05 junho 2013

"Ora então, boa noite!" (1)

No princípio do Verão passado o semanário Die Zeit trazia um artigo sobre o programa "Dark Sky" no Alentejo. Lemos no avião, a caminho de Portugal, e logo ali decidimos que tínhamos de ir conhecer.
O que se segue é a tradução (rapidinha, rapidinha) desse artigo.
Com uma nota prévia da tradutora: vimos com estes que a terra talicoiso, e tal, e garantimos que é ainda melhor do que aqui está descrito. Imperdível.

Zambujeira do Mar (foto do mesmo artigo)

Ora então, boa noite!


No Alentejo, em Portugal, os turistas gostam de tactear no escuro: equitação, canoagem ou wellness depois do pôr-do-sol - debaixo de um céu com Selo de Qualidade.


É uma noite quente de lua cheia no Alentejo, e três homens passeiam a cavalo. São alazões orgulhosos e altos, que os levam pelo terreno acidentado. Não se ouve qualquer ruído da civilização. Apenas a canção monótona das cigarras.
Passam por oliveiras retorcidas que terão mais de mil anos. Na berma do caminho, pedras megalíticas erguem-se contra o céu iluminado pelo luar, testemunhas mudas de uma história de ocupação ainda mais antiga. A iluminação ténue, o vento morno e o sossego quase inquietante fazem com que por momentos acreditemos que tudo pode ser possível: um ataque repentino de guerreiros romanos ou visigodos, cavaleiros árabes que surgem de trás de um arbusto, a entrada marcial de um grupo de templários.
A fortaleza de Monsaraz, com as suas torres e muralhas, desenha-se no horizonte, sobre uma elevação, banhada numa luz amarelada e pálida. É a guardiã do Guadiana, o rio que ali marca a fronteira com a Espanha. Há um par de anos barraram a sua água neste lugar, cerca de 200 km a leste de Lisboa, para fazer o lago do Alqueva - e surgiu a maior barragem da Europa. Contudo, os cavaleiros nocturnos não vieram para ver o lago. Pouco antes de Monsaraz, viram para os estábulos de betão caiado da Casa Saramago, numa aldeia chamada Telheiro.
"Muito bem", diz Tiago, numa mistura insondável de elogio e troça, "já tinha um ar muito profissional". Tiago é o meu professor de equitação. Da sela de toureiro, especialmente alta, deixo-me deslizar para o chão, e tiro o capacete suado. Depois dou umas palmadinhas no pescoço do meu cavalo Paciência, este milagre de mansidão. Digo-lhe em voz alta "Obrigado", e penso: sobrevivi! Afinal de contas, tinha sido a primeira vez que me pus em cima de um cavalo. E à meia-noite!
Aprender a montar na escuridão da noite é uma ideia pouco convencional. O professor não pode ver se o aluno, que só sabe andar de mota, carrega tanto tempo no travão do cavalo que ele acaba por meter a marcha atrás. Contudo, não vim até aqui para me tornar um perfeito cavaleiro. Vim para conhecer uma nova atracção turística muito especial no interior de Portugal, a "Dark Sky Route". À volta da barragem do Alqueva, os agentes de turismo uniram-se para oferecer um programa às escuras. A atracção: poder finalmente voltar a saborear uma noite realmente escura, com o céu estrelado, a Via Láctea e as estrelas cadentes. E também observar o universo com telescópios, ao lado de astrónomos amadores, escutar animais noctívagos com guias - e, como contei, fazer hipismo.   

 

"Ali à frente, aquele candeeiro redondo - tem de desaparecer!"


O Paciência livrou-se da sela, e já foi esfregado. Vou a cambalear até ao meu quarto na Casa Saramago, e despacho num ápice mais algumas moscas. Depois caio na cama, muito satisfeito. É tranquilizador saber que cada albergue que participa na "Rota do Céu Escuro" tem de oferecer mais do que um programa nocturno (como o Francisco, que é produtor de azeite e tem este night horse riding) e mais que binóculos e telescópio e conhecimentos básicos de astronomia. O - talvez - melhor de tudo é que os hóspedes, depois de uma noite tão rica de experiências, no dia seguinte podem dormir à vontade. A hora de saída pode ser bem mais tarde que o habitual. Na manhã seguinte rebolo para fora da cama às onze da manhã, e dão-me sem reclamar um pequeno-almoço fulminante.
À tarde a Apolónia vem-me buscar de carro. É devido a esta mulher, pequena e enérgica, que o Alentejo aparece hoje nos circuitos de viagens com a sua Dark Sky Route. A Genuineland, uma organização não lucrativa privada chefiada por Apolónia, assumiu a tarefa de criar conceitos turísticos inovadores para ajudar regiões rurais empobrecidas da Europa. Regiões como o Alentejo, que se estende entre o centro de Portugal e o Algarve, e é considerado pobre, atrasado e com pouca oferta cultural. No Verão tem um calor abrasador que pode ir acima dos 50 graus. A comida consiste basicamente em azeite, alho e pão velho. E se se pergunta por eventos culturais recebe-se um longo silêncio, que finalmente dá lugar à palavra: tourada. Uma região de onde se foge. E é isso mesmo que acontece. Em nenhuma região de Portugal se assiste a tão forte debandada do interior. Lembra um pouco a Frísia Oriental - tanto mais que também há anedotas de alentejanos. Como esta: numa corrida entre um caracol e um alentejano é costume ganhar o caracol, mas desta vez perdeu porque foi desqualificado - fez duas falsas partidas.  
Desde 2008, a organização dirigida por Apolónia tenta desenvolver a região. Nesse ano, Genuineland teve a ideia de atrair turistas com a escuridão da noite alentejana. Justamente com aquilo que nos faz pensar em pobreza: mal um país começa a enriquecer, as suas cidades, ruas e fachadas cobrem-se de luz. Paralelamente, letreiros luminosos fazem prova de prosperidade.
Quem atravessa as aldeias no carro com Apolónia ganha uma perspectiva completamente nova. "Ali à frente, aquele candeeiro redondo", diz ela, e aponta para uma lanterna típica dos pátios, "tem de desaparecer. A maior parte da luz vai para o céu! É poluição luminosa." Uma expressão praticamente desconhecida ainda há dez anos. A iluminação desenfreada de fachadas, praças, bairros inteiros, auto-estradas: tudo isso leva ao desaparecimento da noite do tempo dos nossos bisavós - com aquele céu estrelado brilhante, que hoje em dia quase só conhecemos de simulações no Planetário. Há gerações a crescer sem alguma vez terem visto uma estrela cadente.

Imagino a Apolónia à noite a atirar sobre os candeeiros


Imagino a Apolónia a deambular durante a noite e a atirar sobre os candeeiros. No fundo, ela tem razão na sua luta por um céu com estrelas: a poluição luminosa global é um problema cultural - e cada fonte de luz confunde os animais noctívagos, ou pode até ser-lhes uma armadilha. A ausência da noite também afecta os humanos: provoca distúrbios nos níveis hormonais, com consequências para a saúde ainda não estudadas. Além disso, esta iluminação geral do globo representa um gigantesco desperdício de energia.
"Monsaraz, por exemplo", diz Apolónia, "a quantidade de luz que irradiava ainda há poucos anos! As pessoas deviam reconhecer logo as suas muralhas e torres." Foi necessário um processo demorado e até um novo presidente da Câmara para fazer avançar o projecto "céu escuro". Last but not least, a crise financeira deu uma ajudinha à Apolónia - menos luz significa menos despesas camarárias. Monsaraz tem agora uma iluminação tímida. E em muitas localidades à volta da barragem do Alqueva os candeeiros da rua apagam-se à meia-noite. Apolónia afirma (e quem a conhece acreditaria nisso imediatamente) que se pusessem mais algum projector luminoso para a muralha de Monsaraz, lhe bastava um telefonema para o fazer apagar logo no dia seguinte.

(continua)
 

2 comentários:

jj.amarante disse...

Quando não havia auto-estrada de fio a pavio de Lisboa ao Algarve eu costumava frequentemente parar o carro no Alentejo um bocadinho no meio da noite para ver as estrelas, que uma pessoa na cidade até se esquece que elas existem. Na Fóia em Monchique também havia muitas mas só nas noites sem neblina, o que não era tão frequente como no Alentejo.

Helena Araújo disse...

Quando regressámos da canoagem a meio da noite também parámos o carro na berma da estrada, num sítio sem casas. É magnífico, realmente.