22 setembro 2009

Mesa Verde




Ver para crer?
Não, ver não basta: já tínhamos visto muitas fotografias de Mesa Verde, e mesmo assim não estávamos preparados para descer àquele oásis de frescura junto ao penhasco, e deparar com o prodígio das casas arrimadas à rocha.


Um pouco de informação: Mesa Verde é um planalto no Estado do Colorado, cortado por desfiladeiros com vales férteis e, em alguns pontos, monumentais penhascos onde a erosão criou uma espécie de alcovas gigantes.



Foi habitado até fins do séc. XIII da nossa era pelos Anasazi, nome que significa "os antigos" ou até "os antigos inimigos" na língua dos Navajo, o povo que depois deles se estabeleceu naquela região.
Começaram por se instalar no planalto, onde construíam as suas casas semi-enterradas na terra. Por volta de 1200 e durante quase um século, passaram a construir em grande escala no abrigo fornecido pelas paredes côncavas dos penhascos ao longo dos desfiladeiros - as "alcovas".

Viviam da agricultura e da caça, estavam integrados em rotas comerciais que até penas de papagaios provenientes da América do Sul lhes facultavam, faziam belos cestos e recipientes de barro, tinham sistemas de irrigação muito desenvolvidos, e tudo lhes corria de feição.

Até que um dia, no espaço de uma ou duas gerações, sabe-se lá porquê, deixaram tudo - inclusivamente comida e vestuário - e desapareceram.

Em 1888, dois cowboys que andavam à procura de vacas extraviadas descobriram um dos pueblos nos penhascos.
(Bryce também foi encontrado da mesma maneira. Se me deixassem mandar, dava uma medalha de "mérito arqueológico" às vacas daquela região. Ou talvez um doutoramento honoris causa em arqueologia. Merecem.)
Em breve foram descobertos outros pueblos semelhantes, e deu-se início a uma autêntica caça às curiosidades. E que caça: os objectos, abandonados 600 anos antes, jaziam ali à mão de semear. As capas da chuva feitas com penas de peru, os potes de barro cheios de grãos de milho, as sandálias velhas, uma confusão inexplicável.
(Por essas e por outras é que eu faço questão de deixar a casa arrumada antes de ir de férias. Sabe-se lá se nunca mais volto, e se um dia uma vaca se extravia para dentro do meu apartamento e os arqueólogos acabam a descobrir que eu era uma dona de casa daquelas tipo valhamedeus que nem a mesa do pequeno-almoço arruma antes de sair.)
Ainda por cima, tinham o hábito de atirar o lixo pela janela. Uma coisa por demais - louça partida, roupa estragada, cestos rotos, eu sei lá, uma profusão incrível, uns autênticos selvagens. Os arqueólogos viram aquilo, e deitaram as mãos à cabeça. Em vez de deixar aquele puzzle, custava alguma coisa ter feito um pequeno museu da aldeia?

A verdade é que não se sabe quase nada sobre este povo.

Os primeiros habitantes são conhecidos por "cesteiros" porque eram exímios artífices de cestos, nos quais até água transportavam (usavam resina para os tornar impermeáveis - muito eu gostava de saber como é que tiravam depois a resina das mãos sem a ajuda da BASF). Uns séculos mais tarde aprenderam a fazer olaria, e a qualidade dos cestos baixou substancialmente. Finalmente, decidiram entrar pela área da arquitectura e da engenharia, com bastante sucesso.



Tudo isto nos foi contado pelo Park Ranger que fez a visita guiada.
De pé, junto a uma kiva (o nome que os Hopi dão uma sala redonda, praticamente toda escavada no solo, com entrada por uma abertura no telhado arredondado, e que servia para múltiplos usos - desde reuniões familiares ou de clã até simples abrigo), falava-nos das várias hipóteses para explicar a súbita retirada. Talvez o excesso de população, a caça dizimada, o exagerado abate das árvores para lenha (eu bem digo que os EUA estão a mudar: agora até já se imaginam catástrofes ecológicas como causa do desaparecimento de um povo), talvez anos sucessivos de seca que poderão ter estado na origem de guerras para ter acesso a alimentos.

Em todo o caso: os Anasazi desapareceram, as aldeias permaneceram esquecidas durante centenas de anos, até que umas vacas sábias deram um empurrãozinho à história, e logo a seguir entrou em cena Nordenskiold, um membro da Academia de Ciências Sueca, que na realidade andava a tentar curar a tuberculose, mas se apaixonou por aquele lugar e passou largos meses a estudar e descrever minuciosamente o que encontrou. Também teve o cuidado de recolher mais de 600 objectos, que resolveu enviar para a Suécia.
E foi aí que as "tough ladies", como dizia o Ranger, "capazes de pôr um mormon a beber em menos de vinte anos" (não tenho a certeza de ter entendido bem, mas ri-me muito) entraram em cena. Furiosas com o roubo de património que estava a decorrer, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para impedir aquele transporte. O sueco foi preso (num hotel, podia ser pior), mas logo a seguir libertado, porque não havia nenhuma lei de protecção do património. Rapidamente tratou de encaixotar tudo e preparar-se para atravessar o país de comboio, com o seu tesouro, rumo a um barco que o levasse de volta à pátria. As "tough ladies" não se deram imediatamente por vencidas. Informaram-se sobre os horários do comboio, e telegrafaram para todas as cidades do seu percurso, contando a história na versão delas: "às tantas horas do dia x vai passar aí um grande ladrão". Pobre Nordenskiold. Teve honras de primeira página nos jornais, manifestações de protesto em todas as cidades onde o comboio parou, e quando finalmente chegou à costa já há muito era considerado o inimigo público nº1 de toda a América. De regresso a casa, casou com uma finlandesa, morrendo pouco depois vítima da tuberculose (e se calhar também dos nervos, imagino eu). Assim se explica que muitos dos melhores achados de Mesa Verde tenham ido parar a um museu em Helsínquia.
"Mas era tudo legal", dizia o Ranger, "não podemos criticar estas pesoas à luz da mentalidade de hoje". Infelizmente não havia lei nenhuma que o impedisse de fazer aquilo, do mesmo modo que muitos habitantes da região levaram tudo o que quiseram. Mais tarde, dando-se conta do valor dos objectos, "e porque são gente boa", dizia o Ranger, emprestaram-nos ao Chapin Mesa Museum, onde podem ser vistos juntamente com pequenos letreiros onde se lê: "propriedade de Fulano, que por gentileza a cedeu temporariamente para poder ser apreciada por todos".



Contou-nos ainda um pormenor curioso: os Navajo que actualmente vivem na região não permitem que os seus filhos participem em visitas escolares àqueles locais. Por causa dos espíritos dos Anasazi, dizem eles.

Acredito, e não me admiro:

O passeio continua. Metemos a cabeça dentro de uma das torres, e vemos pinturas na parede à altura do terceiro ou quarto andar.
Os compartimentos eram diminutos, a passagem de uns para os outros exigia o uso de escadas de mão, o acesso tanto ao vale como ao planalto fazia-se por meio de uma escalada íngreme. A sorte deles é que naquele tempo não havia serviço de protecção de menores, caso contrário aposto que os mandavam ir morar para outro lugar (olha, parece-me que encontrei mais uma explicação para o abandono do local...). Alguma preocupação terão tido, contudo, já que a soleira das portas ficava meio metro acima do chão. Mesmo assim, pergunto-me como seria possível criar crianças numa povoação de características tão pouco seguras. Pobres mães, deviam passar a vida com o credo na boca. Ou, talvez, com as crianças às costas.


No fim da visita, subimos por uma série de escadas de mão encostadas a passagens estreitas na rocha. Na parede havia pequenas cavidades com a marca de dedos : os apoios que os Anasazi usavam para as escaladas.



E o parque de campismo?, perguntarão.
Era quase óptimo. Num bosque onde se passeavam corças, com boa sombra, espraiado para ter espaço suficiente entre as tendas, com duche (ah, o luxo!) e até lavandaria. Só se esqueceram de uma coisa: a pia para lavar a louça. Tínhamos de a lavar numa torneira simples junto à estrada, com um lamaçal incrível sob os nossos pés, mesmo junto ao letreiro onde se pedia para não fazer isso.
Enquanto o Joachim e eu fomos à lavandaria, os miúdos ficaram a lavar os pratos. Um casal que passou por eles comentou: "vocês fazem campismo mesmo a sério, cozinham e tudo! Nós não temos paciência para isso, vamos sempre ao drive-in."
Confesso que a última coisa que me ocorreria combinar com campismo em Mesa Verde seria um drive-in, mas pelos vistos à direcção do parque também não ocorreu que alguns campistas podem eventualmente lembrar-se de cozinhar e usar pratos reutilizáveis.

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