21 fevereiro 2016

Berlinale 2016 - dia 2


Se inteligência é a capacidade de aprender, de se adaptar a mudanças e de lidar com a complexidade, as filas dos bilhetes da Berlinale estão cheias de Einsteins. E eu mais Einstein que os outros todos: depois do fiasco da quinta-feira, passei a sair de casa de madrugada, com o Joachim. Ficava na 17 Juni, atravessava o Tiergarten a pé à hora mágica do nascer do sol, e chegava cedo à fila para a caixa que abre às 8:30. Em pé, consultava febrilmente as folhas do dia, anotando os filmes para os quais não é preciso ter bilhete, e fazendo planos alternativos para o caso de não haver mais lugares.

Filas da Berlinale, é do melhor: as pessoas conversam, comentam os filmes que vêem, as expectativas que têm... Uma festa. No meu primeiro dia conheci uma mulher que faz programação de filmes para crianças e jovens, e me contou do refugiado de 18 anos que tem a seu cargo. O rapaz esteve seis meses em Berlim à espera de se registar, e nada. Foi para um Estado vizinho, registou-se em dois dias. Agora vai ser penalizado por voltar para Berlim, em vez de ficar onde se registou: não terá apoio da Segurança Social durante dois meses. Ela encolhe os ombros: "fica na minha casa, pago eu o que for preciso". Falou de haver agora burqas em Charlottenburg, onde mora. Burqas! Entre as pessoas à nossa volta na fila, havia consenso: há limites. A nossa sociedade não pode permitir mulheres cobertas por burqas e niqabs. "E como é possível que venham a fugir dessa gente, e tragam os seus piores tiques?", perguntou alguém. "As mulheres de burqa vêm do Afeganistão. Mas a maior parte dos sírios não foge do Daesh - vêm a fugir ao Assad", foi a resposta.
Gostaria muito de ver estatísticas sobre isto: quem são, de que país vêm, de que fogem?

O tema mudou. Fiquei a saber porque é que não se deve usar o saco da Berlinale do próprio ano: é muito fácil haver uma troca. A programadora de filmes infantis contou o pânico de chegar a casa, e descobrir que as chaves estavam no saco que outra pessoa levou por engano. Também me revelaram um truque fantástico: as sessões da manhã para a imprensa nunca enchem completamente. É muito fácil para os simples acreditados irem à sessão das nove - e com sorte conseguem também lugar na do meio-dia. "Os jornalistas ainda estão a curar a ressaca da noite anterior", disseram.

Levantei os meus bilhetes, informei-me sobre as possibilidades de milagre para conseguir entrar no workshop da Meryl Streep no domingo de manhã, e fui comprar bilhetes para a família, na fila dos comuns mortais. Do que me fui lembrar! A fila não estava comprida, mas demorava imenso tempo, porque havia muitos turistas que tinham vindo para o fim-de-semana na Berlinale, e, quando chegavam à caixa, em vez de pedir "2 do 120011, 2 do 130012, etc.", perguntavam "o que é que ainda tem até domingo às 2 da tarde?", e depois "esse filme de que país é? e sobre quê?"

À minha frente estava um refugiado mergulhado no seu smartphone. Provavelmente aproveitava as 2 horas grátis de wifi no Arkaden da Potsdamer Platz. Volta e meia uma senhora de meia-idade, com um ar um pouco ansioso, vinha ter com ele, e dizia-lhe em inglês que filmes se tinham esgotado entretanto. Ele ouvia em silêncio, ela voltava para o seu posto de observação, ele voltava para o smartphone. E eu atrás dele, a pensar que depois dos horrores de teres de fugir, e de teres de atravessar a Europa em condições tão difíceis, chegas à terra prometida e ficas à mercê de uma boa e ansiosa alma que faz questão de te ajudar à sua maneira, quer queiras quer não.
Talvez não fosse o caso daqueles dois, talvez nem ele fosse refugiado nem ela ansiosa. Mas a questão permanece: o absoluto estado de dependência da boa vontade e da caridade alheia torna os refugiados ainda mais vulneráveis.  





À tarde fui a uma competição de pitching organizada pelo Raindance. As pessoas têm dois minutos para contar ao público e ao júri a ideia do filme. Ao fim de minuto e meio toca um gongo, ao fim de dois minutos toca de novo, e se a pessoa continuar a falar, quem não quiser ouvir mais pode começar um aplauso lento. "A very british slow aplause", dizia o organizador. Também lhe podiam chamar mobbing, era horroroso. A pessoa apresentava o filme, dois membros do júri comentavam, o apresentador impedia qualquer espécie de diálogo, passava-se ao seguinte. Puro show. Teria a sua graça, se as pessoas não viessem com tantas esperanças de conseguir um apoio, e se não lhas destruíssem liminarmente. Por exemplo: o comentário dado à jovem de Hong Kong que apresentou uma história de emancipação feminina e sexual, uma história trágica e que fazia pensar, foi: "transforme isso numa curta cómica". Falei com ela no fim, disse-lhe que achava a sua história muito boa. Ela comentou que era dificílimo fazer um filme sobre este tema em Hong Kong, porque o mercado chinês não está nada receptivo.    
A minha amiga teve mais sorte. O pitch dela foi muito aplaudido, e os membros do júri elogiaram-no bastante. Bem precisa: anda a juntar cinco milhões para fazer o seu filme.
Ao meu lado estava sentado um inglês que se mudou recentemente para Berlim. Realizador, autor, fotografia, actor. Fazia tudo. Queria que eu lhe dissesse quais eram os melhores filmes desta Berlinale. "De que tipo de filme gosta mais?", perguntei-lhe, tentando orientar-me entre os quatrocentos do festival. "De bons filmes", respondeu. Parvo. E ainda dizem que é fácil fazer small talk. Por sorte começaram os pitches. O meu vizinho era péssimo colega: ao fim de dois minutos, começava logo a bater palmas pausadamente. Parvo e antipático. Por causa das coisas, quando foi a vez dele, nem sequer o ouvi. O que foi asneira: um dia destes ainda faz o filme, e fica famoso, e eu tinha aqui uma roupinha suja para vender ao Correio da Manhã, mas nunca mais vou saber quem era, e que filme trazia.

Em todo o caso: a mim é que não apanham a fazer pitching. Prefiro ir lavar escadas para juntar dinheiro para fazer um filme...

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