25 março 2012

cómoda

Os sem-abrigo fazem um jornal (para ser mais exacta, em Berlim são dois) que vendem depois pelas ruas e nos transportes públicos. Que compramos, satisfeitos por eles estarem a fazer algo útil, e nós participarmos de algum modo nesse processo: aquele jornal comprado é um elo que os integra na nossa normalidade.
Os sem-abrigo berlinenses que vendem o seu jornal são os nossos pobres, e estamos de bem com eles (eu sei, contra mim falo, podem começar a bater, "arranje-me um pobre, mas sem tuberculose, que esses morrem muito" - ou algo assim, é uma frase de Lobo Antunes que volta e meia me vergasta).

Já não me dou tão bem com os pedintes romenos que começaram há alguns anos a aparecer nesta cidade, e exibem esses jornais numa capa de plástico para pedir esmola. Incomoda-me o abuso e a deturpação do sentido - quase como a profanação de um símbolo.

Depois de um Verão em Portugal, o Matthias deu a uma dessas pedintes-de-jornal-no-saco a moeda do carrinho do supermercado, e comentou, como quem explica: "talvez seja uma cigana portuguesa, temos de ajudar".
Imaginei que, na cabeça dele, sendo portuguesa faria "nós" connosco. E dei-me conta que tenho os pobres arrumados em categorias: os nossos, pelos quais me sinto responsável, e os outros.

Muito espertinho quem se lembrou de chamar "cómoda" a um móvel de gavetas.

2 comentários:

Pedro disse...

O Conselho Português para os refugiados está a passar por graves dificuldades económicas. Uma das suas colaboradoras, vive aqui no bairro e no grupo do Fb da Junta de Freguesia fez um apelo à solidariedade. Vozes levantaram-se de imediato: - Então e os nossos pobres, quem os ajuda?

Mas, por muito chocante que isso possa parecer - somos todos pessoas, lembro-me sempre do adágio de que a caridade começa em casa (caridade e solidariedade dava outra discussão, mas não entremos por aí)

Helena Araújo disse...

Pois, Pedro, eu percebo isso.
Por outro lado, fome é fome - independentemente do passaporte da pessoa.