21 dezembro 2012

sonata de Outono - andamento prestissimo (Dresden)



A primeira vez que me lembro de alguém ter falado de Dresden foi no dia 13 de Fevereiro de 1990 - o meu sogro passara toda a manhã mal disposto, e à hora do almoço referiu o terrível bombardeamento da cidade, os muitos milhares de refugiados mortos pelo fogo - uma notícia que marcou fundo a sua infância. A segunda vez, tínhamos acabado de nos mudar para Weimar, nem televisão tínhamos ainda: enquanto esvaziava caixotes, ouvia na rádio notícias trágicas sobre a Florença do Elba debaixo da água - o Zwinger inundado, a Semperoper e todo o centro histórico também.

(fonte

A terceira, foram os meus sogros, de novo: tinham ido a Dresden, regressaram fascinados, contavam sobre a Marienkirche, e sobre um professor de engenharia que aguentou a ruína durante quarenta anos: sempre que queriam destruir o que restara do bombardeamento, ele pedia que não o fizessem já, que tinha uns doutorandos a pesquisar a estática da igreja, e que lá se ia o trabalhinho todo buldózer abaixo. A quarta vez, foi a caminho da Polónia: ao passar junto a Bautzen, ao maravilhar-me com a beleza daquela terra, a alemã que conduzia o carro perguntou se eu não conhecia Dresden - "tens de lá ir, essa sim, é uma cidade realmente bonita". Finalmente, a exposição Friederisiko, sobre Frederico o Grande, que fizeram este ano em Potsdam, apresentava Dresden como o objecto cultural da cobiça do prusso - os quarenta vasos de cerâmica de Meissen em estilo "bola-de-neve", expostos no Neues Schloss de Potsdam como valiosíssimo troféu da guerra ganha, o famoso quadro que Frederico deixou ficar na cidade, limitando-se a mandar fazer uma cópia para o seu palácio - como quem apregoa que também sabe ser magnânimo.

O que tem de ser tem muita força: tínhamos de ir a Dresden, e o fim-de-semana do meu aniversário dava um óptimo motivo. Chegámos ao fim da manhã de sábado, e largámos rapidamente para o Zwinger. O famoso Zwinger, onde arquitectura e arte se combinam e misturam como se fossem a mesma coisa. Avisaram-nos que às quatro havia uma visita guiada aos Alte Meister, pelo que resolvemos ir antes disso até à Marienkirche, a igreja recentemente reconstruída.





Fomos andando pelo meio de todos aqueles monumentos, entrámos na igreja, tentámos destrinçar o que restou da antiga e o que é novo, descobrimos chocados a cruz de ferro toda retorcida que se salvou do incêndio - e subimos à torre. O que foi uma asneira enorme, porque lá de cima vê-se perfeitamente a cicatriz da guerra: a cidade medieval e barroca toda destruída, os prédios da RDA e da ofensiva de construção civil desenfreada que se seguiu à queda do muro, os lugares de desterro entre as casas - uma paisagem urbana que não resulta de um crescimento lento e doce ao longo dos séculos, uma cidade que dói.


Olhando com cuidado para as casas, vê-se bem que se limitam a citar a antiga arquitectura. Um conjunto estranho, um quer-mas-não-pode. Que fazer de uma cidade inteiramente destruída? Os polacos sabem reconstruir como se nada se tivesse passado. A RDA construía caricaturas do que foi. A RFA reconstruía com um ar de novinho em folha, os objectos a brilhar com uma perfeição que os fazia parecer o que são: artificiais.
Em Dresden vi os edifícios históricos com a fachada reconstruída, alguns deles com interiores inteiramente modernos, e ruas com casas "à la mode" (para citar ementas de restaurantes americanos) - sublinhando a mentira de todo o cenário. Parece-me ser um caso exemplar de "sei que não vou por aí", porque o resultado é deprimente.


  


Comemos uma salsicha na rua, entrámos num café muito bonito no terraço de Brühl (a "varanda da Europa", dizia Goethe) para um intervalinho de café e bolo: sentados no meio de reproduções de quadros famosos dos museus de Dresden, olhando para o rio que corria do lado de lá da porta de vidro.

Descobri finalmente o nome daquele famoso bolo que comi em Praga: pelos vistos, é uma especialidade de Dresden, o "dresdner Eierschecke" - mas o de Praga era mil vezes melhor, e agora podia fazer um pequeno discurso sobre a globalização, para concluir que não é boa ideia exportarmos pastéis de nata, até porque já conheço em Berlim um cozinheiro alemão que os faz deliciosos, ai a nossa vida!


Saímos do café pouco depois das três, já o sol lançava uma luz rasa de fim de tarde.




Antes da visita guiada à pinacoteca, percorremos a parte do Zwinger dedicada à cerâmica. "Enfim", pensava eu, "cerâmica não é propriamente o que mais me interessa na vida, mas já que está incluído no preço do bilhete..."
Cerâmica não era o que mais me interessava na vida, mas uma pessoa não consegue atravessar aquelas salas e sair ilesa. E mais não digo - só visto!

Os Alte Meister estavam todos lá. Tantos, e em tal profusão, e tão conhecidos, que às tantas me perguntava se sobrou algum para os outros museus. Tantos, que a guia nem sequer conseguiu falar de todos os mais importantes. No fim da visita percorremos de novo as salas onde já tínhamos estado,  descobrindo por nós o que ela não mostrara: "olha ali aquele Rubens famoso, Leda e o cisne!" e "olha esta cena sub-aquática, que coisa impressionante!" e a colecção espanhola e francesa, em cujas salas nem chegáramos a entrar. Numa sala mais longínqua vimos um conjunto genial de retratos do séc. XVI (como é que a modernidade já tem 500 anos?), e tantos outros. Os Alte Meister pedem vários dias, e muitas horas de visita guiada.

Os guardas começaram a avisar que eram horas de fechar, e nós vimo-nos tristemente obrigados a sair. Atravessámos a praça, e fomos à Semperoper buscar os bilhetes que tínhamos reservado. Tencionávamos ir ainda ao hotel vestir algo mais adequado à ópera, mas descobrimos, ao levantar os bilhetes, que nos tínhamos enganado na hora. Começava às sete, e não às oito - daí a uns minutos!

O Joachim olhou desconsolado para as suas calças de ganga, para a camisola desportiva. Eu, da segurança das minhas botas elegantes e do meu vestido todo-o-terreno, animei-o: "somos berlinenses, não precisamos de nos preocupar com esses detalhes". Enchemos os bolsos com rebuçados Ricola que estavam à mão de semear em caixas enormes (grande ideia!), reservámos o vinho e os petiscos de salmão para o intervalo (sim, que não faço anos todos os dias), e sentámo-nos na galeria, a saborear o ambiente. Metade do público parecia ter vindo de Berlim, embora alguns tivessem tido tempo de ir ao hotel mudar de roupa. Havia senhoras com vestidos fascinantes - infelizmente, não tive coragem de fotografar um vestido sem costas que nem era preciso ver mais nada. E havia também as pessoas socializadas na RDA, que vestiam a sua roupa de excelente qualidade, mas com design dos anos oitenta ou noventa (tanto que podíamos aprender com eles! e tanto que o nosso planeta agradeceria!).

Uma certa euforia tomou conta de nós: estávamos na Semperoper. Olhávamos para a decoração das paredes e dos tectos, os edifícios históricos à volta da praça. Um sonho.







Antes do início da ópera, a Flauta Mágica, três figuras faziam pantomina no palco. Eram os três génios, vestidos com uma curiosa roupa que me deixava indecisa entre os teletubbies e o cirque du soleil. Descobriria mais tarde, à terceira vez em que o Papageno falava da falta de uma mulher, e pela terceira vez lhe saía um patinho vermelho pela carcela: ah, afinal eram os teletubbies. A figura da rainha da noite, com laivos de domina, e das três damas, com mamas e nádegas enormes, encaixavam bem no conjunto. A ópera foi salva por Sarastro e Pamina, excelentes cantores.
A famosa Semperoper é isto? Para isto é que pagámos bilhetes tão caros?, pensávamos desconsolados. Será que as pessoas compram a marca "semperoper", para receber espectáculos com qualidade de "discount"? Um fenómeno a observar com mais cuidado.





Na praça, os edifícios-cenário exibiam-se numa glória reforçada pela noite, e nós fomos jantar a uma cervejaria bávara.




(Ooops, este post já vai enorme, e ainda falta o domingo inteiro!)

No dia seguinte saímos à procura de um sítio onde tomar o pequeno-almoço (aviso aos viajantes: tomem o pequeno-almoço no hotel), e depois invadimos o palácio, para conhecer a colecção da Grünes Gewölbe e a Türckische Cammer. O palácio ardeu praticamente todo na sequência do bombardeamento, mas depois da reunificação resolveram reconstruir as antigas salas de exposição, no rés-do-chão, segundo o modelo histórico e aproveitando o máximo do que fora possível salvar. O resultado é muito bonito, e a colecção (o que não foi destruído na guerra, o que não foi retido como despojo) é fascinante. E demasiado - seriam precisos vários dias para apreciar convenientemente tudo aquilo.
Começámos pela colecção de objectos do império otomano, testemunha da febre de orientalismo que atravessou aquela corte. As tendas de cuidadosos bordados, as armas cheias de ornamentos, as roupas, os arreios dos cavalos, os quadros e as descrições das festas da época - coisas do outro mundo. Praticamente tudo recebido como presente diplomático, ou comprado por um enviado de Augusto o Forte, grande apreciador dessa cultura, que se aproveitava bem dos conhecimentos do súbdito (e também da mulher dele - a maitresse turca do rei. Aquilo eram uns tempos que sabe Deus...).
No antigo Grünes Gewölbe fomos esmagados pela colecção e pelas salas. Na parte moderna da exposição demos o tilt. Não é possível ver tanta beleza num dia só (parece que me estou a repetir, mas é mesmo só para deixar bem claro). O "microgabinete", por exemplo: uma salinha com peças para apreciar à lupa, onde se vêem curiosidades como um caroço de cereja no qual esculpiram umas 150 cabeças. E não vou contar mais, que estou a ver se acabo este post ainda hoje.

Saímos do palácio, fomos em busca de um restaurante para almoçar. Encontrámos um engraçado: o Augustiner an der Frauenkirche - restaurante da Baviera! Parece que Dresden foi invadida por bávaros - ou empresas de restauração, ou turistas, ou ambos (é o mais provável).



Começava a ficar tarde, mas resolvemos espreitar ainda o Albertinum, com a sua colecção de arte moderna - a Galerie Neue Meister, que pouco fica a dever à Galerie Alte Meister do Zwinger.

Depois regressámos a Berlim. Mas (não tenho a certeza de já ter dito isto) voltaremos a Dresden!
Tanto mais que só depois me disseram que não vimos a parte mais bonita da cidade, a Neustadt. E não tivemos tempo de ir à Pfunds Molkerei.

 (fonte)





5 comentários:

Paulo disse...

Estava há uma eternidade à espera disto. Não só para saber como tinha sido "A Flauta Mágica" (pobre Mozart, o que os Alemães andam a fazer-lhe), mas principalmente para saber como está Dresden agora. Eu ainda a conheci antes da revolução construtural, isto é: ainda só existiam edifícios da RDA, os restos e o amontoado de pedras da Frauenkirche e muitos edifícios históricos enegrecidos, desses restaurados/reconstruídos. Restaurantes e cafés eram poucos. E com tudo isto, achei-a uma cidade linda e fascinante.

Helena Araújo disse...

Fascinante, sim.
E aposto que também foste à Neustadt, onde eu tenho de ir da próxima vez!

Pronto. Dresden já está. Agora já só me falta fazer o post sobre os 25 anos da Kammermusiksaal e os 40 da Orchestra Academy. E depois os poucos que não escrevi ainda sobre as férias nos EUA em 2009... ;-)

Paulo disse...

Claro que sim. É só atravessar o Elba. Contudo, parece-me que naquela época ainda não estava trendy como agora.

jj.amarante disse...

Gostei das fotos da ponte com a luz do por-do-sol. Ou foi de madrugada? A fulana estava a fazer sombras chinesas?

Anónimo disse...

Passei por aqui para lhe desejar um Santo e Feliz Natal!