13 junho 2012

a minha insularidade em oásis transformada


Ontem, ao fim da tarde junto à Porta de Brandemburgo, havia uma sala cheia de gente a saborear as palavras de Gonçalo M Tavares. A alemã ao meu lado, de auscultadores para ouvir a tradução simultânea (da Sarita Brandt, que deve ter feito um trabalho excepcional, a avaliar pelas reacções do público), volta e meia olhava para mim e abria um sorriso enorme, ou largava exclamações do género "este homem é arrebatador - parece que já entendeu algo essencial".

(Eu toda orgulhosa, parecia o ministro Relvas: muito contentinha por poder mostrar ao mundo que Portugal tem "activos humanos" de tanta qualidade...)

Na representação da Comissão Europeia em Berlim, a um passo do Parlamento alemão e da Chancelaria, o escritor falou da Democracia em risco. Por um lado, vítima da pobreza e do desemprego: pessoas pobres não podem participar na Polis porque têm problemas mais imediatos para resolver diariamente; o desemprego é muito mais que uma mera questão contabilística, porque os desempregados não estão em condições de participar activamente na vida política do país. Por outro, vítima de opções sem visão que põem em causa o futuro - a propósito das opções a nível da Cultura, deu o exemplo de alguém que troca uma árvore com uma maçã por um cesto com cinco maçãs. A curto prazo, parece-lhe que fez uma troca vantajosa: lucrou quatro maçãs...
Falando das referências que deviam conduzir as opções dos governantes, citou Hans-Christian Andersen: "pediram-me para rezar, e eu só me lembrei da tabuada". Lembrou também a atitude oposta: "pediram-me para dizer a tabuada, e eu só soube rezar" (hehehe, mais um que ainda não percebeu que Portugal existe por obra e graça da Nossa Senhora...)

Tantos temas que gostaria de debater com ele! O desemprego dos jovens, por exemplo: pode ser um mal que resulte em bem, um reajustamento democrático. Veja-se o que se passou na escola da Fontinha, e a ocupação subsequente de um quartel de bombeiros abandonado. A acção destes jovens desempregados do Porto que ocupam edifícios devolutos para os recuperar e prestar serviços culturais gratuitos à população mais pobre tem um enorme potencial subversivo. Perante actos de tal generosidade, não há como defender o respeito pela propriedade privada e pela autoridade. Se eu fosse ao Rui Rio, e quisesse manter o status quo, arranjava rapidamente tachos de animador cultural para essa gente toda. É aburguesá-los, senhores, encher-lhes o papinho. Caso contrário, ainda germinam aqui sementes de revolução entre a arraia miúda: «Os pequenos aos grandes depois que cobraram coração se juntavam todos em um, contra eles, chamavam-lhes traidores, cismáticos, que tinham a parte dos Castelhanos, para darem o Reino a cujo não era... E era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus neles e tanta cobardice nos outros que os castelos que os antigos reis por longo tempo, jazendo sobre eles com força de armas, não podiam tomar, os povos miúdos mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, antes do meio-dia os tomavam por força». (Fernão Lopes)

Ou o exemplo das maçãs, que imediatamente me lembrou um abaixo-assinado em defesa de uma rádio cultural, de que falei aqui há tempos: "A Rádio Cultura deve estar virada para o ouvinte; não lhe deve ser demasiado banal nem o deve contentar, mas despertar o seu interesse, mostrar conexões e oferecer perspectivas invulgares. A Rádio Cultura dá vida a um conceito abrangente de cultura."

A sessão continuou. Gonçalo M Tavares referiu-se ao leitor como "a segunda parte do livro".
Bom, se os livros são um "monte você mesmo", como os móveis da IKEA, penso que deviam ser vendidos um pouco mais baratos. Melhor ainda: será que se disser ao meu livreiro que vou ler aquele livro à noite, cinco minutos antes de adormecer, ele me faz um bom desconto por me estar a vender um livro de má qualidade?
(Helena Araújo, Lda. - a produzir disparates desde há quase meio século)

Contou também o seu processo de produção: cortar, cortar, cortar. Reduzir quinze páginas a quatro. Essa foi a parte em que corei um bocadinho, ao lembrar-me do tamanho dos meus posts (este, por exemplo).
O moderador fez então um comentário muito interessante: o Gonçalo M Tavares também é poeta. Dichter, em alemão. Palavra que tem a mesma raiz de verdichten (comprimir, condensar).

Leram algumas passagens do livro. A tradução é da Marianne Gareis, e pareceu-me de tal elegância e fluidez que cheguei a imaginar que o original não conseguiria estar tão bem. Já me aconteceu isso há tempos, quando essa tradutora leu uma passagem de "As Intermitências da Morte" e eu tive de resistir ao impulso de comprar o livro em alemão...
No fim da sessão ela contou um pouco sobre o difícil trabalho de ser fiel à ideia de compressão do texto, e escrever em alemão frases igualmente despojadas. Para quem conhece os hábitos de exactidão desta língua, desde logo expressa nos milhentos prefixos que permitem fixar o preciso sentido de um verbo, entenderá o esforço que é pedido ao tradutor para manter o texto o mais aberto possível.


(Aqui está um momento de raro significado simbólico: a Alemanha de cócoras em frente a Portugal, rendida à sua produção cultural, com o Parlamento Europeu como pano de fundo.)



Depois da sessão, juntou-se um grupinho que raptou o Gonçalo M Tavares para o levar ao concerto do Carlos Bica e do Norberto Lobo. Fomos jantar à Turquia (na Karl-Marx-Strasse), depois corremos para o concerto no Altes Finanzamt, que é um espaço de cultura underground daqueles tipo isto-só-visto. Claro que a sala estava a abarrotar (desde que criaram redes de passagem de informações como o grupo Portugueses em Berlim no facebook e o cartaz da Berlinda.org, eles parece que são mais que as mães) pelo que eu tive de me ir sentar no chão bem à frente, junto aos músicos. Sou mesmo uma pessoa azarada.
Um belo concerto: a guitarra a combinar lindamente com o contrabaixo, e aqueles dois músicos em perfeito diálogo mudo. Mas estou outra vez a repetir evidências.
Gostei especialmente da concentração no olhar do Norberto Lobo quando observava o Carlos Bica, e dos momentos em que começava a cantar. Em suma: mais um concerto demasiado curto.

Depois fomos para os lados da Arábia beber cerveja belga e bávara no Yuma Bar, e conversar até muito depois das tantas. Quem corre por gosto...
...no dia seguinte arrasta-se com um cansaço que não se acredita.

3 comentários:

Gaia Adoa Coelho disse...

Ontem, 13 de Junho, estive mais umas quantas pessoas, que o futebol não conseguiu cativar/roubar, a participar na apresentação em Frankfurt!
Fiquei rendida!
:)

Helena Araújo disse...

Aaah, agora me dou conta disso: sessão literária com um escritor português em dia de jogo de Portugal!
E não tiveram a sala às moscas? Vivam as gentes de Frankfurt!

Por essas e por outras é que sou muito a favor de casamentos interculturais. Eu, por exemplo: se andasse a preparar algum evento cultural desses, o meu marido avisava-me com meses de antecedência que me arriscava a marcá-lo em cima de um jogo importante.

sem-se-ver disse...

não é por acaso que a língua alemã é a filosófica por excelência



(ainda estou parva, e a saborear, o dichter e o verdichten)