23 maio 2013

memorável




Na sexta-feira assisti ao ensaio geral, e saí encantada. Depois veio o fim-de-semana, e à medida que os concertos se sucediam, a minha vontade de voltar à Filarmonia ia ficando cada vez mais insuportável. Que o Claudio Abbado faz 80 anos daqui a um mês e sabe-se lá quando volta a Berlim, que "os Filarmónicos não são conhecidos pelos seus ensaios gerais, mas pelos seus concertos", e tal, e coisa... Estava tudo esgotadíssimo há eternidades, mas quase por milagre alguém devolveu um bilhete para o último destes concertos, e deram-mo. (Ou pensam que a Nossa Senhora só ajuda ali para os lados da troika?)

Quando ele entrou na sala, o público aplaudiu de forma diferente dos outros dias: longa e calorosamente. E eu a pensar "oh diabo, querem lá ver que agora já me cai uma lagrimazita ainda antes da primeira nota?"

A orquestra é extraordinária, e neste concerto superou-se. O Sonho de Uma Noite de Verão, de Mendelssohn-Bartholdy, foi arrebatador. Gostava que tivesse terminado com essa peça, para eu fazer o caminho de regresso a flutuar de nuvem em nuvem, mas ele preferiu mandar-me para casa com uma noz dura de roer, a Sinfonia Fantástica de Berlioz. Com a ajuda do programa comecei a entendê-la, mas tenho ainda muito trabalho para fazer. Vou ouvir mais vezes - e a cada vez verei esse maestro neste momento, e dele quase só a cabeça enorme no corpo mirrado, e a magia nas mãos.

Da Sinfonia Fantástica:
Segundo movimento - Un Bal: Valse. Allegro non troppo



No final, o público aplaudiu uns bons vinte minutos. Numa das vezes em que voltou ao palco, o maestro queria que a orquestra se levantasse para agradecer, mas o concertino riu-se e recusou. Como quem diz: aceite esse aplauso, é todo para si. As palmas redobraram de intensidade, e não pararam nem mesmo quando a orquestra se foi embora. O Abbado voltou, sorriu-nos no meio do palco vazio, pôs as mãos sobre o coração. Já disse hoje que adoro esta cidade?

***

Momento "Revista de Otorrinolaringologia e Pneumologia": 

A epidemia que grassa entre a população berlinense está cada vez pior. Talvez seja alergia aos pólenes, talvez algum efeito especial nas cordas vocais quando se ouve música suave. No terceiro andamento da Sinfonia Fantástica, por exemplo: diz que é uma cena campestre, e até me lembrou a Montanha Mágica - o sanatório da Montanha Mágica.


Da Sinfonia Fantástica:
Terceiro movimento - Scène aux champs: Adagio

(ou: Scènes au Sanatorium: Agitato con brio)




Momento "Revista de Psiquiatria":

A meio do Sonho de Uma Noite de Verão entrou um casal na Ehrenloge, onde eu estava. Vinham esbaforidos e nervosos, porque tinham bilhetes óptimos para o bloco B, mas como tinham chegado tarde não os deixaram entrar, e levaram-nos antes para esta espécie de sala dentro da sala, onde se pode entrar sem incomodar o restante público. Sentaram-se. Daí a nada, zzzzzzzzz, a senhora abre o fecho éclair da carteira para tirar um saco de plástico, rsrsrsrs, do qual tira um rebuçado para dar ao marido, rrrr rrrr rrrr rrrr rrrr rrrr rrrr rrrr rrrrr, aquele papel de rebuçado restolhava interminavelmente. Rebuçado na boca, papel no saco, rsrsrsrs, saco na carteira, carteira fechada, zzzzzzzzzzzzzz. Cinco minutos mais tarde, zzzzzzzzzzzzz, carteira aberta, rsrsrsrsrs, saco plástico cá fora, zuca-zuca-zuca-zuca para escolher a caixa de medicamentos certa, crrrr para abrir a caixa, ploc para abrir a garrafa, e toca de deitar gotas nos olhos do senhor velhinho. Ploc para fechar a garrafa, crrr para fechar a caixa, zuca-zuca para a meter no saco, rsrsrsrs saco para a carteira, zzzzzzzzzzzzzz fecho éclair fechado. Sossegaram por uns momentos, mas eis que zzzzzzzz fecho éclair aberto, rsrsrsrs saco plástico, rrrrrrrr papel do rebuçado, rsrsrsrs saco plástico, zzzzzzzzzzzz fecho éclair fechado. E logo a seguir ta-ta-ta-ti-ta - o telemóvel.
Depois do intervalo devem ter ido para o bloco B. Ou então para a Psiquiatria, talvez fosse melhor.

4 comentários:

Paulo disse...

Estamos muito mal se já nem em Berlim se pode assistir a um concerto em sossego. Eu acho que se devia fazer testes às pessoas antes de as deixar entrar nas salas.

Carla R. disse...

Aaaaahhhh detesto isto. E quando depois desatam todos aos SSShhhhhh e ficam naquilo tanto tempo como o tempo do barulho inicial ? AAAaaaaaaaahhhh !!!

Da proxima vez que for a Berlim também quero um concerto memoravel !

Gi disse...

O Abbado tem magia nas mãos, não tem? Eu só o conheço da televisão, mas admiro-lhe a elegância os gestos.

Quanto ao momento ORL: não sei se é dos pólens mas estou de uma maneira que não poderia agora ir a concerto nenhum, por mais memorável!

E ao momento Psi: excelente descrição, estava mesmo a vê-los.

Helena Araújo disse...

Gi,
sim, tem magia. E também me impressionou a desproporção entre a cabeça e o corpo. Uma grande cabeça!

Tu estarias capaz de não ir a um concerto só por medo de espirrar?! Vou dizer que haviam de te pôr uma estátua em frente à Filarmonia! :)

Quanto aos velhotes: não, não sei se viste tudo. É que era mesmo inacreditável: ela a pé a deitar-lhe gostas nos olhos em pleno concerto!