22 julho 2025

binóculos de ver na terra curva

 

Dias há em que tenho mesmo pena de a terra não ser plana.
(preparem-se: vem asneira)
Por exemplo, daquela vez em que, no final de um jogo, no estádio ao pé da nossa casa, fizeram um fogo de artifício lindíssimo. Deixámos a televisão e corremos à varanda para tentar ver, mas só vimos o raio laser - nunca tinha visto um tão potente, aliás. Fogo de artifício, é que nicles.
Agora pergunto eu: se a Terra é redonda, porque raio inventam binóculos só de ver em linha recta? Isso é tão milénio passado!
Tantos Nobel, tantos Nobel, e ninguém inventa o que faz mesmo falta.
(eu preveni...)

18 julho 2025

música assim

 


Acabei de descobrir que a Khatia Buniatishvili vai dar um concerto na Filarmonia de Berlim em Dezembro.
Ainda não se sabe qual é o programa, mas os lugares mais caros (os lugares mais perto dela ao piano) já estão todos vendidos.
Ah, melómanos!...


(Uma vez vi uma entrevista dela onde falavam sobre os seus vestidos de concerto. Resposta: "Mas pensa que está no Irão, ou quê?")




"Geórgia"

 

Ontem foi dia de "Geórgia" na Enciclopédia Ilustrada.
Nunca lá fui, mas estava capaz de passar o dia a escrever sobre esse país. Primeiro post:
A #Geórgia e a Arménia são terras muito próximas do recomeço do mundo - o monte Ararat onde a arca de Noé ficou encalhada quando as águas desceram. De modo que é natural que haja competição para decidir quem foi o primeiro que fez isto e fez aquilo. A Geórgia insiste que foi quem fez o primeiro vinho do mundo, com uvas de videiras esparramadas pelo chão dos campos, envelhecido em ânforas enormes metidas na terra (as "qvevri", ou "kvevri").
Na Arménia conta-se que, quando Deus fez o mundo, chegou ao fim e descobriu que ainda tinha um monte de pedras no fundo do saco. Já estava cansado e muito farto de dar retoques no mundo inteiro, pelo que largou as pedras mesmo ali onde estava: em cima desse país. Não sei se é verdade, mas admito que seja mais suportável viver num sítio inóspito se o facto for visto como sinal da fragilidade de Deus e da sua presença concreta no lugar. “Coitado, já estava exausto quando se deitou aqui a descansar, ao sétimo dia, temos de ter paciência...”
Também me contaram que, quando vão à Geórgia, a estrada vai subindo as encostas daqueles montes imensos e, mal passam a fronteira, estende-se uma paisagem verde a perder de vista. Como se Deus se estivesse a rir dos arménios. Mas talvez não seja Deus, talvez seja a História, que, como se sabe, não é uma senhora recomendável: as fronteiras da Arménia são provavelmente aquelas que um povo ferido pelo genocídio conseguiu desenhar no braço de ferro com os poderosos vizinhos à sua volta. "Pffff, podes ficar com as pedras", terão dito esses vizinhos, imagino eu. E depois deitaram as culpas para Deus, que o divino sempre teve as costas largas.
Em todo o caso: não satisfeita com o troféu do primeiro vinho do mundo, parece que a Geórgia também arranjou de ficar com quase todo o verde da região, e desde que me contaram esta história, fiquei com enorme curiosidade de ir conhecer a Geórgia chegando pelo sul, pela estrada da Arménia. De facto, foi por causa desse contraste que a Geórgia se instalou no meu horizonte de desejos de viagem. E o palerma do algoritmo deve ter lido os meus pensamentos, porque ultimamente passa a vida a mostrar-me um vídeo para ir passar uma semana na Geórgia a aprender a cantar como eles. Só que entretanto fui ver o preço. Se calhar arranjo um professor de canto georgiano ali para os lados da Serra da Estrela, que fica muito mais barato e com dois ou três copitos daquele vinho do qvevri nem noto a diferença. Todos somos Geórgia!
(Eis, assim, como comecei a escrever um post sem saber aonde me levava, e acabei a desembocar numa mensagem de profundo humanismo: todos somos Geórgia...) (estou aqui, estou a habilitar-me ao prémio Nobel da paz)
E ainda falta dizer que a comida da Geórgia é uma delícia, pelo menos a avaliar pelo que comíamos no restaurante da cadeia de restaurantes Genatsvale, aonde fomos várias vezes quando andámos a filmar o ARtMENIANS em Yerevan, e onde fomos muito felizes.
(Eis, assim, como acabei de escrever um post que bem se podia chamar “Geórgia por um canudo, vista a partir da Arménia”)


Segundo post:

Dizer #Geórgia é dizer também Trio Mandili, e dizer Trio Mandili é, para mim, dizer aquela miúda saltitante, que vai puxando o burro por entre a que segura o telemóvel e a que toca o instrumento de cordas.
Pus a play list a correr, e de canção para canção fico cada vez mais encantada com a frescura e a alegria dela.
OK: delas.
(Dela)
Experimentem. Se ficarem como eu, aviso já: vi primeiro!


Terceiro post:



“In Bloom” é o primeiro filme da #Geórgia que me lembro de ter visto, e deixou-me uma impressão forte. Conta a história de duas amigas adolescentes em Tiblissi. Uma delas é raptada pelo homem que quer casar com ela – a política de facto consumado é uma tradição que, infelizmente, ainda persiste. E a outra, mais consciente de si própria, revolta-se com toda a situação e tenta convencer a amiga a voltar para casa, a não casar.
A cena da dança final, no dia do casamento, tem uma força inesquecível.
Depois da exibição fiquei a saber que é uma dança masculina. Melhor ainda. Grande miúda!




17 julho 2025

fatídico

 

17 de Julho: neste dia caíram quatro aviões - em 1996, 2000, 2007, 2014.
Se fosse aos cientistas que estudam os buracos no tempo e essas coisas (será que se notou que não sei do que estou a falar?), era capaz de ver aqui uma pista qualquer para investigar.

*terapia*

Na semana passada, o tema do Largo, aquele tal grupo de escrita, era "Terapia". Ando há mais de muitos dias a pensar o que posso dizer sobre um tema tão vasto. Não me apetece fazer confissões, não me apetece fazer de conta que sei do que estou a falar.

E eis que veio a poesia, e me salvou. (Salva sempre.)




"A parte de mim que é infinita". Lindo.

Para chegar a esse infinito, é preciso primeiro despejar todo o conteúdo das gavetas, escolher, destralhar, tirar o pó, e arrumar de novo - mas apenas o que interessa.

(Quem diria que o trabalho doméstico também salva?) --- As terapias delas:


16 julho 2025

a Cisjordânia aqui tão perto

 


Quando, anteontem, ouvi aquela mãe em Loures a perguntar desesperada onde vai dormir com a filha, pensei imediatamente nas cenas do documentário No Other Land, onde vemos escavadoras israelitas a destruir as casas dos palestinianos na Cisjordânia (começa aos 7:30, com legendas em inglês).

Loures, Portugal: não dá para acreditar que destruam alojamentos, por mais ilegais que sejam, numa região onde o arrendamento de um quarto custa quase todo um salário mínimo.
Não dá para acreditar que estas ordens sejam dadas.
Não dá para acreditar que estas ordens sejam obedecidas.


Em busca de uma explicação, suspeitei que algum investidor imobiliário tivesse mostrado interesse naquele terreno. A Rita Dantas vê o caso por outra perspectiva. E não é mais animadora. Recomendo muito a leitura: Vergonha, raiva e uma tristeza infinita.


15 julho 2025

harmonia polifónica


aqui contei que o meu coro e o Seda-i Aşk, do Conservatório de Música Turca, de Berlim-Kreuzberg, prepararam em conjunto um concerto que combinava músicas da cultura ocidental e da turca. Devido a outros compromissos, retirei-me deste projecto há cerca de um mês, ficando apenas com a responsabilidade da bilheteira no dia do primeiro concerto. E foi assim que dei comigo a assistir ao concerto do meu próprio coro sentada na última fila da igreja.

Bem sabia o que nos esperava, tanto mais que aprendera praticamente todas as peças. Mas nada me preparou para esse momento em que, no início do concerto, no altar da velha igreja berlinense, se ergueram as vozes de dois coros tão diferentes unidas num apelo:

"oh, Alá, abençoa!"

Este verso naquele espaço, entre o crucifixo e os típicos tijolos maciços da arquitectura sacra berlinense, levou-me para um lugar sereno dentro de mim, algures entre a alegria e a evidência: é isto mesmo, é assim que está certo. Imaginei que o Deus do Novo Testamento - o Deus do sermão da montanha, o Deus que é amor - estaria naquele momento a sorrir comigo, igualmente comovido. E continuaria a sorrir numa das peças seguintes, "Alta Trinita Beata", de um anónimo no século XV, cantada de novo por ambos os coros. Talvez deixasse até escapar uma lágrima no "Verleih uns Frieden", de Felix Mendelssohn, o filho de judeus.

Dá, Senhor, a tua paz
Ao nosso tempo.
Ninguém mais pode defender-nos
Senão tu, Senhor. Apenas tu.



Nos dez anos que agora completa, o coro Bancanta já teve projectos muito ambiciosos, mas este HeimatDIALOG foi, para muitos de nós, o mais difícil. Aprender as músicas do coro turco obrigou-nos a mudar a forma de trabalhar. Deram-nos - a nós, habituados a ler notas e a contar tempos - partituras com função meramente indicativa. Protestávamos: "vocês não cantam como está escrito!" Mas, a pouco e pouco, fomos aprendendo a ouvir o ensemble instrumental turco, a entrar no espírito e no ritmo do momento, a deixar-nos ir com os outros. E aprendemos também a reconhecer as pessoas e a libertá-las da categoria "turcos de Berlim". O violinista Fahri Karaduman, que nos deixava mudos de encanto. A jovem Büşra Mercan, que tem dois professores de violino, uma alemã e um turco, e terminou agora o mestrado em tecnologia alimentar. A soprano que punha na mesa petiscos deliciosos, e nos sorria com orgulho. Ou a contralto que ficou ao meu lado num ensaio, e me contou que quando veio para Berlim, em criança, já falava três línguas: o árabe da sua etnia; o curdo, que era a língua da maioria na região onde nasceu; e o turco, que a Turquia moderna tornou obrigatório para todos.

Seis meses de trabalho e diálogo para chegar àquele concerto: a cantar uns com os outros as músicas de uns e dos outros.

Algumas das peças foram cantadas por apenas um dos coros. O meu apresentou A Little Jazz Mass, de Bob Chilcott, que é também um diálogo entre duas margens de Heimat da cultura ocidental: a liturgia latina e o jazz.



Mas não só de religião vive a Heimat. O programa deste diálogo incluiu canções de amor ora em turco ora em alemão, e várias composições berlinenses, dos anos vinte aos anos cinquenta, entre as quais "Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt" (estou pronta para o amor, dos pés à cabeça), que conhecemos de Marlene Dietrich no filme Anjo Azul, e "Heimweh nach dem Kurfürstendamm" (saudades do Kurfürstendamm), peça composta em 1949, em pleno bloqueio soviético, lembrando a mais famosa avenida da parte ocidental da cidade, que nessa época ainda estava em ruínas. Canções sobre o desejo de ser feliz e de partir em busca da felicidade, sobre a alegria e sobre o mau feitio dos berlinenses, sobre as saudades de casa - canções da Berlim, às quais o ensemble de instrumentos tradicionais turcos emprestava um cunho particular. E mais uma vez me comovi a ouvir os nossos companheiros do coro Seda-i Aşk a cantar em alemão "Ah, tenho tantas saudades do Kurfürstendamm, tenho tantas saudades de Berlim!"

Ali estavam dois coros a dizer com música que, independentemente da nacionalidade, da religião, da cor dos olhos, e do lugar onde nascemos: todos queremos amor, todos andamos em busca da felicidade. E todos temos direito a ser parte da cidade que amamos.

No final do primeiro concerto, o nosso maestro exclamou alegremente: "Um projecto que devia ser visto em toda a cidade de Berlim!"

Penso que é bem mais do que isso. Bom seria que projectos como este fossem repetidos por muitos outros coros em toda a Alemanha, em toda a Europa. Porque precisamos cada vez mais de aprender a ouvir-nos mutuamente, olhar nos olhos daqueles a quem chamamos "os outros". Precisamos de aprender a estima mútua.

Porque, como escreveu Goethe, A tolerância devia ser um sentimento transitório: tem de dar lugar à estima.
A indulgência ofende.

Venham mais polifonias assim! Venha a harmonia. 

(Oh, Alá, abençoa! Dá, Senhor, a tua paz ao nosso tempo.)




13 julho 2025

toda satisfeita da vida



Ando há um mês a evitar disciplinadamente o corredor dos chocolates no supermercado (um mês inteiro, e ainda ninguém se lembrou de me dar uma medalhinha? e ainda dizem que vivemos em meritocracia e tal, mas eu cá só vejo que o esforço não é recompensado!) mas hoje, depois de encher o cesto de legumes e frutas, passei por lá para tirar uma fotografia à prateleira dos Tony’s, por causa de uma visita de estudo que quero organizar para uma amiga. Estou a pensar numa coisa muito
científica, com tradução simultânea, escolha de amostras, e tudo.

E foi então que, da prateleira de baixo, os Ritter me atacaram à traição. Três deles atiraram-se para o meu cesto num ápice.
E agora não sei se a culpa é da abordagem científica (se não tivesse de preparar aquela visita de estudo, estava agora em casa a roer cenouras e pimentos toda satisfeita da vida) ou da falta de reconhecimento do esforço (uma medalhinha, um elogio que fosse, e estava agora em casa a roer cenouras e pimentos toda satisfeita da vida).


11 julho 2025

o meu amor


O "dueto do ciúme", na Ópera dos Três Vinténs de Brecht, é uma canção agressiva, em que duas mulheres se insultam mutuamente e rematam com o grito "ridículo!"

Na sua versão Ópera do Malandro, Chico Buarque (vá-se lá saber porquê...) transforma o texto numa delícia de sensualidade. Em palco, Marieta Severo e Elba Ramalho cantam esse amor como quem atira pedras, a meio caminho entre a ideia de Brecht e a de Chico Buarque.


Mas depois, em concerto, Maria Bethânia e Alcione conseguem distanciar-se do clima de competição, e quase entram numa de poliamoria (moderninhas, elas...) - e fazem desta canção uma escola de erotismo.

Eis então: a Arte de Amar, segundo Chico.



imagina...

 


Imagina
Imagina
Hoje à noite
A gente se perder...
Esta dança aconteceu há alguns anos na Gay Pride em Colónia, e esta aqui terá sido no fim-de-semana passado. Li algures que os polícias de Colónia querem todos estar de serviço no CSD, porque é uma festa fantástica: um cortejo com mais de 50.000 participantes, centenas de milhares de pessoas a assistir, e tudo muito pacífico.
Embora o ambiente pacífico e festivo esteja, infelizmente, cada vez mais ameaçado pelo ódio que serve a extrema direita e é servido por ela.
---
Só mais um detalhe, caso haja por aí alguém que ainda não saiba:
I ❤ Chico
Por todos os motivos, e mais por este:
Sabe que o menino que passar debaixo do arco-íris vira moça, vira
A menina que cruzar de volta o arco-íris rapidinho vira volta a ser rapaz
A menina que passou no arco era o
Menino que passou no arco
E vai virar menina
Imagina
Imagina
Imagina



10 julho 2025

apesar de conhecer o fim



Por causa do "Speak Low" da Margarida Pinheiro (contei no post anterior) fui ter ao filme Phoenix de Christian Petzold.
* atenção: spoiler *
Trata-se de uma história de traições e muitas mentiras, que Nina Hoss desfaz numa cena final, onde revela não apenas a verdade daquele enredo, mas também que é uma actriz magnífica.

Aquele "spoiler" ali em cima é só para levar meio a sério. Acredito que os bons filmes, tal como os livros que leio até ao fim, são os que resistem bem à incursão ao seu final, que costumo fazer movida pela curiosidade irreprimível de saber como acabam. Se forem bons, todos os momentos que levam até ao já desvendado final valem a pena.
(O García Márquez, que bem sabia deste meu tique, fez o favor de escrever um livro só para mim: Crónica de uma morte anunciada. Começa logo por dizer ao que vem, e depois vai respondendo à minha pergunta "mas... mas... mas... como foi possível?!")
(E vocês: já alguém vos escreveu um livro? 😉 )
***
Speak low when you speak love
Our summer day withers away too soon, too soon
Speak low when you speak love
Our moment is swift, like ships adrift
We′re swept apart, too soon
Speak low, darling, speak low
Love is a spark lost in the dark too soon
I feel wherever I go that tomorrow is near
Tomorrow is here and always too soon
Time is so old and love so brief
Love is pure gold and time a thief
We're late, darling, we′re late
The curtain descends
Everything ends too soon, too soon
I wait, darling, I wait
Will you speak low to me, speak love to me and soon?

09 julho 2025

um passeio com Kurt Weill


Não sei como dizer a admiração que sinto por estas cantoras portuguesas que vi ontem na Schwartzsche Villa a oferecer um programa de Kurt Weill. Já me tinham dito que era muito bom: um passeio no tempo, desenhando com as canções de Weill figuras femininas dos anos vinte e trinta do século passado. Tal como o próprio Weill, em fuga da Alemanha nazi, 
as canções mudavam de língua - alemão, francês, inglês. E elas passavam entre idiomas, canções e personagens com segurança, e nervo, e graça.

Mas foi muito mais do que o passeio ao passado, mais que as histórias que contaram, mais que o à-vontade no palco e nas várias línguas: de ontem em diante, a minha "Speak low" é a da Margarida Pinheiro, acompanhada por Nanami Namura ao piano. E mais nenhuma.

E ainda estou para encontrar um refrão de "Surabaya Johnny" (mesmo da Lotte Lenya, e muito menos da Nina Hagen) com a tensão, a intensidade desesperada que a Inês Pinto lhe emprestou. (De modo que é isto: já não tenho idade para ser groupie de ninguém, mas agarrem-me, que...)





ADENDA: Uma amiga enviou-me links para gravações muito breves justamente das passagens que referi. Aqui podem ouvir um pouco do Speak Low da Margarida Pinheiro, e aqui um pouco do Surabaya da Inês Pinto. 

08 julho 2025

o Ronaldo e nós

 

Estava a ler um post de quem entende muito da parte do futebol que é jogo, e dizia com delicadeza que Portugal deve muito a Ronaldo mas que chegou a hora de ele deixar de jogar, etc. Tinha uma tabela dos golos marcados por Ronaldo nos últimos campeonatos sem ser na parte em que se decide por penáltis. Era só zeros. Enquanto bebia o cafézinho da manhã, pus-me a olhar para aqueles zeros todos (que pediam mais algumas colunas de tabela, para comparar com outros jogadores e para saber também dos penaltis, que também têm o seu papel na coisa, mas pronto, ficamos assim), e de repente dei comigo a pensar naquele seu fantástico momento de poesia:
Anda bater!
Anda bater!
Tu bates bem
Se perdermos
Que se f...
Personalidade
Vai!
Tu bates bem.
Agora está nas mãos de Deus
Tu bates bem.
E foi precisamente no "se perdermos" que me engasguei no café e ia indo desta para melhor.
Ainda cá estou, ainda não foi desta, mas olhem que tinha graça eu ir de cá para lá a pensar num momento em que o Ronaldo foi absolutamente glorioso sem marcar um único golo.

(Percebo tanto de futebol como de física quântica, mas divirto-me bastante)

**

A sério: com esta minha insistência em fazer posts sobre o que não sei, um dia destes ainda me convidam para comentadora na tv. Mas o que tem de ser tem muita força, portanto:
Repito que não percebo nada de futebol. Mas já ouço há pelo menos 10 anos dizerem muito mal do Ronaldo. Que está velho, que é incapaz, etc. etc. etc.
E depois, o velhinho incapaz vai e - por exemplo - faz um golo de bicicleta erguendo o corpo inteiro na horizontal, praticamente à altura da minha cabeça, e logo ali se torna um herói mundial que eleva o nosso país etc. e blablabla.
Se calhar já se inventava um mestrado de psicologia na área da bipolaridade em relação ao Ronaldo, era capaz de dar emprego a muito boa gente, e equilíbrio emocional a muitos mais.
(é golo de bicicleta que se diz, não é? é que nem isso sei, de facto)

**

E por falar em bipolaridade: o triste circo à volta do funeral do Diogo Jota e da ausência do Ronaldo. Não se tratem, não.

*salvação*


Salvação, para um católico, é a da sua alma. De um modo geral. Para uma católica da minha laia, é a do mundo. Nenhuma alma se salva sozinha. O processo de salvação - que é, no fundo, uma busca de sentido para a vida - é um caminhar de braços abertos para o mundo, e sobretudo para aqueles que mais sofrem.

Pouco me preocupa o juízo final, esse terrível momento em que virei a saber se me salvei ou não. Interessa-me mais o juízo de cada dia: hoje ajudei a tornar o mundo pior ou melhor do que estava?

(O que me lembra uma frase que li algures, sobre um pai que deixou de perguntar aos filhos como foi o dia deles na escola, e passou a perguntar "quem ajudaste hoje? a quem ofereceste um gesto de empatia e simpatia?")

De modo que ando na vida como o elefante da anedota atravessa o lago: tentando saltar suavemente de nenúfar em nenúfar.

Um dia virá, então, o Juízo Final - e por sorte quem o vai presidir é o Pai, e não o Filho. Sim: por sorte! Porque o amor deste Pai é generoso e benevolente, ao passo que, em certos dias, não há nada mais cortante e impiedoso que o julgamento dos filhos.

Aqui chegada, dou-me conta de que este pequeno passeio escrito ao correr do teclado me levou para uma questão existencial que até agora não tinha, e confesso que não me fazia falta nenhuma: se o Juízo Final fosse presidido pelos meus filhos, ou os meus vizinhos, ou os meus colegas de trabalho, ou os sem-abrigo com quem cruzo caminhos: será que me salvava?

---

Por erros meus, má fortuna e uma ou outra coisita mais, tenho feito gazeta ao colectivo de escrita que todas as semanas publica sobre um determinado tema. Deixei passar "caramelo", deixei passar "não bebo cerveja" (mas este, senhor juiz, deixei passar porque só me ocorriam brejeirices a propósito da delicadeza com que me introduziram à segunda cerveja da minha vida, e achei que já me desgracei q.b. por aqui, não precisava de acrescentar mais nada). Deixei passar muitos outros.

Um dia destes, ainda correm comigo do grupo. Pelo que me apressei a falar sobre salvação, que era o tema da semana passada.

Outras salvações:

Boas intenções 

A gata Christie 

Panados com arroz de tomate 

Gralha Dixit 

A curva 

O blogue azul turquesa 


07 julho 2025

o problema não são eles, somos nós

 

Duas décadas depois de ter começado a celebrar acordos com diversos países para receber trabalhadores estrangeiros, a Alemanha deu-se conta de que a "mão-de-obra" que importava afinal eram pessoas com família e vontade de ficar no país. A pouco e pouco, a "política de estrangeiros" foi dando lugar à "política de integração".
A Alemanha assumiu-se como país de chegada, e repensou as leis da nacionalidade.
No início deste século, houve uma acesa discussão sobre a integração dessas pessoas, sobre a diversidade versus primazia da "identidade alemã" (a famosa cultura dominante), e sobre um possível peso excessivo de estrangeiros.
Foi nessa altura, há cerca de vinte anos, que li um comentário de um turco num artigo de jornal, dizendo mais ou menos o seguinte: "De que adianta tentarmos integrar-nos ao máximo? Olhem para os judeus: integraram-se tão bem nesta sociedade que a eles se devem algumas das páginas mais brilhantes da ciência, da cultura e da política alemãs. Mas nem isso os livrou de serem levados para Auschwitz."
É importante que se debata tranquilamente as questões de diversidade e de integração. E também é fundamental perceber que o problema talvez não sejam os que chegam ao nosso país, mas os nossos tiques nacionalistas, racistas, xenófobos.
E que por muito que quem vem viver para o nosso país tente adaptar-se e integrar-se, não é por isso que os racistas deixarão de ser racistas.

hable con ella

 



Aqui estão miúdas europeias, com nomes que reconhecemos facilmente, talvez nos seus seis anos, orgulhosas por saber falar árabe.
O nosso país seria um lugar com horizontes muito mais largos se todos tentassem conversar com os imigrantes, em vez de os considerarem automaticamente "outro", só porque a preguiça e o preconceito impede tantos de ir ao encontro deles.

06 julho 2025

sabem quem é que também usou nomes para identificar os "inimigos"?



Na Alemanha nazi, muitos judeus eram facilmente reconhecíveis pelo nome. Mas nem todos, nem todos. Pelo que, em agosto de 1938, o governo de Hitler decretou que os judeus cujos nomes não fossem reconhecíveis como “tipicamente judeus” eram obrigados a acrescentar, nos documentos de identificação, um segundo nome próprio:  "Sara" para as mulheres, "Israel" para os homens.

Dessa maneira, os "inimigos" eram mais facilmente identificados por todos. 

Fique registado que esta semana, no Parlamento português, já foi lida uma lista de nomes típicos do "inimigo" - esses que, segundo o chefe da súcia, são "zero portugueses, zero portugueses, zero".

E, para que não haja dúvidas sobre os valores dessa gentalha, foram buscar os exemplos a uma lista de nomes de crianças. 


[  Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação entra em mim,
fica em mim presa.  ]

A deputada Isabel Mendes Lopes, do Livre, apelou aos direitos das crianças, e emocionou-se ao pensar no que sentirá cada menino ou menina que veja o seu nome assim citado no Parlamento português. As redes sociais da escória encheram-se de júbilo, anunciando que o seu cabecilha fora capaz de pôr uma deputada do Livre a chorar. São os autênticos portuguezes de bem.



[ A propósito, lembro dois nomes que, segundo a mesma lógica, seriam "zero alemães, zero alemães, zero":  Uğur e Özlem. Ele nasceu na Turquia, ela nasceu na Alemanha, filha de pais turcos. O pequeno Uğur era um aluno brilhante, mas os professores da sua escola primária alemã entendiam que filho de turco só pode ser "burro". Graças à intervenção de um vizinho alemão foi possível inscrever o menino na via de ensino mais exigente. Foi o aluno mais brilhante do liceu, fez carreira académica, e inventou com a sua mulher Özlem a vacina Biontech. A empresa deste casal fez com que, em 2021, o crescimento do PIB alemão tenha sido de 2,8% em vez de 2,3%. Gostava de saber quem era o professor ou a professora que quis impedir que o jovem Uğur continuasse os estudos no liceu, e se tem consciência da dimensão do seu erro, e do prejuízo que o seu preconceito podia ter causado ao Vaterland. Mas ninguém diz o nome desses "alemães de bem".  ]