carruagens separadas. Mas parece-me ainda pior fazer de conta que não acontece nada, e deixar as mulheres sozinhas com esses problemas.

Uma última nota: somos vítimas porque somos mais fracas e há uma cultura de abuso impune, mas não somos inferiores. E em nome da igualdade não podemos iludir a assimetria de forças. A igualdade de direitos e de dignidade não passa pela igualdade biológica.