21 março 2017

a Nova Putogalidade

Alguns apontamentos ainda a propósito do ruído à volta da palestra na FCSH e o debate sobre a liberdade de expressão:

1. Manipulações


Custa-me muito ver o espaço público a ser manipulado desta maneira por um grupo de putos. A ver se nos serviu a todos de lição. A começar por mim, que também me precipitei.


2. "Nova Putogalidade" ou "Trumpalhada à nossa moda"?

A primeira ideia com que fiquei da Nova Portugalidade foi a de um bando de putos arrivistas alucinados. O texto de Rafael Pinho Borges, "Reerguer a Portugalidade é o dever da hora", mostra um olhar para o passado imperial português com o deslumbramento do Atílio (lembram-se da telenovela "O Casarão"?) a remexer o estrume na sua banheira convencido de ter ali ouro. E a sua encenação de cócoras em frente à cama de Salazar lembra uma criança de dois anos a dizer "puta" para se sentir poderosa, porque sabe que é uma palavra com impacto. Bem, também me lembra uma conversa que ouvi a uma miúda de treze anos, que explicava à minha filha de nove: "quando for grande vou ser star. Não sei de quê, mas sei como chegar lá: faço escândalos, toda a gente fala de mim, fico famosa."
Depois li o artigo "Munique", e percebi que é ainda pior. É oportunismo e falta de decência.
Esse artigo foi publicado no dia 22.7.16, às 19:17 - à hora a que a rádio alemã ainda repetia "houve um tiroteio em Munique, não sabemos o que aconteceu, continuamos à espera de informações da polícia". Algumas hora mais tarde soube-se que se tratava de um alemão-iraniano movido por ódio contra estrangeiros (turcos, da antiga Jugoslávia, etc.). Que é que estes factos interessam ao líder do movimento "Nova Portugalidade"? Nada, absolutamente nada. À primeira notícia de haver tiros, mortos e muita confusão em Munique, disparou à queima-roupa para atingir políticos europeus. Parecia que tinha estado o tempo todo à espera de uma tragédia - e quanto pior, melhor. 

O artigo acusa nestes termos:

Entretanto, na Europa, as investidas de sicários contra alvos civis tornaram-se coisa tão banal quanto uma explosão na Estalinegrado de 1943.
Tinha razão Manuel Valls, o primeiro-ministro francês, que há dias pedia calma, um chá de tília e que nos habituássemos a viver com o terror.
Graças à escabrosa impreparação – mais, incompetência, falta de mundo, devoção imperdoável à falsa fé do multiculturalismo – da criatura e seus correligionários alemães, é o que parece estar a acontecer.
Fizeram da nossa casa comum – assim se lhe referia Gorbachev – uma trincheira.
Se tivessem espinha, já se teriam demitido ele e Merkel, culpada pelo massacre de Munique, e Hollande, Cazeneuve e Renzi.
Por sorte, há um homem que se distingue do escorralho.

(Deixem-me sublinhar esta obra-prima do estilo trumpista: "as investidas de sicários contra alvos civis tornaram-se coisa tão banal como uma explosão na Estalinegrado de 1943". Quem escreve assim não pode esperar que o levem a sério. Em lado nenhum - a não ser, talvez, lá no café dele, e depois de correr muito bagaço - e muito menos da Academia.)


2."Fascismo"

Será problema meu, mas não consigo levar a sério quem em Portugal acusa outros de "fascismo".
Explico: por um lado, assisti aos esvaziamento da palavra nos anos setenta em Portugal, quando foi transformada num insulto como outro qualquer. Por outro lado, sendo confrontada quotidianamente com memórias do fascismo alemão (um exemplo: perto do meu supermercado há árvores e carris que vieram de Auschwitz), acabei por criar imagens de referência de "fascismo" que andam muito longe do que conheço do Estado Novo. Alguns exemplos: culto do líder x respeitinho; excessiva politização x lobotomia política; imperialismo militar x "gestão do que é nosso". Não estou a tentar lavar a ditadura salazarista, mas apenas a notar que me parece estranho dar o mesmo nome a dois fenómenos com valores, práticas e consequências de dimensões tão diferentes como as do salazarismo e do III Reich. 
Pode ser problema meu, repito, mas não sei o que significa "fascismo" no caso português. Pergunto-me até o que significará hoje o "fascismo" referido na Constituição, e se o texto do artigo 46 ("4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista") não deveria ser mudado para:
"4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem ideologias colonialistas ou antidemocráticas".

Por este motivo, achei descabida a argumentação de alguns alunos da RGA da FCSH, quando defendiam que a Associação de Estudantes se devia demarcar daquele evento por ser organizado por fascistas. Fascistas? Não é qualquer arrivista alucinado que merece esse nome.


3. Fazer o trabalho de casa

Portugal ainda não se confrontou com a sua História. Talvez esteja a ser feito trabalho muito válido na Academia, mas ainda não chegou à população e ao discurso político. Ou então sou eu que estou mal informada. Em todo o caso, não encontro consenso na sociedade, como vejo na Alemanha, sobre questões essenciais da nossa História, nomeadamente a ditadura salazarista e a aventura ultramarina. Nunca vi representante nenhum do povo português a ajoelhar - como Willy Brandt fez no gueto de Varsóvia - perante um memorial sobre o nosso comércio de escravos, o massacre de Wiriamu, ou as cidades da rota das Índias saqueadas e reduzidas a cinzas pelos nossos egrégios avós - por exemplo. Em vez disso, vejo muitos portugueses cheios de saudades das colónias e do tempo em que "éramos tão grandes que o sol nunca se punha sobre o império", vejo Salazar a ser eleito o maior português da História de Portugal.
É preciso esclarecer todos esses mitos que o Estado Novo criou, e identificar os valores que lhes estão subjacentes. Enquanto esse trabalho não for feito, ficamos como estamos: parece que qualquer opinião é válida e tem o mesmo valor das outras. Como se estes temas fossem mera questão de gosto e "achanço".
É fundamental fazer debates - debates a sério, com apresentação de conclusões e passagem das informações para a opinião pública - e a Academia é o espaço por excelência para esse trabalho.
E também era um sinal da nossa decência e maturidade histórica se fizéssemos memoriais dos momentos negros da nossa História. Assim sem pensar muito (confesso que só pensei meio minuto, dêem-me um desconto), ficava-nos bem ter no Terreiro do Paço um labirinto da História, com os caminhos cheios de glórias (a conquista dos mares, o progresso científico, a interculturalidade, etc.), e as saídas marcadas por memoriais do que nos envergonha: como o comércio de escravos (e as consequências tanto para alguns países africanos como para  os descendentes dos escravos que ainda hoje são vítimas de racismo nos países onde nasceram), a violência das conquistas, o colonialismo.


4. Limites da liberdade de expressão

A este respeito, tenho ouvido de tudo - desde o "somos todos ainda mais que Charlie" até à imposição de determinados limites (nem é preciso ir muito longe: a wikipedia tem diferenças interessantes sobre este tema, conforme o idioma escolhido para o ler).
A confusão entre liberdade e libertinagem de expressão está a fazer do espaço público uma rua de maluquinhos a gritar perante a indiferença geral. Todos podem falar, mas ninguém ouve, e muito menos se entra em diálogo. Melhor seria que a liberdade de expressão fosse uma liberdade de pensamento (e não a criancice de dizer "puta" como o tal miúdo de 2 anos) e um exercício de boa-fé - boa-fé no raciocínio de quem fala, e boa-fé no acto de escutar uma opinião diferente.

Por outro lado, há que distinguir entre o direito de dizer o que pensa sem sofrer retaliações e a obrigação de dar palco a qualquer um. Penso que a Academia é um espaço privilegiado de debate de ideias, mas não tem de aceitar debater as ideias de todas as pessoas. Há mínimos de honestidade intelectual, de informação e de valores éticos que os miúdos da Nova Putogalidade não cumprem.




1 comentário:

Jaime Santos disse...

Estou como o Marcelo do RAP, concordo com a segunda parte, discordo da primeira, e tenho dúvidas em relação a duas vírgulas e um ponto de interrogação ;-). A questão de se saber se uma ditadura foi ou não fascista depende dos valores que a definem e do modo de organização do Estado (corporativismo), não do seu grau de crueldade. Se assim não fosse, teríamos que meter Nazismo e Estalinismo no mesmo saco (como pretende uma certa Extrema-Direita clerical que vê também no ateísmo o traço comum destas duas ditaduras) e claramente não podemos. Se dúvidas existem sobre se o Salazarismo era uma forma de Fascismo (um Fascismo Catedrático, como lhe chamou, creio eu, Unamuno), elas dependem mais da sua ideologia do que das ações dos Salazaristas. A discussão certamente continuará nos meios académicos. Quanto à falta de consciência histórica dos Portugueses relativamente ao seu Passado Colonial, parece-me Helena, que só os Alemães têm a pesada consciência histórica dos seus crimes passados porque a orgia de violência levada ao paroxismo pelo Nacional-Socialismo levou à destruição total da nação alemã e à sua derrota militar (um amigo alemão disse-me um dia que não sabe se teria sido realmente melhor se os patriotas do 20 de Julho tivessem conseguido matar Hitler, porque se assim fora, ele não teria sido responsabilizado pela derrota militar e sim estes, o que teria permitido o renascimento do Nazismo). Sem pretender dar desculpas aos Portugueses, estas questões também não são bem conhecidas de povos como os Franceses (veja-se a recente polémica a propósito das declarações de Macron em Argel), Britânicos ou Americanos, que mantêm uma visão idealizada dos respetivos Impérios. Por isso é que eu, que conheço razoavelmente bem a Alemanha, lhe disse um dia que desejava que os Portugueses fossem tão anti-fascistas como os Alemães, mas por razões históricas isto não é (até certo ponto, felizmente) possível...