22 outubro 2013

entardecer



Tinha nove anos. Era a hora do jantar, na sala dos móveis Arte Nova. A mesa de toalha branca bordada, coberta de cristais, e à minha frente um prato de canja com um raminho de hortelã. Tinha sido feita no fogão a lenha, na cozinha enorme e antiga, e cheirava que era uma beleza.
E de súbito aquela tristeza que me nascia ao fim do dia, sem razão - a não ser, talvez, uma saudade do sol.

Hoje, ao ouvir os primeiros acordes da canção "Die Stille Stadt", de Alma Mahler, acreditei que ela também sentia uma irreprimível vontade de chorar quando lhe punham à frente uma canja com hortelã, deliciosa, numa mesa rica ao fim da tarde.

8 comentários:

CCF disse...

Sinto tal e qual! Mesmo sem a canjinha :)
~CC~

Helena Araújo disse...

:)
Mesmo agora, "depois de velha", me impressiono quando essa súbita nostalgia se apodera de mim. E é sempre à hora do sol-pôr.

Rita Maria disse...

As pessoas parece qe querem ser infelizes caramba - estou farta de vos dizer que se tirarem a hortelã já não há cá lugar a tanta melancolia.

(alguns compositores e cantores isolados podem continuar a comer canja com hortelã, para que não se percam certas tristezas especialmente bonitas)

Helena Araújo disse...

Hahahahaha, Rita.

(Neste caso, não sabes o que é bom!)

Gi disse...

Helena, já sentias a tristeza do crepúsculo aos 9 anos? Criança precoce. Comigo isso só começou muito mais tarde. Felizmente já passou.

Helena Araújo disse...

Sim, era muito precoce, eu...
Às vezes ainda me dá. Sou muito serôdia, eu... ;-)

margarete disse...

uso e abuso deste poema:

Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.


EUGéNIO DE ANDRADE
in Os Sulcos da Sede, 2001


Helena Araújo disse...

margarete, obrigada - belíssimo poema.