14 fevereiro 2013

a revolução em combustão lenta

As notícias que me chegam de Portugal sobre controlos apertados à saída dos cafés, para verificar se os clientes pagaram com factura, não me surpreende nem choca: já há muito me habituei a guardar as facturas para não me habilitar a uma multa, quando estou na Itália - país onde se estima que a fuga aos impostos, entre pagamentos sem factura e rendimentos não declarados, ande anualmente pelos 120 mil milhões de euros.

Já os protestos que ouço em Portugal me surpreendem. Fazendo as contas muito por alto: 5 milhões de bicas vendidas todos os dias sem factura, a 50 cêntimos cada uma, com IVA de 23%, dá meio milhão de euros que em vez de entrarem nos cofres do Estado ficam nos bolsos dos donos do cafés. Note-se que nestes casos o estabelecimento cobra o dinheiro do imposto, mas não o entrega ao Estado. 

De onde nos vem este ímpeto de Robin dos Bosques? Os cafés e restaurantes aos quais fazemos questão de oferecer o imposto devido ao Estado estão em tal situação de precariedade que o desvio se justifica? Por que motivo aceitamos que alguém nos cobre um imposto, e fique com ele em vez de o entregar ao Estado? Como podemos conciliar este acto voluntário de cumplicidade na fuga aos impostos com a crítica à redução do Estado Social? 

Sim, eu sei: que esse dinheiro vai para os Bancos e as PPPs, que "eles" são todos uns corruptos, que esta fiscalização exacerbada é sintoma de totalitarismo. Que é uma forma de protesto. 

Não há dúvida: para grandes males, pequenos remédios. Façamos a revolução em combustão lenta - ajudando o dono do café a guardar para si o IVA pago pelo cliente, acendendo fogos-fátuos no facebook e no twitter. 

***

Ando a pensar vender um terreno, e na discussão do preço disseram que me dão o dinheiro na mão. Na altura não percebi qual era o interesse da coisa, mas uns meses mais tarde caiu a ficha: talvez seja para me facilitar o acto de protestar.
E agora, que me aconselham: "protesto", ou pago os impostos devidos?
Estava muito tentada a pagar os impostos, tudo certinho (isto são  mais de 23 anos num campo de reeducação alemão...), mas confesso que me sinto um bocado lorpa. 

Lorpa? A Elisa Lucinda é que sabe: "Dirão: Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba, e vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau.
Dirão: É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal. 
Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!"

Também é uma proposta de revolução em combustão lenta, mas agrada-me muito mais: é um fogo que limpa. 

15 comentários:

Rita Maria disse...

Acho que estás a despachar a falta de confiança das pessoas no Estado como coisa ligeira, detalhe, parvoíce delas, irresponsabilidade imatura, mas não é - se eu vejo dia após dia mais comerciantes a fechar, mais cafés a encerrar portas e mais pessoas no desemprego, eu deixo de confiar na legitimidade da política económica, da qual cobrar impostos faz parte. E começo a aceitar formas muitas mais formas de lutar contra isto do que aceitaria normalmente, porque o Estado passa da entidade colectiva cuja base sou eu a um "eles" que está claramente do lado oposto da barricada.

Eu, honestamente, já não tenho argumentos contra isto - não tenho um único motivo pelo qual se deva confiar no Estado Português. E, devagarinho, confiar "por princípio" não chega.

Goldfish disse...

Pequenas ajudas à compreensão de alguém que não vive cá há algum tempo:

De onde nos vem este ímpeto de Robin dos Bosques?
Quase todos fugimos mais ou menos a algum imposto. É difícil pagarmos uma coisa que nos parece não servir para nada a não ser enriquecer mais os mesmos.

Os cafés e restaurantes aos quais fazemos questão de oferecer o imposto devido ao Estado estão em tal situação de precariedade que o desvio se justifica?
Estão. A descida do número de clientes é visível a olho nu, os cafés (restaurantes, lojas, colégios, you name it) onde já há um empregado a menos são muitos e muitos também os que já fecharam. É assustador, acredita.

Por que motivo aceitamos que alguém nos cobre um imposto, e fique com ele em vez de o entregar ao Estado?
Ninguém pensa que está a pagar imposto. Está a pagar um café.

Como podemos conciliar este acto voluntário de cumplicidade na fuga aos impostos com a crítica à redução do Estado Social?
Fácil... Não há exactamente falta de dinheiro, mas muito dinheiro mal-gasto. Ele há quem ache que uma reforma de 1000€ é dinheiro mal-gasto apenas porque é superior à que aufere, que há. Mas também há quem seja muito mais racional nas críticas ao uso que se dá ao dinheiro que é de todos. E o que é certo é que a Segurança Social não era deficitária até há pouco tempo, mesmo com o saque ocasional por parte de vários governos para tapar buracos noutros lados - nomeadamente nos seus próprios bolsos.

Nem digo que não tenhas razão - no abstrato. Na realidade que cá conhecemos (cada vez mais) o sentimento generalizado é este. O que me assusta, e é a segunda vez que hoje digo o mesmo numa resposta a dois posts com ideias opostas, é que a nossa democracia, tão frágil, se vai desmoronando a pouco e pouco e vislumbro um lamaçal como o que vivíamos há 40 anos no futuro...

Baltazar Garção disse...



É o paradoxo do bom em teoria, mas péssimo na prática! Claro que há um trabalho descomunal a fazer em Portugal sobre a gravidade da fuga aos Impostos, sem dúvida nenhuma. Também eu trazia a facturinha na mão quando saía de um café em Itália (agora já não, que nunca mais poderei lá ir, a menos que emigre...), para não ser multado.

O problema é que em Portugal passou o tempo para a pedagogia, para o diálogo e até para a serenidade: a palavra de ordem actual é DESOBEDIÊNCIA CIVIL MACIÇA, tal o descrédito COLOSSAL em que os poderes reais do País caíram nos últimos dezoito meses - guverno, przidente, Parlamento, os Tribunais e a Banca - na opinião da esmagadora maioria da população portuguesa.


Esse é que é o verdadeiro problema de Portugal!

Helena Araújo disse...

Rita,
se deixares de pagar impostos o país fica melhor?
Se fizeres questão de não pedir a factura da bica, vai mudar alguma coisa? Se à bica se juntar o restaurante e o pão (digamos: se esta resistência fizer com que as pessoas paguem uns dois ou três milhões de euros em IVA que o Estado não recebe) tens a certeza que estão a ajudar a empresa que mais precisa, e que não estão a castigar os errados? No fim, é no SNS que vão fazer os cortes...

sem-se-ver disse...

porque o Estado OS QUER FAZER NO SNS quando NÃO era obrigado a tal.

entendes? :)

Helena Araújo disse...

Goldfish,
como é possível fugir aos impostos e ao mesmo tempo queixar-se que o Estado Social está a desaparecer?

Também vejo a democracia a desmoronar-se todos os dias um bocado mais, mas não é com gestos destes que ela melhora.
Mesmo que conseguíssemos fazer cair o governo - um novo governo (PS, não é?) não seria muito diferente deste. Provavelmente saberia comunicar melhor, mas duvido que tivesse condições para abrir o garrote.
(E é melhor nem lembrar que as PPPs foram coisa muito usada pelo PS, e que foi também esse governo quem nacionalizou a dívida do BPN)

Sinto-nos num beco sem saída.

Helena Araújo disse...

Baltazar,
e antes? Isto não começou apenas há dezoito meses.
E depois? Aonde é que queres chegar com a desobediência civil maciça?

Helena Araújo disse...

sem-se-ver,
o Estado não é obrigado a fazer cortes no SNS? O SNS recebe o suficiente em contribuições directas para pagar o que gasta?
(estou a perguntar porque não sei mesmo)

António P. disse...

Boa noite Helena,
Acho que está a ver mal a questão.
Por pontos rápidos:
1. A factura é obrigatória parece que há 25 anso.
2. Como diz, a maioria sai das pessoas sai ads lojas com facturas.
3. Se não sai não quer dizer que o comerciantete não a tenha emitido ou registado na caixa.
4. O Estado controla o comerciante de várias maneiras, para isso existem as contabilidades, o IES e as inspecções aos estabelecimentos.

Agora multar o cliente por não sair para a rua com factura parce-me um absurdo. Eu quando bebo uma bica, uma água e compro um jornal, ao balcão aqui na vila, recebo a factura e deito-a no caixote de lixo do "Café"...so what? E depois sou multado na rua? Com que autoridade?
Eu também sou a favor de pagar impostos, mas ser multado por não sair com uma factura???!!!!
Aí na Alemanha é o que fazem?
E não quero entrar pelo caminho, de na actual situação, ser justo a desobediência civil face a um governo de ladrões.
Cumprimentos

Helena Araújo disse...

António,
uma pessoa vai vivendo e aprendendo. Por causa desta história das facturas acabei a lembrar-me da quantidade de contas em restaurantes que já me foram apresentadas em forma de gatafunhos numa folhinha de papel.
É mesmo para acreditar que esse montante depois foi registado na caixa?
É mesmo para acreditar que a regra, nestes estabelecimentos, é pagar os impostos certinhos? E que o Governo está a fazer esta agitação toda com facturas e fiscais só porque sim, porque gosta de pôr montanhas a parir ratos?
Aqui na Alemanha não há fiscais à porta das lojas. Mas não se esqueça que aqui há uma cultura de estar atento e obrigar os outros a cumprir a lei. O troco é dado automaticamente com o registo da caixa, e nunca recebi uma conta escrita à mão numa folhinha de papel (excepto nos mercados de rua).
Já na Itália, foi o que aconteceu: para impedir essa fuga aos impostos, havia mesmo fiscais à porta dos cafés a pedir para ver a factura. O Passos Coelho não inventou nada de novo.

Baltazar Garção disse...


Helena,

1) ISTO começou exactamente há dezasseis meses, para ser bem preciso. Resta saber o que tu entendes por "isto", mas aqui em Portugal é MUITO CLARO (nota-se que não vives cá): é aquele momento em que as pessoas deixaram de viver bem, para passarem a viver MAL (e cada vez pior, sempre, sempre pior)!


Um marco como este NÃO É RETÓRICA, É VIDA e não há argumentos racionais que o possam demolir, nem da mente, nem sobretudo da alma.


Antes desse momento, as pessoas viviam bem e tinham moderada esperança! O Estado é que supostamente estava mal (tal como muitos outros Estados europeus, aliás...), mas o País continuava muito bem, ou como sempre, desde que há crises...


Mas depois desse momento (a fatídica aprovação do O. E./2012), depois de Outubro de 2011, as pessoas começaram lentamente a perder os rendimentos e a esperança.


E DE NADA LHES SERVE DIZEREM-LHES QUE TUDO FOI FEITO PARA SALVAR O ESTADO, primeiro porque salvar o Estado à custa das nossas vidas é como salvar o barco e deixar morrer os passageiros afogados (grande salvamento...), segundo porque O ESTADO MANTÉM HOJE TODOS OS MESMÍSSIMOS PROBLEMAS QUE TEM DESDE 1978 e corre até o risco de, pelo aumento imparável da recessão, ACABAR ESTA SAGA TODA EM PIORES CONDIÇÕES DO QUE NA ALTURA DO INÍCIO DO RESGATE!


Hoje, todos perderam já muitos rendimentos, mas sobretudo quase TODA A ESPERANÇA! Não pode subestimar-se um sentimento destes! Sobretudo quem tem descendentes. O Estado continua mal, mas agora soma-se-lhe também o País, que está de rastos, e as pessoas, que estão na ruína, atónitas e apavoradas!


Achas que é tempo agora de lhes vir falar de pedagogia e colaboração? Se não entendes assim, não sei como te explicar melhor o que é que começou a formar-se nesta terra há dezoito meses...


2) O que é que eu quero atingir com a desobediência civil maciça? Qualquer coisa, não sei bem, uma ruptura, um "sobressalto cívico" (pergunta ao Cavaco, ele é que patenteou o conceito), ou algo mais profundo, visceral e irreversível: pergunta talvez ao Ghandi, ao Luther King, ou ao Mandela...

mar disse...

Helena, acho que a onda de indignação relativamente à questão das facturas não se deve tanto às pessoas não quererem pagar impostos (afinal, com ou sem factura, o valor do IVA já está incluído no preço) mas mais ao facto de o Estado, incapaz de resolver o problema da fuga ao fisco, parece querer não só delegar as suas obrigações no cidadão comum mas também penalizar o cidadão comum pela incapacidade do Estado em cumprir as suas obrigações. O Estado somos todos nós? Pois somos... mas na conjuntura actual não parece.

E em Itália os fiscais podem continuar à porta do café mas a fuga ao fisco continua em grande: vivi em Itália durante quase dois anos; andei quase dois meses à procura de alojamento e nunca encontrei um possível senhorio disposto a passar-me recibo e muitos nem aceitavam pagamento por transferência bancária porque isso "deixava registo".

Baltazar Garção disse...



É DISTO

http://economico.sapo.pt/noticias/razoavelmente-em-linha_162708.html

que estou a falar.


É uma anormalidade histórica sem quaisquer precedentes, não é uma minudência político-desportiva para discutir no café.


Quem tem um tumor maligno no organismo, não tem paciência para discutir unhas encravadas...

Jonas disse...

Ando a tentar por a escrita em dia..... por isso chego muito atrasada a este post (não desisti da leitura, apenas fui obrigada a adiar).

O sistema que implementaram agora em Portugal, que me permite pedir uma factura, identificando o meu número de identificação fiscal (NIF), para depois poder verificar se o comerciante a quem eu paguei o valor, o declarou, dando-me o direito de reclamar caso o comerciante não o tenha feito, é altamente Pidesco.

Faz-me lembrar uma técnica posta em funcionamento pela ditadura, muito eficaz, pôr os portugueses a vigiarem-se uns aos outros.

Eu pago os meus impostos, espero que os outros façam exactamente o mesmo. O esforço tem de ser de todos, mas a responsabilidade de fiscalizar tem de pertencer a quem tem a responsabilidade de assegurar a recolha.

Não estou disponível para ser fiscal de impostos, e andar a bufar o parceiro do lado. Eu pago os meus impostos, e não admito que niguém venha meter o nariz na minha vida.

Helena Araújo disse...

Jonas,
não tinha percebido que ia até aí. Pareceu-me que se pode pedir com o NIF para descontar depois nos impostos, ou pedir o normal - e que há fiscais à porta dos cafés a pedir para ver esse recibo.

Não me custa nada fazer questão de ter o recibo, porque corresponde a um imposto que eu paguei e deve ser entregado ao Estado. Não me custa nada mostrar o recibo ao fiscal que mo pedir (lá está: o Estado a fiscalizar). Mas nem pensar em andar a controlar o resto.

Quanto a bufar o parceiro do lado... vamos continuar a assistir impávidos e mudos ao roubo ao Estado? Desde os meus colegas na universidade que iam de carrinho para a escola (naquele tempo andávamos todos de autocarro, e muita sorte) mas recebiam ajuda do Estado para poderem estudar, porque a fábrica dos paizinhos passava sempre muito mal, até aos jeep a que chamavam IFADAP, e tantos outros exemplos que todos conhecemos, mas ninguém faz nada!
Em compensação, conheço uma mulher em Portugal que vivia com uma pensão de 70 euros e a ajuda do salário mínimo da filha - não pediu o rendimento social de inserção com medo do falatório na aldeia.