Comecemos por alguns dados fundamentais:
- A resolução dos problemas ligados ao acto eleitoral não pode de modo algum passar por dificultar a participação dos eleitores.
- Num mundo onde a mobilidade por motivos profissionais é um facto cada vez mais incontornável, por um lado, e onde, por outro lado, se pede a todos que, por motivos ecológicos, limitem as suas viagens, é absurdo trocar um sistema de voto por correspondência, já em funcionamento, pela obrigatoriedade do voto presencial. Lógico seria caminhar no sentido inverso: permitir a todos os eleitores o voto por correspondência ou electrónico.
- Esta discussão sobre o voto dos emigrantes tem ignorado uma outra discussão cada vez mais necessária: quais são os direitos e os deveres de um emigrante em relação ao país de origem? Quais são os critérios para atribuição dos direitos de eleitor? Como equacionar a questão dos descendentes dos emigrantes? Até que ponto faz sentido que um neto de emigrantes portugueses, que não fala português e só conhece o país como turista (quando muito!), possa votar em eleições portuguesas? Por outro lado, nos países que não aceitam a dupla nacionalidade, até que ponto faz sentido retirar a uma pessoa, com nacionalidade diferente da do país onde nasceu e foi socializada, a sua única possibilidade de participar num acto eleitoral?
- Paralelamente - e fique aqui dito de forma clara -, um dos motivos invocados para a alteração da lei subentende um brutal insulto aos emigrantes: ao defender que o processo é propício a "chapeladas", insinua-se que o comportamento eleitoral dos emigrantes é irresponsável, leviano e até desonesto. Notem que ninguém disse que isso aconteceu por obra de Fulano, do partido X, no bairro português da cidade Y, mas se usou uma generalização: "há chapeladas". E porque o voto por correspondência concedido aos emigrantes tem sido alvo de "chapeladas", é preciso acabar com este processo para todos os emigrantes.
Estando certa que o Presidente da República vai vetar esta lei, proponho agora um debate para melhorar o sistema actualmente existente.
A recente crónica de Vital Moreira no Público, sobre este tema, é um bom ponto de partida para procurar soluções:
1. "A primeira razão para abandonar o voto por correspondência nas eleições parlamentares é evidentemente a consistência de soluções, não se compreendendo o dualismo de soluções quanto à mesma questão."
Poderia perguntar "e porque não a consistência de soluções alargando o voto por correspondência às eleições presidenciais?", mas não pergunto, porque sei bem que estes dois processos não são comparáveis.
O direito de voto para os emigrantes nas eleições presidenciais é uma conquista recente, e foi difícil. Compreendo a argumentação: dado que, nas eleições parlamentares, os círculos eleitorais dos emigrantes elegem apenas quatro deputados, devidamente enquadrados num sistema de Democracia representativa, os riscos eventuais estão mais ou menos controlados. Em contrapartida, a eleição para o Presidente da República é directa, pelo que o voto de um grupo que, não residindo em Portugal, representa uns 30% dos eleitores, é um alto elemento de risco.
Enquanto não se resolver a questão dos critérios para atribuição do direito de participação eleitoral a não residentes, o melhor é não misturar as eleições presidenciais com as parlamentares, e esquecer a questão da consistência.
2. "A segunda razão é o enorme custo financeiro e administrativo da votação por correspondência, que implica o envio de boletins de voto e de sobrescritos, por correio registado, para todos os eleitores inscritos, muitas dezenas de milhares (mesmo que depois a participação eleitoral se fique por percentagens muito baixas)."
É um facto inegável: muitas das moradas nos ficheiros não estão actualizadas, e as pessoas que recebem as cartas não se dão ao trabalho de votar. Desperdício dos dinheiros públicos, excesso de trabalho e frustração dos funcionários do Consulado.
Podia lembrar agora que o exercício democrático tem custos, mas prefiro não ir por aí.
Sugiro o seguinte:
- quem reside na cidade onde há uma mesa de voto, vota nesse local;
- quem reside longe, envia um pedido ao Consulado para poder votar por correspondência. Por mim, que não percebo nada de Direito Constitucional, e dado que o eleitor vai poupar algumas dezenas ou centenas de euros em deslocação, até pode juntar um envelope de resposta onde já se escreve como destinatário, e os selos necessários ao envio do boletim de voto por carta registada (o Consulado disponibiliza esses dados no seu site).
Poupa-se trabalho e dinheiro ao Consulado, e assegura-se que só as pessoas realmente interessadas em votar vão receber o boletim.
3. "Mas a principal objecção ao voto por correspondência decorre evidentemente de este não assegurar alguns princípios básicos de qualquer eleição digna desse nome, que são a pessoalidade e o sigilo do voto. De facto, o voto por via postal não garante que a votação seja feita pelo próprio eleitor nem muito menos que o voto seja secreto."
Ora bem: se um adulto recebe uma carta registada e está impedido de a abrir ele próprio e responder em sigilo, isto é um caso de Polícia e não de alteração da lei eleitoral.
Mas pronto, está bem: dando de barato que esses portugueses da diáspora vivem num contexto de profunda miséria moral, vamos integrar mais um elemento de controlo: o pedido de envio do boletim de voto por correspondência terá te vir com cópia do documento de identificação e assinatura autentificada (*), e o Consulado avisa que os boletins serão enviados na semana de tantos a tantos, para que as pessoas estejam atentas à sua caixa do correio e avisem imediatamente se não receberem o seu boletim até ao fim desse prazo.
(*) Assinatura autentificada: na Alemanha, país que conheço melhor, é possível fazer isso nos correios, ou até no secretariado das paróquias. Não é preciso complicar o sistema de voto postal de tal modo que custe demasiado tempo e dinheiro.
4. "(...)o voto por correspondência envolve um risco de fraude eleitoral, se as forças políticas se decidirem a "organizar" a votação dos seus militantes e simpatizantes, recolhendo os boletins de voto e procedendo ao seu preenchimento e envio colectivo."
Insultos é que não!!!
Em nome de quê é que eu daria o meu boletim de voto para ser preenchido por outras pessoas?
Decididamente, não tenho imaginação para tanto.
Haverá um partido a fazer trabalho de porta em porta em cata de boletins de voto? Trocando boletins por brindes, talvez? E haverá realmente emigrantes dispostos a entregar o seu boletim em troca de um boné ou uma bandeirinha made in China, sei lá?
Ou haverá na diáspora portuguesa um submundo totalitário que obriga os emigrantes a participar nas reuniões do partido e a entregar os seus boletins de voto?
Se isto realmente acontecesse, não seria mais saudável para a Democracia investigar o caso, e punir o partido que assim age?
5. "(...)tudo se resume a saber se a vantagem de uma provável maior participação eleitoral deve pesar mais do que as desvantagens do voto postal, designadamente a violação dos princípios da pessoalidade e do sigilo do voto, incluindo o risco de fraude eleitoral"
Vamos mais devagar: uma "maior participação eleitoral" não é uma vantagem, mas um imperativo democrático.
Não estamos a escolher entre uma provável maior participação eleitoral e as desvantagens do voto postal. Estamos a escolher entre dificultar o acesso ao acto eleitoral - o que é uma medida espantosamente antidemocrática - ou melhorar o processo do voto postal, corrigindo os maus funcionamentos que entretanto foram detectados.
Às tantas, nem seria necessário uma nova lei, bastando alterar o regulamento do voto por correspondência.
6. Uma última nota: completamente de acordo com Vital Moreira quando critica a acusação de que esta é uma manobra do PS para evitar que o PSD eleja mais deputados. Mas já não gosto tanto quando insinua que o PSD terá um interesse particular na manutenção do voto por correspondência.
Não ajuda em nada à Democracia portuguesa andar a sugerir que um dos seus partidos mais importantes tem comportamentos mafiosos. Se há provas, denuncie-se abertamente e castigue-se. Se não há provas, não lancem rumores.
Este clima de insinuação - e já não falo apenas da gracinha do Vital Moreira - é uma vergonha e uma calamidade para o país.
Em suma:
1. Vete-se esta lei.
2. Mantenha-se a possibilidade de votar por correspondência a quem, devidamente identificado, se der ao trabalho de a pedir. Alargue-se este procedimento aos eleitores residentes no território nacional - ao menos, enquanto não vem o voto digital.
3. Inicie-se um debate sério para equacionar a participação dos emigrantes e dos seus descendentes nas eleições portuguesas.
***
Adenda: recomendo a leitura deste post e dos comentários, no ma-schamba.
Sem comentários:
Enviar um comentário