07 março 2017

"trincheiras" - e cancelamento de um evento na Universidade por temer a violência dos alunos


 
Recentemente, a palavra do dia na Enciclopédia Ilustrada era "trincheiras", e escrevi sobre as discussões entricheiradas e a impossibilidade crescente de trocar ideias. Mal imaginava que a FCSH - e logo a FCSH! - me viria a dar razão da pior maneira.  

Se a notícia do Observador é fidedigna, isto é gravíssimo: cancelar uma sessão de exposição de ideias e debate por temer a violência dos alunos que não concordam com as ideias do orador?! Na universidade!? Na área das ciências sociais e humanas!?
Estes alunos dão-me vontade de parafrasear a Susaninha (*):

"Quer dizer: foram à universidade, e nada."


Igualmente graves são as insinuações que o artigo do Observador faz sobre o Bloco de Esquerda.
Não sei como é que se desmente um "ouvi dizer que...", mas sei o que faria se tivesse algum poder nesse partido: convidava o Jaime Nogueira Pinto para trocar ideias sobre esse mesmo tema, no mesmo local, em sessão organizada por iniciativa do BE. E geria o debate com preocupações de pedagogia sobre a arte de trocar ideias respeitando a liberdade de expressão. Sublinhando a palavra chave "trocar", que é muito diferente de "expor".


Também seria muito positivo se essa Faculdade (bem como, aliás, todas as outras) organizasse eventos para debater os limites da liberdade de expressão, e os mecanismos para prevenir o respeito por eles. É uma questão que me interessa muito, e ainda estou a tentar resolver, nomeadamente quando os meus filhos vão para as manifestações contra a extrema-direita, e regressam cheios de queixas da polícia que lhes bate a eles e protege os neonazis. Eu, que sou uma teimosa defensora do Estado de Direito, tento passar a ideia de que não é assim que se resolvem os problemas. E eles respondem, indignados: "não podemos deixar que os castanhos voltem a ocupar as ruas da Alemanha". No que estão cheios de razão. Mas alguma coisa tem de mudar, para que a polícia deixe de receber ordens para bater em quem tem razão. 

[ADENDA:
ainda a propósito de trincheiras, liberdade de expressão e violência - alguns factos e questões ]



Sobre "trincheiras", escrevi na Enciclopédia Ilustrada:

Pergunto-me muitas vezes se as trincheiras entre as pessoas estão a ficar cada vez mais fundas.
Pode ser a velhice a aproximar-se trazendo o conhecido "no meu tempo é que era bom", pode ser que estes tempos de discursos populistas e simplistas estejam realmente a piorar o ambiente e a baixar o nível da inteligência nos debates, pode ser que as redes sociais e as bolhas que nos construímos também ajudem muito ao fenómeno. O que vejo é pessoas incapazes de conversar umas com as outras.
Cada um atira para o espaço público as suas frases como se fossem verdades indiscutíveis, e esquiva-se ao debate escudando-se na liberdade de expressão. Pobre liberdade de expressão! Criada para enriquecer o debate de ideias, abusam agora dela para recusar qualquer hipótese de debate.
Nas redes sociais as trincheiras são ainda mais fáceis de cavar: basta desamigar, deixar de seguir, apagar. Longe da vista, longe da razão. E isto nem chega a ser crítica ao gesto de apagar e afastar, porque o diálogo que muitas vezes acontece nas redes sociais não passa de guerra de trincheiras: cada um dispara os seus argumentos, sem a menor intenção de construir pontes para os motivos do outro.
Lá está: pode ser a velhice a chegar, e uma certa tendência para fantasiar o passado, mas não me lembro de ter visto alguma vez este radicalismo nas posições, este ressentimento perante o poder relativo dos outros, estas trincheiras fundas.


Um amigo acrescentou: "O debate não é só impossível quando se cavam trincheiras. É incompatível. Só há debate em campo aberto. E parece-me que a incapacidade generalizada de debater ideias não é deste tempo, só se nota mais agora porque há meios novos de botar opinião."



(*) Sobre a mãe da Mafalda não ter arranjado um namorado no tempo em que era estudante universitária.

2 comentários:

Horácio disse...

A associação de estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova disse hoje que o pedido de cancelamento da conferência de Jaime Nogueira Pinto surge na sequência de uma moção à qual a associação ficou vinculada.
Esta Associação de estudantes devia ouvir esta abaixo...

http://expresso.sapo.pt/politica/2017-03-07-Associacao-25-de-Abril-cede-espaco-para-conferencia-de-Nogueira-Pinto

Júlio de Matos disse...


Concordo absolutamente. Existem demasiadas trincheiras e elas são incompatíveis com uma opinião pública livre e sã.

E o que me preocupa mais é: quem cava as trincheiras? Quem atrai, ou empurra, as pessoas inocentes para elas?