18 agosto 2017

uma lição sobre bagatelização dos nazis

Traduzo muito rapidamente um artigo que Sascha Lobo publicou no spiegel online a propósito da conferência de imprensa dada por Trump após a tragédia de Charlottesville. Sascha Lobo mostra o paralelismo entre o discurso de Trump e certas estratégias de comunicação na internet, e escolhe não perder uma única oportunidade de chamar neonazis aos Alt Right - o que é a sua maneira de lutar contra as estratégias de semear a dúvida quanto aos verdadeiros valores e objectivos daquele grupo.
Como disse, é uma tradução rápida (estou de férias, e com ipad e internet periclitantes). Se tiverem dúvidas sobre alguma frase, digam-me - pode ser culpa da tradução.


Após o atentado de Charlottesville, Trump serviu-se dos truques habituais de comunicação dos neonazis. Na conferência de imprensa, o presidente usou um estilo que já tem vindo a ser usado há muito na internet.

"Havia muito boa gente, dos dois lados."
É preciso pôr em contexto esta citação da conferência de imprensa de Donald Trump sobre a manifestação "unite the right" em Charlottesville. Para isso, neste caso basta uma imagem:

(foto: Andy Campbell)

Esta foto é suficiente pelo que representa: os inúmeros braços erguidos na saudação nazi, as palavras de ordem e as canções anti-semitas, a violência aberta e carregada de ódio como foi o ataque às pessoas da contra-manifestação. Aconteceu sob o lema "unite the right", que resume o comportamento do grupo: não se tratou de casos individuais, mas de uma base comum.
Para isto, não se encontra palavra mais adequada que "neonazis".

Muito antes das eleições nos EUA, encontrei um tweet que na altura ainda tinha piada: "Trump é como se a caixa de comentários da internet tomasse a figura de um homem e concorresse às eleições". Entretanto, já nos demos conta do alcance desta comparação.

Na conferência de imprensa sobre os acontecimentos de Charlottesville, Trump utilizou exactamente os mesmos modelos de comunicação com que os "Alt Right" (um eufemismo para extrema direita e neonazis) operam há muito na internet. Por trás disso escondem-se naturalmente truques antiquíssimos, desde a retórica da Grécia Antiga até à dialética erística de Schopenhauer. Mas seja por estratégia, seja por um mero impulso, Donald Trump transformou o tipo de comunicação online dos "Alt Right" numa conferência de imprensa.

"Chame-lhe o que quiser"

Começa com a resposta à pergunta sobre ter precisado de tanto tempo para fazer declarações sobre o ocorrido. Trump respondeu: "não esperei muito tempo [...] É preciso algum tempo para ter acesso aos factos. Os factos ainda não são conhecidos. [...] Honestamente: as pessoas ainda não conhecem todos os factos."

Dizer que ainda não se conhecem todos os factos é um modelo frequente nas discussões na internet. Desse modo fica subentendido que ainda não é possível fazer um julgamento definitivo. O que parece lógico, mas não é mais do que um truque, porque raramente se trata de conhecer "todos os factos". O que se trata é de conhecer o fundamental, e isso é identificável sem estar na posse de todos os detalhes.

É assim que um argumento da análise racional se transforma no seu contrário. Obviamente, é preciso ter factos para poder julgar. Mas se - perante a clareza de suásticas, saudações nazis e fantasias de exterminação dos judeus - Trump explica que os factos ainda não são todos conhecidos, isso significa que quer encobrir a realidade e semear a dúvida na opinião pública.

À pergunta "tratou-se de terrorismo?", Trump responde: "Pode chamar-lhe terrorismo, pode chamar-lhe assassinato, pode chamar-lhe como quiser. [...] Acabamos perante semântica jurídica. O condutor do carro é um assassino." Nesta curta passagem escondem-se duas mensagens que dão imenso jeito aos neonazis do "Alt Right". O "chame-lhe como quiser" é mais do que um comentário descuidado. Com estas palavras, em última análise transforma o atentado terrorista numa questão de definição pessoal.

Com uma oração subordinada, Trump abre a possibilidade para outras interpretações, que os neonazis já estão a espalhar na rede: ter-se-á tratado de um acto de resistência. Num momento Trump falava de incertezas jurídicas, para logo a seguir afirmar que o condutor é um "assassino". O motivo: um assassino costuma agir sozinho, enquanto actos terroristas contêm, por definição, uma culpa partilhada. Deste modo, Trump liberta os neonazis do "Alt Right", uma vez que isola o autor do atentado.
Esta estratégia observa-se frequentemente na rede, em comentadores da direita: por exemplo, quando, perante um atentado de origem fundamentalista islâmica, por sistema se alarga a culpa a todos os muçulmanos, ao mesmo tempo que o terrorismo de extrema direita é obra de pessoas  isoladas que de algum modo descarrilaram ou têm problemas mentais. É assim que um dos lados é sempre envolvido na culpa, e o outro lado nunca o é.

Um truque habitual da comunicação online

Perante a questão levantada por John McCain, relacionando a violência de Charlottesville àquilo a que chamou um "grupo Alt Right", Trump começa por apoucar o senador. A seguir, diz: "Defina o que é Alt Right". Trump sabe muito bem o que é "Alt Right", tanto mais que trouxe Steve Bannon - a figura mais poderosa do âmbito desse movimento neonazi - para a Casa Branca. Mas aqui faz de conta, como se tudo fosse difuso, como se faltasse clareza, como se fosse algo difícil de definir. Deste modo, torna mais difícil atacar o grupo, chamá-lo à responsabilidade. O que é mais um paralelo para a comunicação na rede levada a cabo pelos neonazis do "Alt Right".
De facto, também esse grupo cuida de manter a indefinição - embora nem sempre. Quando serve os seus propósitos, apresenta-se como uma estrutura de activistas bem organizada. Mas nos casos em que possam ter problemas, sublinham a falta de nitidez, a dificuldade da definição. Exactamente como Trump fez na conferência de imprensa.

Quando Trump se sente mais pressionado pela perguntas incisivas dos jornalistas sobre a violência dos neonazis do "Alt Right", diz: "E então os "Alt Left"? [...] Têm uma certa culpa? [...] Penso que têm." Recorre a um dos truques standard mais importantes da comunicação online, que os "Alt Right" usam muito: whataboutism.
Este neologismo americano pode traduzir-se por "então-e-ismo". A cada pergunta sobre actos, culpa, responsabilidade responde-se com outra: então, e o outro lado? As crianças com fome em África? Os morto da primeira guerra mundial? Desse modo, parece estarmos perante uma interpelação  dos princípios morais do adversário para o atacar, quando afinal se trata de uma manobra de diversão, para afastar para longe as questões incómodas, quando não há nenhum argumento válido para apresentar.

A menção ofensiva à "Alt Left" não foi um acaso. Trump constrói um opositor que não é a sociedade civil a protestar contra os neonazis, mas uma facção semelhante com um nome semelhante. Trump fala como se em Charlottesville o "Alt Right" não se tivesse erguido contra a população americana normal, antes se tivesse tratado de um confronto de activistas de direita contra activistas de esquerda. 
Os neonazis da "Alt Right" fazem algo semelhante, como se não estivessem a ser confrontados por cidadãos normais, mas por gente esquisita da esquerda radical. 
Numa anedota americana tão crua como amarga mostra-se bem o perigo deste deslocamento de referências:
- Neonazi: "Morte a todos os judeus!"
- Contramanifestante: "Não!"
- Observador: "Estamos então perante posições extremadas e antagónicas, agora temos de encontrar um compromisso."
  
A estratégia dos neonazis do "Alt Right" é acusar de extremismo quem repudia as suas próprias posições extremas e contrárias aos direitos humanos. E Trump, ao opor "Alt Left" a "Alt Right", dá força a esta narrativa. 

Trump afirma: "Num dos lados havia um grupo que era mau, e no outro lado havia um grupo que também era muito violento, e ninguém quer falar disso, mas eu vou falar agora." Na conferência de imprensa, Trump sublinha o carácter violento do "Alt Left", ao mesmo tempo que, de certo modo, protege os manifestantes de extrema direita: também terá havido entre eles "bad people", mas a maior parte "manifestava-se de modo inocente" e era "fine people". Este modelo de apresentação das questões é do mais maldoso que se pode encontrar, uma vez que, independentemente da violência que possa ter havido da parte dos contramanifestantes, houve um atentado em que um dos extremistas de direita matou uma mulher que estava a protestar pacificamente. 

Quando se silencia esta diferença fundamental entre os dois níveis, estamos perante uma bagatelização deliberada de um assassinato por motivos terroristas. E isso sem mencionar a formulação "ninguém quer falar disso, mas eu falo agora" - que já é a maneira clássica de a direita encenar uma quebra de tabu, a revelação de uma verdade que todos sabem e ninguém se atreve a mencionar. A seguir, aumenta ainda mais a sua repartição das culpas: "Havia um grupo de um lado, a que podem chamar "os esquerdistas" [...] que veio e atacou violentamente o outro grupo." Desse modo, Trump desloca a culpa para os contramanifestantes. 

Não se trata de autorização para se manifestar, mas de assassínio

"Do outro lado havia um grupo que vinha com a intenção de atacar, não tinha autorização para participar na manifestação, e era extremamente violento. [...] Havia muitas pessoas naquela manifestação [a "unite the right"] que vieram para se manifestar pacificamente e de forma muito legal. [...] Essas pessoas tinham autorização, as do outro grupo não tinham nenhuma autorização [...] um momento horrível para o nosso país."

A impressão que Trump quer criar aqui é algo que se encontra frequentemente nas discussões online: o respeito pelas regras do Estado de Direito com uma função de legitimização. Mas em momento algum a questão é a autorização para a manifestação - trata-se de um assassinato. 

Trump, no entanto, sublinha repetidamente que a manifestação dos neonazis estava conforme os preceitos legais, e a dos contramanifestantes não estava. Trump apresenta um grupo onde havia uma maioria de neonazis com tochas, saudações nazis, canções antisemitas e um assassínio de motivação terrorista como se fossem manifestantes "inteiramente dentro da legalidade" que, citando Trump, apenas se manifestavam "contra o desmantelamento de uma estátua que era muito, muito importante para eles". Quase nos sentimos tentados a ter pena dos pobres nazis e da estátua que significa tanto para eles.

O presidente dos Estados Unidos dissipou todas as dúvidas que pudesse haver sobre a sua atitude e deu-nos uma lição sobre como bagatelizar o nazismo. À qual, naturalmente, não podia faltar um final trumpiano: "A propósito, sou proprietário de uma das maiores quintas produtoras de vinho dos EUA. Fica em Charlottesville."


1 comentário:

Filipa disse...

Uma brilhante análise. Como foi bem identificado, basta uma pessoa frequentar páginas de esquerda, feministas, etc, que todos os comentadores de direita usam os truques que o Trump empregou.

Já agora, deixo aqui uma recomendação: o canal do youtube Folding Ideas - o vídeo sobre o gamergate.

Embora seja algo bastante específico - a acusação, por parte de um filho da p***, de que a ex-namorada teria os jogos por ela criados revistos nos órgãos especializados apenas por se relacionar com um jornalista - esse episódio escalou e tornou-se um tubo de ensaio para as técnicas que a direita usou durante as eleições.