19 abril 2012

a minha vida a atrapalhar a minha vida (3)

As opiniões dividem-se, uns acham que a amizade é mais importante que a homenagem, outros dizem que esta homenagem só acontece uma vez e a amizade permanece. Eu entendo as razões de todos (nem sei porque é que ainda não me convidaram para a ONU), mas depois de saber quanto custava mudar a data do voo (caramba, eu não queria comprar o avião inteiro, com hospedeiras dentro, e piloto, e tudo!) descobri que a amizade é realmente muito importante, e que homenagem nenhuma do mundo justifica desfazer um encontro que se combinou com uma amiga especial.

Plano B: eu fico em Lisboa. O Joachim tenta tirar duas horas de férias para participar na homenagem. A Christina também. Vamos escrever uma carta ao director de turma do Matthias, explicando porque é que nessa manhã o nosso filho vai faltar a algumas aulas, e convidando a turma toda a vir assistir, com a professora de História. É no 8 de Maio, dia do armistício (que aqui se chama "dia da libertação"), e estes miúdos alemães de 15 anos verão como uma rua inteira se uniu para honrar a memória dos seus antigos vizinhos, vão ouvir um kadish e poemas de Paul Celan.

Ontem falei com os vizinhos que iniciaram esta dinâmica. Convidaram um músico muito bom, vão fazer um pequeno discurso a contar como surgiu a ideia e como as pessoas da nossa rua aderiram, falarão da responsabilidade de transportar a memória na forma simbólica destas pedras-quase-túmulo com os nomes das pessoas, que se misturam às pedras da nossa calçada.

Leite negro da aurora bebemo-lo ao anoitecer / bebemo-lo ao meio-dia e de manhã bebemo-lo à noite / bebemos e bebemos / cavamos uma sepultura nos ares... 


- começou o vizinho a recitar, e a mulher dele cortou: "se lerem esse poema, fujo para a outra ponta da rua. Vai ser mais do que consigo suportar."



5 comentários:

sem-se-ver disse...

(eu tb acho que seria demais para o que eu conseguisse suportar)

que maravilha de solução, helena.

ri-me com 'essa' de que devias ter ido para a onu e lembrei aquela tira da mafalda em que ela se imagina como tradutora-intérprete na onu. sabes qual é? com uma mafalda, já mulher - os mesmos cabelos, mas mais magra, como a mãe - completamente atrapalhada porque estava entre um russo e um americano a insultarem-se mutuamente? :D

(torcendo para a prof de história do mathias alinhe!)

Helena Araújo disse...

Claro que me lembro dessa tira da Mafalda! hehehe

Sim, também me parece que quanto mais a gente sabe o que aquilo foi, mais sensível fica aos vestígios - e este poema é uma tareia descomunal.

A professora de História, se não alinhar, merece despedimento imediato com justa causa... ;-)

Lucy disse...

pois é uma solução linda e, mais uma vez, o que parece pode não ser. Não vai lá estar uma pessoa mas muito mais gente fica a saber (incluindo as e os fiéis leitoras/leitores)

Rita Maria disse...

Linda? Vocês aí todas comovidas, imagino se fossem vocês. Primeiro acenaram-me com o sacrifício: às tantas conversamos mas nem saibas o que me custa. Depois fui oficialmente preterida, para todo o mundo ver. E por último no mesmo fórum público fui retomada com base em critérios exclusivamente económicos. Se não fosse o meu lado minhoto já ninguém me arrancava de debaixo de uma mesa com a dor, a vergonha e a humilhação. Ó mundo cruel.

Helena Araújo disse...

Põe-te com gracinhas dessas, põe, Rita.
Depois eu morro do coração e tu choras muito, "coitadinha, era tão boa pessoa mas nunca entendia as minhas piadas, nem quando fazia anos nem nada, snif snif"
;-)