01 fevereiro 2014

praxe: em vez de proibir, responsabilizar



Do que tenho observado, podia fazer-se assim uma síntese do debate da praxe que tem estado a decorrer (e agradeço desde já a todos os que têm conversado comigo sobre isto, nos blogues e no facebook):

No lado dos críticos da praxe encontramos:

- Os que afirmam que a praxe está profundamente errada nos seus princípios, porque vive do autoritarismo, do poder discricionário, do abuso e de jogos de poder e submissão que rapidamente descambam para situações indignas e inaceitáveis. E que tudo isso ocorre num ambiente de coacção que muitos tentam mascarar de liberdade.

- Os que defendem a dignidade dos caloiros mas se esquecem de os respeitar, falando deles como se fossem um bando de mentecaptos. E também os que dizem que a praxe não respeita os caloiros, e que em vez de os mandar fazer cenas tristes deviam obrigá-los a ser voluntários numa instituição social...

No lado oposto, o dos defensores da praxe, encontramos:

- Pessoas que fizeram a praxe, gostaram muito, e sentem que a Academia perde algo importante se a praxe for proibida - a praxe é boa, os abusos são maus, castiguem-se os abusos mas não se mexa na praxe. Para além disso, definam-se limites (tais como: não pode haver castigos corporais, não se pode obrigar o caloiro a beber ou comer algo que ele não queira, não se pode cortar cabelos ou danificar vestuário e outros objectos, a praxe só pode ocorrer em áreas bem delimitadas e está proibida em determinados locais, a praxe não pode dificultar o funcionamento da Universidade, não se pode impedir um aluno de frequentar as aulas, etc.)

- Alunos que defendem a praxe porque lhes dá um poder fácil que lhes agrada muito (lembro a confissão do autor da experiência "The Third Wave": sentiu um prazer especial na obediência cega dos alunos). Este aspecto é particularmente importante, porque é o menos falado mas é aquele que provocará maior resistência à criação de praxes sem tiques de autoritarismo. Porque, e disso não tenho a menor dúvida, qualquer tentativa para mudar o espírito da praxe, tornando-a num processo de acolhimento e integração do caloiro, em vez de ser uma licença para gozar e experimentar o sabor do poder sem peias, vai ser ferozmente boicotada por esses que sentem que as novas regras lhes roubam a sua coutada de caça.

- Universidades interessadas em usar o "espírito académico" como isca para atrair estudantes/clientes.


Pessoalmente, não tenho nada contra dinâmicas de grupo para receber e integrar os novos elementos de um grupo. Mas tenho imenso contra o fundo de autoritarismo e lixo paramilitar nos códigos da praxe, as dinâmicas de abuso de pessoas que se sujeitam a uma inacreditável assimetria de poder baseada em nada, e a impunidade com que alguns se arrogam o direito de invadir o espaço de dignidade pessoal dos colegas, bem como o espaço da cidade e dos cidadãos.
Contudo, para não destruir as recordações de uns (os que passaram pela "boa praxe") e os sonhos de outros (os alunos que escolhem as Universidades em função do "espírito académico"), proponho uma maneira de resolver a questão da praxe a contento de todos: simplesmente, responsabilizar quem organiza os eventos.

O organizador (ou o grupo de organizadores) do evento tem de o registar na secretaria da sua Faculdade e pagar uma caução, e responde pessoalmente pelas suas consequências - seja um jardim público estragado, seja danos físicos ou psicológicos em algum dos participantes. Só participa nesse evento concreto quem exibir uma autorização passada pelo organizador, e assinada pelo portador (tanto os caloiros como os alunos mais velhos). O organizador pode expulsar os participantes (afinal de contas, é ele o responsável por tudo o que acontecer ali, e tem de se precaver no caso de alguns participantes começarem a perder o tino). Os participantes podem abandonar o evento em qualquer momento, e fazer queixa do organizador caso sejam alvo de alguma forma de coacção.

Depois, é deixar andar - sabendo que os danos materiais serão cobertos pela caução (e, acima desse valor, será exigido o pagamento ao organizador do evento ou, de forma solidária, aos organizadores) e que a acusação de eventuais abusos, independentemente dos seus autores, será automaticamente dirigida contra o responsável ou o grupo de responsáveis.

Bem sei que estou a ser muito dura com os organizadores do evento da praxe. Mas, lá está:  "Dura Praxis, Sed Praxis" - e não fui eu quem inventou o lema. Sendo a praxe uma preparação para a vida, parece-me muito útil incluir o conceito de responsabilidade neste processo.

No fundo, isto cria um mecanismo automático anti-descarrilamento. Se estiver bem claro, à partida, quem tem de chegar à frente caso alguma coisa corra mal, é muito menos provável que alguma coisa corra mal. Acaba-se com a impunidade.

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"Mas então eles passam a fazer as coisas sem lhe chamar praxe"
Nesse caso, se forem vistos - por exemplo - a rastejar com pedras agarradas aos pés, ou a chatear comerciantes, não podem responder "oh, não se meta, que isto é a praxe". Perdem o escudo de impunidade que a praxe até agora lhes tem conferido.

"Coitado do responsável, como é que ele se pode responsabilizar por uma dinâmica de grupo com pessoas que não conhece?"
Uma dinâmica de grupo com um responsável é sempre melhor que uma dinâmica de grupo sem um responsável. E este pode em qualquer momento parar tudo, recolher as autorizações e mandar o pessoal dispersar. Até pode pedir ajuda à polícia, se for caso disso.

"Isto implica custos suplementares para o secretariado da Universidade"
A Universidade pode cobrar uma taxa para o registo do evento, e o responsável pode vender as autorizações para participar - a, digamos, 50 cêntimos cada uma. Para além de juntar algum dinheiro para pagar a taxa e até eventuais danos, tem a vantagem de ser um acto simbólico pelo qual os participantes declaram que querem realmente participar.  


3 comentários:

mar disse...

Acho que a minha perspectiva sobre a questão é, no essencial, muito semelhante à da Helena.

A minha sugestão passaria pela obrigatoriedade de um Conselho ou Comissão de Praxe de qualquer universidade se constituir enquanto associação formal de forma a deixar de estar à margem da lei (que é o que acontece actualmente). Os estatutos do Conselho ou Comissão de Praxe teriam de ser aprovados pelos orgãos directivos da respectiva universidade. Os Sr. Manueis Damásios desta vida não podiam ir para a Sic dizer que não é nada com eles quando alguma coisa corre mal, como no post lá em cima. Os elementos do Conselho ou Comissão de Praxe poderiam distribuir brochuras a promover a associação e a fornecer toda a informação sobre o código de praxe aquando as matriculas. No primeiro dia de aulas, os novos alunos já tinham reflectido sobre o assunto. Se estivessem interessados, podiam formalizar a sua inscrição, pagando a quota anual (com um valor simbólico comportável para todos os estudantes) e levando uma fotografia tipo passaporte para fazer o cartão de associado (sem o qual não seriam admitidos na praxe).

Temo bem que não veremos uma realidade próxima das nossas divagações num futuro próximo. Já ficaria satisfeita se, pelo menos, o 'Oh, quem não quiser pode dizer que não' desse lugar ao 'quem quiser tem de dizer que sim'. É, a meu ver, o passo mais importante

Gostava também que as pessoas comuns começassem a questionar o "oh, não se meta, que isto é a praxe". Afinal, que validade é que isso tem num Estado de Direito? Não tem nenhuma, por muito que me venham com o discurso da tradição...

Costumo perguntar às pessoas que usam o argumento 'É a tradição/ faz parte do Código de praxe' para justificar, por exemplo, a legitimidade das trupes/gangues de veteranos que cortam o cabelo aos caloiros que encontram na rua 'fora de horas' em Coimbra (conheço um rapaz a quem isso aconteceu no ano lectivo 1996/1997; espero sinceramente que este costume medieval já tenha sido abolido), se também aceitam o argumento 'É a tradição/ faz parte do código religioso' quando usado para justificar a excisão genital de meninas (que também acontece em Portugal). Bem sei que exemplo é extremado e brutal mas é por isso mesmo que o uso: sendo coisas tão diferentes, acabam por ser tão iguais...

Helena Araújo disse...

Sempre que me falam nos cortes de cabelo eu lembro uma judia a contar-me que a cena que mais a chocou na Lista de Schindler foi justamente a das tesouras no cabelo. Mas até agora não tinha dito nada, por causa do Godwin do costume. É mesmo só um aparte.

E é isso mesmo: o "não se meta, isto é a praxe" é a frase mágica que permite a impunidade. É preciso acabar com a impunidade.

mar disse...

Não sei o que Godwin diria sobre a comparação com anti-nazis mas a mim os cortes de cabelo fazem-me pensar nas "femmes tondues" após a libertação da França ocupada. (Na altura, acho que só pensei que eram uns selvagens, sem qualquer referência histórica).