16 maio 2007

porque é que o Huckleberry Finn não se tornou viciado?

O debate que tem corrido por sobre educar com segurança lembrou-me um livro que foi um best-seller por estas bandas, e que tem como título:

Porque é que o Huckleberry Finn não se tornou viciado?
- provocação contra vícios e auto-destruição em crianças e adolescentes


(Warum Huckleberry Finn nicht süchtig wurde - Anstiftung gegen Sucht und Selbstzerstörung bei Kindern und Jugendlichen).

Escrito por Eckhard Schiffer, médico especializado em psiquiatria, neurologia e psicoterapia, com um curso suplementar de filosofia com ênfase em estética filosófica. (Se não fosse casado, até desconfiava que seria jesuíta.)

O médico distingue entre os comportamentos de prevenção da doença e os de promoção da saúde, fazendo, obviamente, a apologia dos segundos. Neste livro, em que tenta identificar atitudes educativas que podem conduzir ao empobrecimento psíquico e afectivo da criança e a um consequente risco de dependência, contrapõe às condições em que Huckleberry Finn cresceu aquilo que hoje é considerado normal na educação das crianças.

A provocação sintetiza-se assim: Huckleberry Finn não caiu no vício porque durante a sua infância teve o tempo e a oportunidade de realizar os seus sonhos.

O autor reclama para as crianças e os adolescentes espaços de liberdade sem normas doentias, regras e pressão para se adaptarem. Quer dar-lhes espaços onde as forças da fantasia e do espírito se possam desenvolver.
No fundo, defende os quintais selvagens das traseiras, em detrimento dos relvados imaculados com o seu letreiro "proibido pisar a relva".
As crianças precisam de espaços onde possam mover-se à vontade, correr, tropeçar e gritar, em vez de quartos minúsculos e ruas cheias de carros.
Aos adultos é pedido que deixem de decidir sobre as crianças e os adolescentes, deixando-os participar na tomada de decisão e aprendendo com eles a desobedecer.

Desobedecer?! Desobedecer?!
Estou mesmo a ver os Grilos Falantes da brigada abaixo-os-pais-negligentes a protestar "agora é que ela se passou de vez!"

E contudo... das duas vezes que eu ia sendo vítima de pedofilia, foi a desobediência que me salvou.
Diga-se de passagem: nos dois casos aconteceu no meu habitat conhecido e protegido.
Da primeira vez, aos oito anos, o pai de umas amigas encaminhou-me para a casa de banho onde elas pretensamente estavam escondidas à minha espera, apagou a luz e exigiu que lhe desse beijinhos. "Não dou, deixa-me sair daqui!" - e escapei com um beijo na face, que ainda hoje me enoja.
Da segunda, aos onze anos, o empregado do café do nosso prédio meteu-me numa despensa e queria que eu tirasse as cuecas. As coisas acontecem tão depressa! Apesar do medo, gritei-lhe "Nem pense, e abra já essa porta!" - e ele abriu.
Era o gajo que todos os dias conversava amenamente com o meu pai sobre política e futebol - como é que os meus pais poderiam sonhar que ele lhes queria violar a filha?

(Quando conto estes episódios aos meus filhos - para lhes mostrar que eles não são obrigados a obedecer e que se estas coisas acontecerem a culpa não é deles, mas da doença dos adultos - eles perguntam, todos empolgados "tens mais histórias dessas? conta, conta!" ...e eu imagino o Bruno Betelheim a sorrir.)

Na Alemanha, ensina-se às crianças que são donas do seu corpo. Se não gostam, não são obrigadas a dar ou a aceitar beijinhos - nem sequer da avó, ou das amigas da mãe.
Em Portugal, é normal tocar e apalpar as crianças: "ai que carninha rija!", "ai que lindos caracóis!", "dá-me um beijinho, rico, dá-me um beijinho senão fico triste". O adulto nem se dá conta que transforma a criança em objecto, e que a desprove de vontade. O curioso é que muitas vezes esta violentação da criança ocorre sob o olhar complacente e com a conivência de pais que se gabam de proteger muito bem os seus filhos contra os pedófilos.

Voltando à questão da segurança e da liberdade: o problema é que os pais nunca sabem qual é a justa medida. Como combinar os horários apertados com o direito das crianças a esquecer o resto do mundo e a entregar-se à importantíssima tarefa de brincar? Como decidir entre deixá-los sozinhos, ou roubar-lhes o tempo lúdico em nome da sua segurança?
E se a outra face da medalha da sobreprotecção fosse graves distúrbios psicológicos nas crianças?

E que tal mudarmos um pouco a perspectiva, e começarmos a falar sobre o sofrimento das crianças cujos pais põem a segurança acima de tudo?

Sem comentários: