19 outubro 2025

entardecer

 

Lembra-me o facebook que neste dia, em 2013, parei encantada junto a um canal perto do antigo aeroporto de Tegel. Apesar de ter fotografado com o meu telemóvel jurássico, ainda agora consigo sentir a paz daquele momento.
Entardecer junto ao aeroporto de Tegel
(ou: das vantagens de fazer biscates de taxista)










quem sobrecarrega o parlamento a esta hora tardia?

 


A propósito do pacto de Estado de que falava no post anterior, aqui deixo um pequeno episódio da vida do Parlamento Federal alemão. Às quintas-feiras, dia de plenário, é habitual a AfD acrescentar no final da sessão novos temas para debate, preparados sem a menor seriedade, para poder depois ir queixar-se de que é boicotada pelos outros partidos.
A sessão de plenário já está a ficar cada vez mais longa devido ao modo como a AfD debate no Parlamento, e estas propostas disparatadas de última hora, que aparecem quando já se caminha a passos largos para a meia-noite, são obviamente muito irritantes.
Há tempos, um deputado dos Verdes reagiu a um desses truques com um poema, adaptando os versos do Earlkönig, de Goethe:
"Quem sobrecarrega o Bundestag a esta hora tardia?
É o grupo parlamentar do qual ninguém gosta.
Apresenta uma proposta a que não se pode escapar
- nós rejeitamo-la. O que mais se poderia esperar?"
A vice-presidente do Parlamento que presidia à sessão comentou, divertida: "Não posso comentar o conteúdo, mas deu-nos um exemplo excelente de que é possível tomar a palavra sem exceder a duração prevista."

a perfeita golpada

 

Esta semana assistimos à perfeita golpada:

1. Depois de perder 800.000 votos (*), o tumor maligno da Democracia portuguesa pôs toda a gente a falar das burcas, e a discutir em termos de "eles que respeitem as nossas leis, que nós também respeitamos quando vamos à terra deles".
Facto é que a esmagadora maioria dos muçulmanos residentes em Portugal respeitam as nossas leis, e que o desrespeito, quando ocorre, é transversal às religiões (basta ir contar o número de cristãos que estão nas prisões, nomeadamente por femicídio). Mas o modo como o debate decorreu leva a crer que "eles", os imigrantes muçulmanos, são uma massa uniforme de abusadores e transgressores.

2. A proposta levada a Parlamento sobre a proibição de ocultar o rosto em espaços públicos tem uma longa introdução focada inteiramente na religião, nos direitos das mulheres, e no que outros países têm feito para combater símbolos religiosos no espaço público. Refere-se concretamente à "utilização de burcas, niqabs, demais trajes religiosos islâmicos e outras roupas que culminem em tal impedimento à exibição".

3. Três alíneas a destacar, no diploma:
"Art.2º, 1 - É proibida a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto.
Art.2º, 2 - É proibido forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião.
Art.3º, 2 - A proibição referida no número anterior é extensível em eventos ou práticas desportivas e manifestações."

4. Cada um tire as suas conclusões sobre este facto: na semana em que o seu partido perdeu 800.000 votos, e nos distraiu do desaire pondo o país a fazer discurso de ódio contra os muçulmanos, Pedro Frazão rejubila com a proibição de máscaras em manifestações da extrema-esquerda.

5. Pessoalmente, parece-me muito bem que se discuta o uso de máscaras no espaço público. E chamo pérfida à estratégia de discutir burcas e niqabs praticamente inexistentes na nossa sociedade quando o que se quer discutir são as máscaras nas manifestações de extrema-esquerda.

6. A única questão realmente interessante neste diploma é a proibição de forçar alguém a vestir o que não quer por motivos de género ou religião. Essa sim, valia a pena trabalhar a fundo - o que não será certamente feito pelo partido dos machos inseguros.

7. Pergunta para as pessoas preocupadas com a subjugação da mulher: se for proibido uma mulher sair para a rua de niqab, o que acham mais provável acontecer: (1) passa a sair à rua de rosto descoberto, ou (2) deixa de sair à rua?

8. Moral da história: infelizmente, é tarde para um pacto de Estado em Portugal. Na Alemanha, por enquanto, ainda existe esse esforço institucional de proteger a ordem democrática contra o avanço de forças consideradas antidemocráticas. Quando a AfD apresenta uma proposta de lei no Bundestag, seguem-se os trâmites legais habituais, mas a proposta nunca é aprovada (mesmo sendo sobre um tema neutro ou tendo algum mérito), para isolar politicamente este partido. Em certos casos, outros partidos apresentam uma proposta semelhante, e é esta que é discutida com seriedade e aprovada.



(*) Muito curioso: há 800.000 eleitores portugueses que se orgulham de ter metido no Parlamento português ladrões de malas, caloteiros, agressores de árbitros, pessoas que apagam mails oficiais e outras que mentem em tribunal - mas quando se trata da sua terrinha, já não querem lá especialistas da peixeirada, nem pessoas que pagam para ter sexo com menores, nem ladrões de caixas de esmolas... Odeiam "Lisboa", mas não se aperceberam que o que acontece em "Lisboa" lhes afecta ainda mais a vida do que as decisões do seu presidente da Câmara ou da Junta de Freguesia.

18 outubro 2025

encontrar a palavra certa

Por causa do girino do post anterior, fui confirmar a tradução de "frog", que é uma dúvida recorrente, porque anda meio mundo a trocar sapo por rã, e outro meio a trocar coelho por lebre (*), e uma pessoa até sabia distinguir uns dos outros mas, desde que a terra ficou plana, acaba por não ter bem a certeza.

A busca levou-me a uma página do reddit onde, a propósito da diferença entre rã, sapo e perereca, alguém começou a contar uma anedota:

"Sabe quantos anos vive uma perereca?"

E outra pessoa respondeu (até vou sublinhar, porque é mesmo todo um tratado de comunicação):

"Se a piada for meio pedófila fala baixinho aqui no ouvido pra eu não passar vergonha!"

E a primeira:

"Bom, eu ia dizer 15 anos. Agora acho que você tem um ponto. Melhor mudar de assunto."


Em tempos de terrível polarização, uma frase como estas é um bálsamo: afirma sem ostracizar. 


(*) Foi também nesta página que aprendi que o coelhinho de Páscoa começou por ser lebre: 

"
Dentro da própria língua inglesa tem muita coisa do avesso. Exemplo: o famoso coelhinho da páscoa (easter bunny) na verdade era originalmente "easter hare" (lebre da páscoa), mas com o tempo começaram a trocar os nomes e virou bunny (rabbit). E a língua portuguesa embarcou nessa, copiando a troca. Mas o animal da páscoa continua sendo a lebre e sempre vai ser, porque a época da páscoa (primavera no hemisfério norte) é justamente quando bandos de lebres saem de suas tocas, representando a renovaçao, o renascimento." 

(Poroutroladomente, pergunto agora: e os coelhos, ficam na toca até ao verão, ou quê?)



  

girinos

 


Encontrei esta imagem no Facebook, no mural de Steve Cousineau, que escreve:

 My Original Sketch. It isn't without a small amount of irony that one frog (Portland frog) is a symbol of anti-authoritarianism, while a right-wing frog meme (Pepe the frog) became a white supremacist favorite. Symbols are important...so are flies.


Esta evolução díspar dos girinos lembrou-me uma história que aqui publiquei há muitos anos:

Um casal, a quem nascera um filho, desentendeu-se quanto ao nome a dar à criança, e foi falar com o rabino.
- Qual é o vosso problema?, perguntou o rabino.
- A minha mulher quer dar ao nosso filho o nome do pai dela, e eu quero que ele receba o nome do meu pai, respondeu o marido.
- Qual é o nome do seu pai?
- Abia.
- E o nome do seu sogro?
- Abia.
- Então qual é o vosso problema?, perguntou o rabino, surpreendido.
- Sabe, disse a mulher, o meu pai era um doutor, enquanto que o pai do meu marido era um ladrão de cavalos. E eu não quero que o meu filho tenha o nome de um ladrão de cavalos!
Desesperado, mas incapaz de os deixar sem uma resposta, o rabino disse-lhes:
- Dêem ao vosso filho o nome Abia. Depois deixem-no crescer, começar a andar e a falar. Ouçam os seus sonhos, vejam como luta pelo seu futuro, observem como se realiza. E só depois saberão se ele recebeu o nome do doutor ou o do ladrão de cavalos.



17 outubro 2025

*pulso*

Ontem fui à zona comercial do meu bairro comprar um rato novo para o computador, e ao sair da loja vi uma ambulância parada junto ao passeio, um homem deitado no chão, alguém a tentar reanimá-lo - e um semi-círculo de mirones.

O corpo no chão tinha uma barriga grande, que, a cada massagem cardíaca, estremecia e rolava como uma onda. Desviei o olhar. Estava ali um homem a morrer, e os esforços para o salvar expunham-no ainda mais na sua trágica vulnerabilidade.

Afastei-me. Fui comprar pão, e ervas, e legumes. A senhora da padaria não atinava com nada do que era preciso - nem o preço do kg, nem a largura das fatias -, mas ali ao lado estava um homem a morrer, e de repente nada era preciso excepto que conseguissem salvá-lo.

Ao sair da loja de produtos biológicos ouvi sirenes várias - polícia, mais ambulâncias, médico. Segui caminho na direcção oposta, resistindo à vontade de ir saber daquele homem deitado no passeio, tão perto de mim e talvez já irremediavelmente longe.

O nosso pulso a bater tranquilamente enquanto atravessamos o quotidiano: raramente temos consciência do privilégio e do risco.

--- "Pulso" era o tema desta semana no Largo. Se quiserem ler como elas pulsam:

- Gralha dixit

- A curva



evergreen

 


13 outubro 2025

antifascimo


A frase do dia: "antifascismo é a continuação do amor à sua própria terra com outros meios"
(em alemão soa ainda melhor: "Antifaschismus ist die Fortsetzung der Heimatliebe mit anderen Mitteln.")
(a frase original, de Carl von Clausewitz, é: "Guerra é a continuação da política com outros meios")

10 outubro 2025

o Fox a fazer de arminho


Esta fotografia tem mais de dez anos, e a legenda que lhe inventei continua a fazer-me rir: "o Fox a fazer de arminho"

(O Da Vinci que não saiba)



 

*como cão e gato*

No Largo, todas as semanas se escreve sobre um tema diferente. Criei o péssimo hábito de escrever sempre sobre o tema da semana anterior. Hoje (alguém faça o favorzinho de ir espreitar a ver se a torre de Pisa se endireitou) decidi mudar de vida: logo depois de ter escrito sobre o tema da semana passada, publico o post desta semana.

Em dez minutos passo de *quando até ao apocalipse* para *como cão e gato*, e ocorre-me que os dois temas se podem ligar numa sequência lógica de combate ao pessimismo: desde que a internet (e a nossa própria vida) se começou a encher de imagens de cães e gatos a conviver em boa paz, a expressão "como cão e gato", que imediatamente identificávamos como algo impossível de conciliar, esvaziou-se. Pufffff. Como cão e gato: abraçadinhos, a brincar um com o outro.

Talvez, afinal, não haja nada de irrevogável (outra expressão que se esvaziou, curiosamente) no nosso destino. Se foi possível que cães e gatos se entendessem, talvez nos seja possível também parar o relógio que tiquetiqueteia em direcção ao apocalipse.

Vamos?


***

As amigas que se encontram neste Largo: A Curva 
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit 
O blog azul turquesa 
Quinta da Cruz de Pedra

*quanto até ao apocalipse?*


Foi em Setembro de 2018, lembro-me perfeitamente. Estávamos a descer a Serra da Arrábida, minúsculos naquela imensidão de verde e de mar, e uma ideia tomou conta de mim com a simplicidade do muito óbvio:

A Natureza subtrai e segue sem sequer pestanejar. Os humanos podem desaparecer com a mesma simplicidade com que todos os dias desaparecem silenciosamente várias espécies.

E depois, uma angústia:

"Que vai ser de Bach sem nós?"

Bach, como quem diz:

Não somos apenas anões avançando sobre os ombros de gigantes, somos responsáveis pela herança que nos deixaram e temos o dever de a transmitir aos vindouros.

Mas não é no futuro de Bach que penso quando reservo mais uma passagem de avião, quando compro um bom bife ou vários queijos, quando vou de carro em vez de transportes públicos, quando compro coisas de usar e deitar fora. "Uma vez não são vezes", e, além disso, "por muito que renuncie a estes prazeres da vida, isso não tem qualquer peso no conjunto do planeta..."

O capitalismo corre-nos nos sangue: a busca do máximo ganho pessoal é uma forma legitimada de estar na vida. Esquecemos que aqui ao leme sou mais do que eu. Em vez de nos unirmos numa radical mudança de rumo, cada um de nós ajuda a conduzir o navio na direcção dos monstros que já se avistam no horizonte.


*** No nosso Largo, por incrível que me pareça, nem todas falaram do mesmo apocalipse:

Rita Maria 

Carla R.

festival of lights



Tenho uma amiga que ontem à noite estava no centro de Berlim, até sabia que o Festival of Lights estava a começar, e não lhe ocorreu ir dar uma espreitadela.

Esta manhã descobriu que deixou distraidamente passar isto.
(Às vezes dá-me vontade de me divorciar de mim própria, mas depois não sei o que faria sem mim...)


02 outubro 2025

*alma minha*


"Alma minha" era aquele início de soneto que, na escola, nos fazia rir o riso parvo dos adolescentes. Ah, maminha...

É muito triste ser um adolescente de riso parvo. Porque o "ah maminha" estorva a beleza do soneto, e leva-nos para os antípodas do ambiente para conversar sobre afectividade na sala de aula.

Alma minha - como disse? Nem a alma que me habita é minha (quando muito, sou eu dela, vamo-nos fazendo juntas), quanto mais a alma de outra pessoa! Meu é aquilo de mim que ofereço ao outro, mas não quem se oferece a mim.

"Amor meu" era uma possibilidade. O amor que sinto em mim e me faz ajustar a bússola na direcção daquela alma.

(Mas: amigos como sempre, ó Camões. Não se pode acertar em todos os versos.)


---- "Alma minha" era o tema da semana passada no Largo. Mas meteu-se uma coisa e outra... A ver se acerto melhor o passo com as companheiras: A Curva 
A Gata Christie
Boas Intenções
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Quinta da Cruz de Pedra

até ao lavar dos cestos é vindima

 

Até ao princípio da próxima semana podemos sonhar.
Eu sonho isto:
- Nobel da Literatura para o Lobo Antunes.
- Nobel da Paz para a flotilha humanitária. (ah! isso é que era!)

01 outubro 2025

problemas do tempo que passa enquanto não passa

 

Decidi anteontem que, a partir de agora, é Outono. Mudei a roupa. Até anteontem passava frio, agora passo calor.
Alguém chamou "roupa de meia estação" à roupa de outono e de primavera. Mas esqueceram-se de inventar uma para usar entre o verão e aquela fase antes e depois das meias estações...
(sim, tenho problemas complicadíssimos na minha vida)


30 setembro 2025

cenas de tribunal

 

Há muitos anos um amigo pediu-me para ir a tribunal depor a favor dele num caso complicado de ele ter comprado uma casa que descobriu num anúncio do proprietário, e um agente imobiliário querer receber a sua parte. O tribunal precisava de averiguar quando é que ele tinha regressado depois de umas determinadas férias. O meu amigo até me tinha refrescado a memória mas eu, despistada, fui para o tribunal como quem vai ver a bola.
- Frau Araújo, quando é que o Herr X voltou das férias?
- Hmmmmm, não tenho bem a certeza, mas deve ter sido em princípios de Setembro.
- Não foi em meados de Agosto?
- Não, isso não foi de certeza!
- Como é que o pode afirmar com tanta confiança?
- É que ele foi de férias e deixou-me a tratar da rega das plantas da casa dele. A última vez que lá fui, foi com a minha cunhada que estava aqui de férias, na véspera do seu regresso a Portugal, que foi em meados de Agosto. E depois desmazelei-me, nunca mais lá fui regar, e andava cheia de má consciência.
O juíz repetiu o que eu disse para o seu gravador portátil: "a testemunha foi regar em meados de Agosto e depois desmazelou-se e andava cheia de má consciência".

O advogado do meu amigo ficou todo contente com o meu depoimento, porque parecia muito genuíno e nada ensaiado. Uns dias depois, o meu amigo disse, com um sorriso, que não sabia o que fazer: se convidar-me para um jantar por tê-lo ajudado a ganhar o processo, ou mandar-me a conta das plantas mortas.

(Um dia que queiram ganhar processos em tribunal, já sabem: encarreguem-me a mim de meter água.)

e já que comecei o dia a falar da aldeia da minha avó...

 

Uma vez, há muitos e muitos anos, a comissão de festas da aldeia da minha avó convidou o Adriano Correia de Oliveira e o Carlos do Carmo para virem cantar nas festas da padroeira. E eles vieram, os simpáticos. Era nos anos setenta, a revolução ainda fresca e a generosidade grande.
Às tantas, durante o concerto, o Carlos do Carmo chamou todas as crianças ao palco, sentou-as à sua volta, e começou a cantar, pedindo-lhes que o acompanhassem no refrão. E eles cantavam. amorosos:
parecem bandos de pardais
à solta
os...
chegado aqui, olhavam para as mães, olhavam para as avós, e emudeciam, muito enfiados.
O Carlos do Carmo bem tentava explicar-lhes que não tinha mal nenhum, mas eles olhavam outra vez para as avós, e tá queto.

Desconfio que foi por essas e por outras que a revolução correu de forma diferente na região do Minho.

"lavradeira"

 

A minha avó era #lavradeira. Não mulher de lavrador, mas herdeira da lavradores. Na aldeia dela, era dos que mais tinha em campos, hortas, bouças, animais. Aos oitenta anos geria a sua casa, os jornaleiros, as terras, o dinheiro (que nunca chegava). Não chegava, por exemplo, para lermos na cama à noite porque estávamos "a queimar luz", e era muito cara. Não chegava para o gás do fogão, que o irmão, o nosso tio americano, lhe tinha oferecido.

Mas chegava para ter fanecas fresquinhas para o almoço dos jornaleiros, belas postas de bacalhau, e aquela deliciosa sopa de lavrador, com feijão e couves, feita no pote da lareira.

E também chegava para a generosidade: em dia de matança de porco, os melhores pedaços do bicho eram distribuídos pelos vizinhos pobres.

Já nos esquecemos de como Portugal era pobre há cinquenta anos: quando a mulher mais rica da aldeia não tinha dinheiro para electricidade e gás.

Em vias de esquecimento parece estar também a decência daquela espécie de contrato social de poupar no seu próprio conforto para poder dar mais a quem mais precisava.


26 setembro 2025

*mentir com quantos dentes tem na boca*


Há muitos, muitos anos, no tempo em que os animais falavam, o meu irmão mais velho encontrou uma nota de vinte escudos quando estávamos, de mãos nuas, a escavar a praia furiosamente. Depois do almoço, no parque de campismo, foi com o pai à Polícia entregar o dinheiro. Podia ser que alguém lá fosse perguntar por eles, disse o pai.

Até eu, com seis ou sete anos, percebia que era uma hipótese altamente improvável. Mas eles foram, e entregaram aquela fortuna a um destino incerto. Vinte escudos: tantos gelados que podíamos ter comido nesse Verão, e ainda sobrava para comprar pás e baldinhos como os outros meninos tinham!

Voltaram com a cara de dever cumprido que mistura um ponto de exclamação satisfeito (notava-se mais no pai) com uma pontinha de reticências (notava-se mais no filho).

E foi assim que, pela - bem vistas as coisas - módica quantia de vinte escudos, os meus irmãos e eu recebemos uma lição que nos marcou para sempre: sentir orgulho na disciplina quotidiana de nos fazermos humanos, fazer o que devemos fazer independentemente do que ganhamos ou perdemos com isso. Fazer por andar na vida de costas direitas, ter critérios para distinguir o correcto do errado, orientar a nossa bússola pelo que é correcto. Saber que pôr os seus interesses à frente dos seus princípios, ser trafulha, e mentir com quantos dentes se tem na boca são coisas de animais que falam.

Entretanto os animais calaram-se, outros seres apoderaram-se do seu lugar de má fama mas fazem de conta que não, cada vez mais pessoas trocaram as voltas à sua bússola pessoal, e eu pergunto-me se, hoje em dia, a rectidão que o pai nos ensinava é coisa só de burros, de cordeirinhos e de bois mansos.



***

Infelizmente, só foram à Polícia depois do almoço. Tivessem ido imediatamente, e eu recebia uma lição suplementar: "não deixes para depois o que tens de fazer agora".

Mas não a recebi, e é por isso (sim, de certeza que é por isso...) que me atraso todas as semanas no Largo, e só publico o tema da semana anterior quando são mais que horas de publicar o da semana seguinte. Se quiserem saber qual é o tema desta semana, venham cá espreitar mais lá para o fim do mês... Ou então, vão ler nas páginas das companheiras do Largo:

A Curva 
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit 
O blog azul turquesa 
Quinta da Cruz de Pedra