02 dezembro 2010

o wikileaks e nós

É uma curiosa ironia que tenham sido justamente os EUA a primeira grande vítima do seu próprio esforço de recolha de informações para combate ao terrorismo. Com efeito, o 11 de Setembro mostrou que os serviços de informação estavam a funcionar com deficiências: a mão direita não sabia o que a esquerda fazia. Para corrigir o erro, decidiram unir várias bases de dados, o que resultou em centenas de milhares de pessoas a terem acesso a demasiados documentos secretos. Como dizia um jornal alemão: o mais surpreendente é que esta fuga não tenha ocorrido mais cedo.

Pergunto-me como será o futuro da diplomacia. Como é que os representantes dos Estados discutirão entre si se não estiverem seguros da confidencialidade do que é dito? Como poderão fazer análises e procurar encontrar soluções em conjunto com outros, se desconfiam que cada palavra sua pode aparecer no jornal no dia seguinte? É certo que o wikileaks revelou situações escandalosas. Mas, no fundo, nada disto chega a ser novidade. E o preço que pagámos por estas revelações, expresso na futura falta de confiança e liberdade nos diálogos diplomáticos entre Estados, é altíssimo. Valeu a pena?

Quanto às revelações: deixando de lado as coscuvilhices sobre os políticos (e o que me custa ver jornais que eu estimava a descerem tão baixo!), as referências a regimes ditatoriais, ou a Estados de democracia ainda frágil, podem ter violentas consequências. Esperemos que não ocorram atentados nem deflagrem conflitos sangrentos gerados por esta iniciativa do "dominó da transparência".

Tenho ouvido em Portugal várias vozes de apoio à acção do wikileaks, com as quais não posso concordar. Admito que seja entendida como menos chocante por quem vive num país onde há pouca confiança no Estado de Direito, há frequentes fugas ao segredo de justiça, se fazem análises em público totalmente avessas à ética profissional e se publicam escutas obtidas ilegalmente. Pouco faltará para passar para a fase seguinte: justiceiros franco-atiradores a dar o seu contributo aos processos em curso, ou a usar a internet para vinganças privadas. Se pensam que "só" o Carlos Cruz e os McCann correm riscos, estão um bocadinho enganados.

Este episódio constitui exemplo e confirmação dos piores cenários que se possam imaginar. Já existe imenso material, guardado em inúmeros locais sobre os quais não temos o menor controle. Tudo: multibanco, via verde, conta bancária, cartões de clientes das lojas, cartões de crédito, endereço de e-mail nos comentários dos blogues e nas petições, lista telefónica digital, facebook, registos de contribuinte, leitores do site wikileaks, viagens, história clínica, etc. etc. etc.
Enquanto se discute se a Europa pode ou não disponibilizar aos EUA dados sobre os viajantes, vemo-nos confrontados com esta realidade assustadora: basta um hacker habilidoso e um wikileaks qualquer para que a vida de cada indivíduo seja exposta na internet. Preto no branco, com nomes, datas e números. 

É um cancro com potencial para alastrar ao mundo inteiro. É possível evitá-lo? Creio que não, tanto mais que no teste da acção combinada wikileaks + meios de comunicação social, estes últimos falharam. Os jornais (que analisaram os documentos, combinaram entre si linhas de orientação, pesaram o interesse da notícia com os riscos da revelação) não resistiram ao impulso de se lançarem numa ignóbil chafurdice de quem diz o quê sobre quem. Nojento. E assustador. Se é assim que eles tratam textos diplomáticos de avaliação de políticos concretos, cuja revelação, não tendo qualquer interesse noticioso, prejudica a confiança entre os Estados, como é que tratarão os dados sobre mim, que algum hacker facilmente lhes fornecerá, um dia que as Finanças decidam que eu as ando a enganar há vinte anos? Lá está: "vieram pelos comunistas, e eu não reagi; vieram pelos judeus, etc."

No entanto, a questão é muito mais ampla que a dos riscos que cada um de nós corre.
Citando Peter von Becker: "O buraco da fechadura é maior que a porta. O mundo transforma-se num bordel e simultaneamente num tribunal dos novos polícias de costumes". Finalmente, ele aí está: não um, mas milhentos Big Brothers diferentes, atentos a tudo e a todos.
Chegamos a uma situação em que temos demasiada informação, posta a circular por pessoas de quem não se conhece nem o rosto, nem os objectivos, nem os princípios éticos. Como nos podemos orientar no meio de tanto ruído mais ou menos informativo, de tantos eventuais escândalos? Como conviver com o risco permanente da devassa da nossa vida privada e de ataques permanentes à imagem dos nossos governantes?

É urgente um debate sobre o rumo que consideramos saudável para as nossas sociedades neste tempo de internet, anonimato, e liberdade de expressão confundida com libertinagem do discurso. Apesar das óbvias limitações na aplicação prática, seria muito positivo tentar definir em conjunto pontos de referência éticos para um caminho comum no tempo da internet.

3 comentários:

sem-se-ver disse...

http://www.ted.com/talks/view/id/918

para aumentar a discussão :)

sem-se-ver disse...

hum. não seguiu o link?...

Helena Araújo disse...

Ainda não. Ao fim-de-semana não tenho muito tempo para o computador.
Amanhã, sem falta.