A ideia surgiu devido a um post que escrevi há meses, "raízes". A memória desse tempo em que nos líamos poemas em voz alta, e a frase com que terminava:
Novos temas. Já não temos vinte anos. O que permanece: a exigência - a capacidade de se maravilhar - a confiança no poder transformador das nossas mãos - o riso - - -
E foi assim que nos juntámos de novo, amigos de tão fundas raízes, à volta de uma mesa de potluck (quem se teria lembrado de meter "luck" nesse nome, quem terá querido dizer a sorte que é saber juntar os amigos assim, sem complicações?) e depois sentados numa sala com vista para os navios do porto (uma bela alegoria) para mais uma vez nos falarmos dos poemas que iluminam os nossos passos.
Começámos com a Sophia que acompanha desde sempre este blogue:
Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra a fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
Trouxeram uma poetisa que eu não conhecia, Hilde Domin:
Não deixes o cansaço instalar-se
em vez disso
silenciosamente
como a um pássaro
estende a mão ao milagre.
Folheei o livro, e outras linhas vieram ao meu encontro:
A alegria
este modestíssimo animal
este doce unicórnio
tão silencioso
não se ouve
quando vem quando vai
meu animal doméstico
alegria
quando tem sede
lambe as lágrimas dos sonhos.
Um amigo releu o seu poema de sempre, "Quase", de Mário de Sá-Carneiro,
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
(...)
outra leu versos que inspiram o seu trabalho como professora. Pensei no Diário do Sebastião da Gama. Tenho de voltar a esse poema, e a esse livro. E que fique hoje dito: em 2012, há professores no ensino público em Portugal que orientam o seu agir pela poesia. Calem-se os arautos da perdição: as escolas estão cheias de profetas - aqueles que acreditam num caminho que atravessa o estertor do tempo.
Daniel Faria foi-nos trazido pela voz de um seu antigo professor de português.
(Professor de português do Daniel Faria: que responsabilidade! Saberemos nós estar à altura do milagre que as nossas mãos ocasionalmente tocam?)
Ana Luísa Amaral esteve presente na sua carta à filha, a propósito de um quadro de Goya,
Um Pouco Só De Goya: Carta A Minha Filha:
Lembras-te de
dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e
o cabelo mais claro,
mas os olhos
iguais. Na metáfora dada
pela infância,
perguntavas do espanto
da morte e do
nascer, e de quem se seguia
e porque se
seguia, ou da total ausência
de razão nessa
cadeia em sonho de novelo.
Hoje, nesta
noite tão quente rompendo-se
de junho, o
teu cabelo claro mais escuro,
queria
contar-te que a vida é também isso:
uma fila no
espaço, uma fila no tempo,
e que o teu
tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que
gostava, esse de um homem
que um dia
lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria
dizer-te que a vida é também
isto: uma
espingarda às vezes carregada
(como dizia
uma mulher sozinha, mas grande
de jardim).
Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos,
falar-te de tigelas -- é sempre
olhar-te amor.
Mas é também desordenar-te à
vida,
entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras,
em carinho de verso.
E o que queria
dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a
habita para além do ar.
E que o
respeito inteiro e infinito
não precisa de
vir depois do amor.
Nem antes. Que
as filas só são úteis
como formas de
olhar, maneiras de ordenar
o nosso
espanto, mas que é possível pontos
paralelos,
espelhos e não janelas.
E que tudo
está bem e é bom: fila ou
novelo, duas
cabeças tais num corpo só,
ou um dragão
sem fogo, ou unicórnio
ameaçando
chamas muito vivas.
Como o cabelo
claro que tinhas nessa altura
se transformou
castanho, ainda claro,
e a metáfora
feita pela infância
se revelou tão
boa no poema. Se revela
tão útil para
falar da vida, essa que,
sem tigelas,
intactas ou partidas, continua
a ser boa,
mesmo que em dissonância de novelo.
Não sei que te
dirão num futuro mais perto,
se quem assim
habita os espaços das vidas
tem olhos de
gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo,
queria-te um antídoto
igual a
elixir, que te fizesse grande
de repente,
voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te
amar, não posso fazer isso,
e nesta noite
quente a rasgar junho,
quero dizer-te
da fila e do novelo
e das formas
de amar todas diversas,
mas feitas de
pequenos sons de espanto,
se o justo e o
humano aí se abraçam.
A vida, minha
filha, pode ser
de metáfora
outra: uma língua de fogo;
uma camisa
branca da cor do pesadelo.
Mas também
esse bolbo que me deste,
e que agora
floriu, passado um ano.
Porque houve
terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.
e com ela veio o incontornável Jorge de Sena.
Como contraponto, um poeta popular do Norte, com as suas verdades simples expressas em rimas fáceis.
Eu disse de cor parte de um poema de Manuel António Pina, que me tem reconciliado com a ideia da morte, porque a retrata como o que é: algo natural e absoluto, inscrito em nós desde a primeira célula.
Alguém o
chamara por outro nome,
um absoluto
nome,
de muito
longe.
E o cão
partira
ao encontro
desse nome
como chegara:
só.
E a mãe
enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: "É a vida..."
E muitos outros poemas, no meio de encantamento e riso. Soube a pouco.
Despedimo-nos com uma alegre promessa: repetiremos.
A esses amigos, digo hoje, no dia em que acordei com o eco das vossas vozes: obrigada!
5 comentários:
Vi esse último poema, entre alguns outros, transformado numa peça de teatro pelo Bando, outro dia. Não foi perfeito, não sei se fazia inteira justiça ao poema, mas não desgostei.
(e gosto muito de alguns dos que citas)
ainda hei-de descobrir qual era aquele do professor - lembro-me de ter gostado imenso, e agora nem me lembro do nome do autor! :(
'e aqui estou eu à espera
com este destino
de dar sombra aos muros.
mas à espera de quê?
que o despenhar no abismo
me crie enfim asas?'
(citado de cor)
josé gomes ferreira
Gosto muito, sem-se-ver.
E talvez seja isso mesmo: o despencar do abismo é que nos cria asas.
Outros, mais suaves, fazem caminho ao andar.
Obrigada, Helena. Pela minha Sophia, que me deu o meu pai. Pela Ana Luísa Amaral, que é descoberta de há 2,3 anos (vergonha, eu sei!) e pelo Manuel António Pina, a quem me rendi desde pequena. Quisera eu uma paz de espírito e uma aceitação assim.
beijo *
Mariana
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