11 outubro 2011

Hokusai - mil nomes para um talento





1. Uma exposição berlinense começa sempre por um prologado contacto com o seu público...

Devido às enormes filas de espera que se criam, as grandes exposições berlinenses são sempre interessante matéria de estudos antropológicos, e a retrospectiva de Hokusai, no Martin-Gropius-Bau, não frustrou as minhas expectativas: à entrada, três filas – duas para a caixa, uma para os aparelhos áudio. Uma das filas da caixa era interminável, a outra estava vazia. Fui para a segunda, comprei os bilhetes em menos de um minuto, voltei à primeira para informar sobre o prodígio, mas só consegui convencer um casal de velhinhos, que avançou um pouco renitente para o espaço vazio em frente à segunda caixa. Todos os outros ficaram onde estavam - quem os saberá entender?
Nestes momentos questiono-me sempre sobre as diferentes maneiras de ser dos povos. O que faz com que os portugueses, de um modo geral, sejam tão mais atentos e desenrascados?

Havia ainda uma quarta fila, e era a pior: já de posse do bilhete, esperámos três quartos de hora para entrar na exposição. À minha frente, uma mulher jovem lia o seu livro, alheada de tudo. Atrás de mim, uma sexagenária tentava familiarizar-se com o seu aparelho áudio, e atrás dela uma rapariga dava beijos no namorado japonês como se fosse um amuleto. Revelei à senhora alguns segredos do aparelho. Avisei dois casais com bebés que não precisavam de esperar na fila, porque é habitual dar prioridade a pessoas com crianças pequeninas. Hesitei se havia de dizer o mesmo à mulher em avançada fase de gravidez, mas não disse, por uma espécie de embaraço perante este meu impulso de querer salvar o mundo todo. Ainda corria o risco de os outros se porem a fazer estudos antropológicos a respeito das portuguesas...

Aproveitei o tempo para ir adiantando trabalho: pus-me a ouvir a descrição dos quadros no aparelho áudio. O 1 era a introdução, não havia 2 nem 3 nem 4 nem 10. Tentei o 100, era um quadro. E o 101 e o 102. Facilmente descobri que às salas era atribuído o dígito das centenas, e em cada uma delas havia duas ou três descrições no áudio. Já ia na sétima sala quando finalmente pude entrar na exposição.


2. ...mas a longa espera costuma valer a pena

Rapidamente me apercebi que fora um erro grave ter-me esquecido dos óculos para ler. Muitas das obras são em tamanho diminuto, mas com grande profusão de detalhes. Além disso, para não as danificar, as salas estão escassamente iluminadas. Por isso, aqui deixo um aviso a quem interessar possa: levem muito tempo, óculos - e até uma lupa.
A exposição está organizada de forma cronológica, atravessando as várias fases do artista, a que correspondem nomes diferentes. Dois elementos sobressaem deste o princípio: o humor e uma grande empatia pelos retratados. O estilo vai mudando, os temas também, o talento revela-se com traços e cores cada vez mais seguros e, pelo meio de tudo isso, notas humorísticas e plenas de ternura que nos fazem sorrir. Olhando algumas das peças, imaginei Hokusai a rir bem-disposto em pleno trabalho de criação, abrindo no próprio rosto as expressões - ora sonhadoras ora zangadas ora melancólicas ora prazenteiras - das figuras que desenhava. De nome em nome, de fase em fase, chego a uma das suas obras mais conhecidas: “A Grande Onda de Kanagawa” que, segundo dizem, inspirou Claude Debussy na composição do poema sinfónico “La Mer”. Informam-me que os japoneses vêem os quadros da direita para a esquerda. Experimento: a onda torna-se muito mais dramática e ameaçadora.




Sigo. Perco-me nos milhentos livros que fez: livros de manga (que significa “desenho sem propósito concreto”), ensaios pedagógicos para ensinar a desenhar. Cada página, todo um mundo. Avanço para outra fase, outro nome. Delicio-me com as gravuras, demoro-me nas pinturas, surpreendo-me com as diferenças de estilo e a sua versatilidade – do mais delicado traço às pinceladas rápidas e grossas, e sempre a vida a pulsar no papel. Mil artistas num só. Um artista de mil nomes.

Só no fim da exposição, quando me deleito com algumas obras pintadas por um octogenário que aos 73 anos mudara o seu nome para Gakyo-rojin, “homem velho obcecado pela pintura”, é que o meu aparelho áudio revela que Hokusai também era poeta. Procurei os seus escritos pela internet, mas só encontrei o poema que escreveu para a sua própria morte:

Hitodama de
yuku kisan ja
natsa no hara

Agora como espírito
devo atravessar
os campos de verão.


O folheto da exposição cita uma frase do artista, da introdução ao livro “Cem vistas do monte Fuji”: “Desde que fiz seis anos pinto o que vejo à minha volta. A partir dos cinquenta anos, publiquei trabalhos uns atrás dos outros. Mas, até aos setenta, a minha obra não tinha grande valor. Só aos setenta e três anos compreendi um pouco da anatomia dos animais e da vida das plantas. Se me esforçar, aos oitenta continuarei a fazer progressos e aos noventa conseguirei desvendar os últimos segredos. E quando chegar enfim aos cem, as linhas e os pontos isolados vão de per si encher-se de vida. Queira o Deus da longa vida cuidar para que estas minhas convicções não sejam meras palavras vazias.
Quase chegou lá. Na última sala, há um tigre a sorrir para a lua: em paz, de bem com a vida – pintado por um homem de quase noventa anos. A seu lado, um dragão surpreende-nos: a sua nítida essência revela-se a partir de traços em grossas pinceladas – falta apenas enrolar a longa folha, e mandar para o quinto dia da Criação: Deus, ó Deus, não te esqueças de incluir este, está perfeito e faz-nos falta.

Podia agora falar das paisagens belíssimas, das perspectivas (por exemplo, dos homens minúsculos numa pequena parte de um templo, mostrando desse modo a grandiosidade do edifício; ou do tanoeiro dentro dos aros do tonel que está a fazer, no centro de um círculo através do qual se vê o monte Fuji), da extrema riqueza de expressões nos rostos dos humanos e dos espíritos, dos precisos detalhes na representação da fauna e da flora, da elegância dos traços minimalistas. Podia falar das imagens suspensas em pura beleza. Podia até elogiar a modernidade deste artista que nasceu apenas quatro anos depois de Mozart, referir que o impressionismo francês lhe deve muito – e quem diria que um pintor de num longínquo país, praticamente fechado ao exterior, teria este impacto na cultura europeia?
Mas não me vou prolongar por aí. Antes informo que a exposição ainda fica em Berlim até 31 de Outubro, está aberta das 10 às 20 todos os dias excepto às terças, e não se sabe se (e quando) será possível voltar a ver fora do Japão um conjunto tão diverso e completo da obra de Hokusai.

Site da exposição: em alemão / em inglês

(publicado também na berlinda.org)

3 comentários:

sem-se-ver disse...

:-(





(por não poder ver)

Helena Araújo disse...

Terás de ir ao Japão! Estas peças vieram quase todas de lá. Vão fazer um museu na sua cidade natal.
Por outro lado, na internet encontra-se muita coisa dele, em óptimas condições, e sem trinta cabeças à tua frente.

O j.j. amarante passou links no primeiro post que escrevi sobre esta exposição.

sem-se-ver disse...

olha, tu gostas de bater no ceguinho, é?

:((((


(eu sei, ja´conhecia, pena de nao poder ver, só isso. por curiosidade: qd custa a entrada? nao so nesta exposiçao, mas , digamos, a média de entrada nos museus? e nos concertos?)