06 novembro 2015

"ruína" (1)







Sabem como é quando a gente se apaixona, e esquece tudo, e não há nada a fazer?
[abro uma pausa para todos darem os suspiros que quiserem] 
[acabou a pausa]
Uma vez apaixonei-me por uma ruína. Uma casa com o ar lastimoso de quem arrastou durante décadas as chagas da guerra e foi vítima dos maus-tratos continuados do pragmatismo da RDA. Apaixonei-me por ela nas escadas sombrias, sujas e cheias de tralha, e não quis saber de racionalidades, nem dei ouvidos aos risos da família, que me perguntava "tu queres levar-nos à ruína?!"
Duzentos mil euros mais tarde descobrimos que a nossa ruína era uma vila arte-nova. As obras trouxeram-nos dois sustos (quer dizer, três, se contarmos também os custos): descobrimos umas traves com fungos, que nos obrigaram a esventrar uma parte da casa para fazer o saneamento completo, e ao levantar o forro do tecto junto ao telhado encontrámos um diabo vermelho, a rir-se sarcasticamente para nós com os seus olhos verdes. Eu pensava que não sou supersticiosa, mas confesso que nesse dia fui. Assustei-me, tive dúvidas sobre a minha paixão, quase me arrependi. Um ano mais tarde, um velhote de Weimar comentou, a rir, que era uso antigo esconder um diabo no telhado - "porque há sempre um diabo qualquer numa casa que se preze". Portanto: o que eu tinha deitado fora, cheia de nojo e medo, era um pequeno fantoche feito à mão no princípio do século XX. Bem feita, quem me mandou ser supersticiosa?
Foi também ele quem sugeriu que aquela casa teria sido construída pelo cunhado do Mahler, o judeu Arnold Rosé, que era primeiro violoncelista na Staatskapelle. Gostei da hipótese, e de imaginar que fiz uma cozinha enorme na sala onde, nos anos vinte, Mahler, a irmã e o cunhado teriam feito Hausmusik. Se calhar aquele fantasma triste que andava pelo sótão era o Arnold Rosé, que vinha pedir contas, mas nunca mas pediu. Ter-lhe-ia dito "amigo, desculpe, mas a cada um a sua arte", e servia-lhe uma fatia de bolo de chocolate, ainda morno. Ou então era o segundo dono da casa, já me esqueci do nome dele, o talhante que fornecia Buchenwald, e se embrulhou de tal modo em arranjinhos corruptos com o comandante Koch, que a SS se chateou e enforcou ambos. Também podia ser um dos descendentes do talhante, tentando recuperar a casa que os russos expropriaram. Às tantas, andavam todos lá pelo sótão, cada um pelas suas razões. Como será que os fantasmas fazem para se organizar, será que passam a eternidade pegados uns com os outros? "Chegue-se para lá, seu nazi!", "cala-te, judeu!", "vocês não discutam, que daqui a nada chega aí o comandante russo e trama-nos a todos". Também podia ser o fantasma do Stasi - a única explicação que tenho para todos os telefones que encontrei instalados na garagem é que na casa viveria um Stasi (ter-lhe-iam dado o apartamento do bel étage?) que passava os dias a escutar a vizinhança. Não sei se esse ainda é vivo, não sei se morreu e anda agora de escuta às portas de todos.

- Quantas histórias cabem numa ruína?



Sem comentários: