2 Dedos de Conversa
... sobre o que nos desaquieta
25 abril 2024
24 abril 2024
Grândola em Berlim
por um triz
Por estes dias tenho andado a pensar que estou na cidade certa para festejar o cinquentenário do 25 de Abril: a capital do país onde quase 90% dos eleitores portugueses souberam resistir à estratégia de mentiras e ódio de um partido que bem sabemos.
É a cidade certa, mas nada de euforias, porque estes são tempos difíceis: segundo um inquérito recente, 22% dos jovens alemães querem votar na extrema-direita, porque não vêem perspectivas para si. Votam AfD, o partido daquele dirigente que choraminga por estarmos a ser demasiado severos com Hitler, o partido do deputado que recebeu dinheiro de uma fonte de propaganda russa (e queixou-se num telefonema que não devia ter vindo em notas de 200 euros, é uma maçada, muitas lojas não aceitam notas tão grandes...) e cujo cabeça de lista às eleições europeias tinha um assistente que passava à China informações sobre opositores ao regime chinês e documentos confidenciais do Parlamento Europeu. Tudo alemães de bem...
Estes jovens que têm uma vida difícil e por isso votam num partido de mentiras e ódio, de traição aos valores humanistas e de traição à pátria, lembram-me a frase conhecida dos pais de antigamente: "Estás a chorar? Espera aí que daqui a pouco vais ter motivos para chorar a sério!"
***
Mas, para já, vamos festejar o nosso "25 de Abril sempre!" com toda a alegria.
Porque, como avisa o poeta: "para sempre é sempre por um triz".
06 abril 2024
o regresso de Wladimir Kaminer
Como todos os outros, também o texto no meu post anterior tem uma história. Começou num lago em Brandeburgo, num dia primaveril. Estávamos num barquito com Wladimir Kaminer, o escritor alemão de origem russa que vive há mais de trinta anos em Berlim, e queríamos espreitar os castores no seu afã de construção. “Desde que tenho este motor eléctrico no barco, o lago tornou-se muito mais interessante, porque vou a todo o lado sem fazer barulho, os animais não se assustam”, comentou. Os animais deviam estar a fazer a sesta, porque não vimos nenhum. Ficámos por ali a saborear o sol e a paz, e a conversar amenamente. Wladimir Kaminer tinha de escrever um texto sobre a Páscoa, a pedido de uma organização das Igrejas Evangélicas alemãs que distribui textos para publicação nos jornais das comunidades locais, e faltavam-lhe ideias.
Num impulso, disse-lhe que me ocorriam duas ou três frases sobre o assunto, e que depois lhe enviaria. De regresso a casa, escrevi o texto do post anterior, e enviei-lho. Só muito depois me dei conta do desplante e da ousadia: que escritor aceita sem melindre que alguém lhe sugira o que escrever sobre um tema?
Wladimir Kaminer leu, e respondeu logo, elogiando imenso o meu texto, e que merecia ser publicado em todos aqueles jornais e revistas, e que o ia enviar à organização evangélica. Estou convencida que nem lhe passou pela cabeça, ou pelo coração, sentir-se ameaçado no seu orgulho de criador e de escritor famoso. E eu, que já gostava muito do que ele escreve, fiquei a admirar ainda mais o ser humano que existe por trás dos seus livros.
De facto, não era novidade. Já me tinha dado conta da sua humanidade dez anos antes, quando assisti a três entrevistas consecutivas que lhe fizeram por ocasião do lançamento do “Viagem a Tralalá”. Cada jornalista fazia praticamente as mesmas perguntas, mas, de cada vez, Wladimir Kaminer abria um sorriso enorme, como se tivesse estado toda a vida à espera daquele momento e por fim aparecia alguém para falar sobre o tão almejado assunto. E, de cada vez, a resposta era diferente.
***
Conheci Wladimir Kaminer em 2011, quando estava a traduzir o “Viagem a Tralalá”. Tinha dúvidas em relação a algumas passagens do livro, que queria esclarecer com ele. Picuinhices do género “quando usa a palavra ‘bode’ como insulto num diálogo, está a pensar em russo ou em alemão? Que animal devo usar para um insulto correspondente em português?” De férias numa ilha do Mar Báltico, descobri que ele ia ter uma sessão de leitura no teatro local. Comprei bilhete, falei com a organizadora, que era também a jornalista da terra e ficou muito satisfeita por poder acrescentar mais uma frase empolgante ao seu artigo sobre o evento (“a tradutora portuguesa de Wladimir Kaminer também estava presente na sessão”), e foi assim que nos conhecemos, fizemos uma fotografia para o jornal, e eu pude esclarecer todas as dúvidas. O lançamento do “Viagem a Tralalá” foi assinalado com uma “Russendisko” épica na Pensão Amor, em Lisboa, que obrigou a fechar as portas porque o chão estava em risco de ceder com tantas pessoas a dançar ao ritmo daquelas músicas russas e ucranianas. E foi também ocasião de dar a conhecer ao casal Kaminer alguns lugares especiais de Portugal: Óbidos, onde já em 2012 brindámos com tristeza à memória dos tantos que Putin enviava para a morte; a biblioteca de Mafra e um concerto extraordinário com os quatro órgãos; Marvão e Estremoz, onde estávamos a passear quando a filha telefonou e, ao ouvir a descrição da mãe (“Dormimos numa pousada onde há uma torre toda feita de mármore, numa cidade onde até os passeios são de mármore branco!”), perguntou se os pais tinham ido parar sem querer ao País das Maravilhas.
Mais tarde, tiveram oportunidade de conhecer outros lugares encantados de Portugal. Alguns deles fizeram o seu caminho até um livro. A feira de Barcelos, por exemplo: “um mercado do outro lado dos montes”, que aparece em “Duas ou três coisas que sei sobre a minha mulher”, onde Wladimir Kaminer conta a história dos guardanapos bordados que Olga comprou (“e foi nesse dia que uma família portuguesa se tornou milionária”), que no final de Dezembro são tirados do armário para pôr na mesa da festa de passagem de ano, olhados longa e amorosamente, e de novo guardados no armário porque são demasiado bonitos para se sujarem naquela festa cheia de excessos. Moral dessa história sobre o sentido da existência: “todos precisamos de alguém que nos dê amor.”
Da feira de Barcelos passámos à famosa Russendisko berlinense de Wladimir Kaminer, onde o meu marido e eu trabalhávamos com o prazer de voluntários: ele chegou a dar os primeiros passos como DJ, eu ficava na caixa e recebia centenas de sorrisos por noite. O ambiente era alegre e descontraído. Ao contrário de todos os outros clubes de Berlim, onde os seguranças usam e abusam do seu lugar de poder, a função dos seguranças à porta do Kaffee Burger, junto à Rosenthaler Platz, era apenas verificar se as pessoas não estavam demasiado embriagadas, a ponto de provocarem distúrbios. Os outros, todos os outros, eram bem-vindos naquele lugar profundamente democrático e livre.
***
Doze anos mais tarde, traduzo novo livro de Wladimir Kaminer: “Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse”, editado pela Zigurate. Um livro que olha com humor e amor para nós e para as respostas que vamos encontrando perante as múltiplas crises e perplexidades do tempo em que vivemos.
Foi um prazer enorme traduzir cada uma daquelas frases. Também foi um trabalho intenso, porque as frases de Wladimir Kaminer só aparentemente são simples. Ele serve-se da língua alemã com uma mestria que torna particularmente difícil recriar noutra língua frases igualmente curtas e tão plenas de sentidos. Um trabalho desafiante.
As linhas que se seguem vão parecer publicidade, mas eu entendo-as como serviço público. Depois me dirão.
O lançamento de “Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse” vai ser em Lisboa, no dia 9 de Abril, às 18:30, na Escola Alemã. Ricardo Araújo Pereira apresenta o livro. No final, para a alegria ser completa, Wladimir Kaminer vai mostrar o seu lado DJ para nos oferecer ali mesmo um pouco da famosa Russendisko do Kaffee Burger. Devido à invasão da Ucrânia, a Russendisko anda à procura de outro nome. Em Portugal, no dia 9 de Abril de 2024, será, como não podia deixar de ser, a nossa Aprildisko.
No dia 10 de Abril, às 19:00, haverá no Goethe Institut,
também em Lisboa, uma conversa de Wladimir Kaminer com Aurora Rodrigues, Irene
Pimentel e Leonor Rosas sobre “O charme discreto da ditadura – o que leva as
pessoas a glorificar ditadores?”
Joana Manuel será a moderadora.
É a resposta a um interesse manifestado pelo escritor, que quer aprender mais
sobre a ditadura portuguesa e tentar responder à questão do misterioso poder
apelativo das ditaduras e dos ditadores. Todos conhecemos o fenómeno em
Portugal (“ah, se Salazar aqui estivesse...”), e Wladimir Kaminer conhece-o bem
na Rússia: desde Estaline quase ter sido eleito “o melhor de nós” num concurso
televisivo (que foi interrompido para impedir o facto consumado), até jovens
russas que todos os anos posam para calendários eróticos que oferecem a Putin,
sem que alguém as obrigue a isso, apenas porque gostam realmente do seu
ditador.
Dada a importância deste tema, mais pertinente ainda no ano em que comemoramos o
cinquentenário do 25 de Abril, e no momento político que atravessamos em toda a
Europa, foi organizado um streaming com tradução simultânea, que permite assistir
em todo o mundo à sessão do Goethe Institut. Mais informações aqui (em
português) e aqui
(em alemão).
***
Para terminar, e a propósito da viragem à extrema-direita a que temos assistido no mundo, passo a palavra a Wladimir Kaminer: “Não podemos soçobrar no mar da loucura. Temos de manter a razão e o humor, continuar confiantes. Estamos perante „obras do diabo“, que se destruirão a si próprias. Não devemos demonizar os confusos. O Bem acaba por prevalecer, por formas que não sabemos explicar.”
Por formas que não sabemos explicar, diz ele. Talvez seja, afinal, a
acção do tal Ser desconhecido de que falava no final do meu texto sobre aPáscoa: que apela ao melhor que há em nós, e nos convida a ir para além da
nossa imperfeição humana, com vista à construção de um mundo melhor para todos.
a Páscoa do futuro
„O que é a Páscoa? Sei que morreu alguém – mas quem era essa
pessoa?”
Quem fazia tais perguntas era um jovem inglês, finalista do liceu na Escola Europeia de uma cidade do sul da Alemanha, em finais do século XX. Depois de superar o meu próprio espanto, falei-lhe do Natal (um Deus que se faz humano), de Jesus (“oh, esse era um tipo cool, toda a gente o conhece”, comentou ele com um sorriso enorme) e por fim narrei a traição, a morte na cruz e a ressurreição. Olhou-me como se tivesse acabado de lhe contar uma história delirante. “Vocês acreditam nisso?!”, perguntou ele, e no seu rosto espelhou-se uma tolerância benevolente.
Transmitir a alguém a fé cristã é uma tarefa muito difícil. Especialmente
quando os valores e os simbolismos são transportados por uma Igreja que se
revela de mãos sujas ao longo da História – e, por desgraça, também no
presente. A sede de espiritualidade e transcendência continua a existir no ser
humano, mas os caminhos dessa busca são cada vez mais diversos e, nomeadamente
no contexto social europeu, deixaram de ser um monopólio das Igrejas. Ao mesmo
tempo, a cultura e os valores mais essenciais da nossa Europa assentam no
Cristianismo. Sem um conhecimento básico da tradição cristã, ninguém entenderá
o essencial de muitas obras de Bach ou Da Vinci, por exemplo. E, no que diz
respeito aos valores, reconhecemos a maior grandeza àqueles que agem movidos
por imenso amor aos outros – o que é, afinal de contas, o essencial da mensagem
de Jesus Cristo.
Num mundo onde convivem cada vez mais o ateísmo, o agnosticismo e múltiplas espiritualidades alternativas, qual será o lugar do Cristianismo e da sua interligação com a nossa cultura? Será que, em algum momento, as imagens da cultura cristã passarão a ser vistas e entendidas do mesmo modo que as da antiguidade clássica? “A Anunciação” equiparada a “Leda e o Cisne”? “O Rapto das Sabinas” ao lado de “A Matança dos Inocentes”? Será que frases como “atire a primeira pedra” e “mais facilmente passa um camelo pelo buraco de uma agulha...” serão usadas com a mesma ignorância sobre o contexto original com que hoje em dia dizemos “o dinheiro não tem cheiro” ou “in vino veritas”?
E se outra fé vier ocupar o lugar do Cristianismo, e se sociedades futuras misturarem novos simbolismos às nossas datas maiores: quem ressuscitará no domingo de Páscoa?
Não sei, mas estou certa de que se tratará sempre de um Ser
que apela ao melhor que há em nós, e que nos convida a ir para além da nossa
imperfeição humana, com vista à construção de um mundo melhor para todos. O que
quer que seja que isso significa: caberá sempre a nós descobrir.
27 março 2024
por quem os sinos dobram
Nas férias da passagem de ano li "Não Terão o Meu Ódio", o diário que Antoine Leiris escreveu nos dias que se seguiram ao ataque ao Bataclan, onde perdeu a sua companheira. O quotidiano subitamente rasgado pela violência. As coisas simples: a hora do banho do filhinho, as papas que as mães de outras crianças do infantário preparavam para o bebé, os vestígios da existência da companheira no cheiro das coisas espalhadas pela casa, nos rituais. E em tudo, para sempre: a sua ausência.
Lia isto na passagem de 2023 para 2024, e a cada frase pensava: Gaza. Em Gaza, a tragédia da família de Antoine Leiris multiplica-se por cem todos os dias.
Gaza. No meio de descalabro total que hora após hora se atira com fúria renovada contra as famílias, como pode alguém fazer o luto? Quem anda há meses em fuga, sem casa nem comida, quem foi reduzido à condição de um animal acossado que tenta a todo o custo sobreviver: como pode chorar na hora do banho e na hora da papa do bebé? A violência que se soma à violência, os choques consecutivos. Quando esta terrível guerra terminar por fim, como será possível curar os os sobreviventes dos traumas que ela lhes deixou?
E agora Moscovo. De novo um Bataclan, de novo centenas de famílias como a de Antoine Leiris: dilaceradas pela violência.
E também o Sudão, e também o Iémen, e também a limpeza étnica em Nagorno-Karabakh que passou por entre os pingos de chuva da nossa atenção. Também ali descalabros de violência, não menos terríveis e não menos dolorosos para as suas vítimas, mas que escapam ao nosso radar.
Esta semana vi The Zone of Interest.
Aqueles somos nós, não somos?
Não "repartimos entre nós as suas vestes, nem lançamos sortes sobre a sua túnica" com a crueza dessa cena no Evangelho e no filme, mas somos nós os herdeiros e beneficiários de uma ordem mundial onde outros são despojados e morrem para nós vivermos melhor. Ou menos mal.
Por isso, não perguntem por quem os sinos dobram: eles dobram por nós, e pelos que morrem por nós - e somos nós quem os faz soar, anunciando o horror da morte. Agitamos as suas cordas com as nossas mãos sujas, numa algazarra onde o alarme e o ódio se misturam, onde todos querem ser donos da razão e onde a razão emudece, perplexa, sempre que morre um inocente.
Que fazer?
Regresso a Antoine Leiris: "não terão o meu ódio" é o primeiro passo num caminho para longe da lógica de destruição e antagonismo em que mergulhámos o nosso mundo, onde nos estamos a afundar.
23 março 2024
"limpar Portugal" - quadro de honra
De tudo um pouco: corrupção, dívidas ao Estado, falsas presenças como deputado, violência doméstica, violência na rua, calúnias... São os deputados do partido que diz que vem limpar o país. Citando Miguel Szymanski, a propósito do resultado das eleições: "Há pessoas que, de tanto se sentirem enganadas, de tanto se indignarem com as óbvias falhas do sistema e a sistemática impunidade dos seus agentes, querem agora ser burladas à grande, à séria, aos berros, à antiga portuguesa."
Em termos de militantes, figuras próximas de André Ventura e representantes do Chega a outros níveis, são "limpezas" de luxo: sequestro, extorsão, tentativas de homicídio - e até um que "limpava" muito bem as caixas das esmolas, tanto por fora como por dentro.
estes que enriquecem o nosso mundo
22 março 2024
longa vida ao nosso jovem!
17 março 2024
Alemanha e Israel
Private Collection. © Gerhard Richter
Aqui a dorminhoca só reparou hoje que a Almanaque Mag já saiu em Fevereiro. Isso foi, segundo as minhas contas, duas séries de correrias antes daquelas em que ando agora metida. Em plena Berlinale. Não importa: aí está o artigo que escrevi em Novembro de 2023 sobre a Alemanha e Israel. Nasceu de uma necessidade forte que senti na altura de explicar um pouco mais sobre os motivos do comportamento da Alemanha perante os crimes terríveis que Isael estava (e continua) a cometer em Gaza. Algumas passagens já não são muito actuais. Entretanto Israel já triplicou o número de civis que matou em Gaza; os próprios políticos alemães e a população começaram a criticar mais abertamente o governo de Israel; na altura, Geert Wilders era o vencedor das eleições nos Países Baixos, e havia notícias sobre o medo sentido por muçulmanos naquele país - neste momento, já vimos que mesmo que a direita populista ganhe eleições, é possível proteger a democracia. Mesmo assim, o artigo não envelheceu tão mal como temia.
Leiam, e digam o que vos parece.
https://almanaquemag.com/alemanha-e-israel/
15 março 2024
"limpar Portugal"...
11 março 2024
involução
ontem
Ontem houve um momento comovedor na assembleia de voto do Consulado de Berlim: uma jovem portuguesa descobriu que não podia exercer ali o seu direito de voto, e começou a chorar desconsoladamente.
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Para os emigrantes portugueses, o sistema eleitoral é muito complicado. Numas eleições o voto é apenas presencial, noutras é por sistema postal excepto se as pessoas se inscreverem (atempadamente!) para voto presencial. Depois há pessoas que mudam de casa, se esquecem de informar o Consulado sobre isso, e a carta com o boletim de voto é enviada para a morada anterior. E há as que dão a nova morada para efeitos de renovação do passaporte, mas esta informação não passa automaticamente para o sistema de recenseamento eleitoral.
A informação está toda no site da CNE, mas as pessoas provavelmente confiam que "vai ficar tudo bem", e no final têm decepções enormes.
E como se isto não fosse já muito complexo, ainda temos os correios alemães, que agora são uma sociedade anónima, e desde 2015 maioritariamente na mão de privados. O Estado português bem se esforça a enviar todas aquelas cartas com registo e aviso de recepção, mas estas, mal entram em território alemão, parece que lhes dá uma maluqueira qualquer. E como as pessoas não se dão conta de que a sua carta se extraviou ou voltou para trás, não contactam atempadamente a CNE para pedir novo envio.
(Também houve uma pessoa que recebeu a carta em casa, mas pensou "ah, prefiro ir votar ao Consulado" - perdeu a viagem e perdeu o voto, porque a carta tinha de ter carimbo do dia anterior. E houve outra que, ao ser informada de que não podia votar porque não se tinha inscrito para o fazer, desatou a insultar a mesa e a ameaçar: "Vocês não sabem com quem se meteram!")
09 março 2024
votar
Hoje estive no Consulado de Portugal em Berlim das oito da manhã às sete de tarde. Eu, e mais cinco pessoas:
Amanhã, lá estaremos outra vez das oito da manhã até à hora em que aparecer o último de todos os que se inscreveram para o voto presencial.É só um exemplo do outro lado da medalha: para que os portugueses possam exercer o seu direito de voto, o Estado português gasta muitos milhões de euros em organização, papel, franquias para o voto postal, etc.
E há milhares de pessoas a oferecer generosamente o seu tempo livre para assegurar o funcionamento das mesas de voto.
Ia apelar ao voto - ao voto em partidos que não atirem o nosso país para uma deriva de ódio e autoritarismo - e de repente uma recordação feliz veio ao meu encontro: as primeiras eleições em Portugal depois do 25 de Abril.
A alegria, o entusiasmo das pessoas. A consciência da importância e da dignidade daquele acto.
06 março 2024
Berlinale 2024 - dia 2
05 março 2024
Berlinale 2024 - dia 1
1. Yoake no subete - All the long nights, de Shô Miyake
Gostava muito de ter visto este filme, mas descobri demasiado tarde que há um raixparta de um túnel de S-Bahn que está em obras. Tive de mudar o percurso, perdi um tempo precioso, cheguei demasiado tarde. Aprendi para a vida - nunca mais perdi nenhum filme da Berlinale por causa desse maldito túnel em obras.
2. Săptămâna Mare - Holy Week, de Andrei Cohn
Roménia, finais do século XIX. Uma família judia vive à margem da aldeia, numa pequena propriedade onde tem um restaurante para quem passa. Às vezes, o marido conversa com a mulher sobre um rumor que ouviu, sobre a possibilidade de se mudarem para uma terra longínqua, nem se sabe bem onde, algures perto da Síria, onde poderiam viver em paz. Ela não acredita nisso. A partir do momento em que o pai da família começa a temer vir a ser vítima de um acto de grande violência, e a polícia da terra ignora os seus pedidos, desata a tomar decisões erradas.
Um filme escorreito, de ritmo um pouco lento, que não é necessariamente um daqueles filmes imperdíveis. Mas há algo importante que me ficou dele: lembrar (nunca esquecer!) a vulnerabilidade e a impotência perante uma hostilidade generalizada, que eram elementos determinantes na vida qutodiana dos judeus europeus. E perceber o poder apelativo do sonho de ir viver numa terra livres de humilhações e violências.
3. Small Things Like These, de Tim Mielants
Uma pequena cidade na Irlanda consegue assobiar pacatamente para o lado perante as atrocidades praticadas num lar de freiras que acolhe mulheres jovens "perdidas" - uma das "Magdalene Laundries" irlandesas onde tantas mulheres sofreram horrores. Todos, menos um pai de família, que vê e se debate com a decisão entre arriscar o futuro das suas próprias filhas e tomar uma posição de frontalidade e de respeito pela sua própria consciência.
Emily Watson extraordinária no papel de directora do lar. Cillian Murphy às vezes um bocado cansativo naquelas cenas de penumbra em contraluz onde o seu conflito interior se manifesta num perfil de boca entreaberta, a respirar com custo. Às escuras, até eu sou boa actriz...
04 março 2024
Berlinale 2024 - em defesa da liberdade de expressão
No post anterior falei sobre o aceso debate suscitado pelas críticas à guerra de Gaza que foram feitas na cerimónia de encerramento da Berlinale. Há políticos responsáveis na área da Cultura a anunciar o fim de apoios financeiros a "artistas anti-semitas", há instituições a anunciar que vão rever os apoios de financiamento à Berlinale. Neste contexto de "crime e castigo" (sendo que o crime é uma acusação de "anti-semitismo" segundo critérios que poucos entendem), esta declaração de Carlo Chatrian e Mark Peranson aparece como uma lufada de ar fresco:
March 1, 2024
We have a great deal of respect for the institution we are working for and for the country that has hosted us for the last five years. The way Germany has handled its past and overcome it, becoming a leading country in supporting human rights and welcoming people in distress has been admirable, and that is one of the reasons why we have been so proud to work for the Berlinale. Knowing that our backgrounds don’t allow us to fully comprehend the complexity of people’s feelings and beliefs, we have always aligned with the festival’s decisions even when these were not exactly ours and at times did not go in the direction of what an international film festival should stand for.
The last days have made us aware of the great danger that the Berlinale, like other institutions in Germany, is facing. That’s why we dare to raise our voices. We stand for cinema, which doesn’t belong to any political party- it is neither right wing nor left wing. We believe in the power of cinema to unite people. This year’s festival was a place for dialogue and exchange for ten days; yet once the films stopped rolling, another form of communication has been taken over by politicians and the media, one which weaponizes and instrumentalizes anti-Semitism for political means. No matter our individual political convictions or beliefs, we should all keep in mind that freedom of speech is an essential part of what defines a democracy. The award ceremony on Saturday, February 24 has been targeted in such a violent way that some people now see their lives threatened. This is unacceptable.
We stand in solidarity with all filmmakers, jury members, and other festival guests who have received direct or indirect threats, and do not back down from any programming choices made at this ear’s Berlinale. We also take this opportunity to state that we deeply feel for the hostages still being held by Hamas, including former Berlinale guest David Cunio, and we call for an immediate release of all other hostages. We also feel for the lives of millions of people in Gaza; their lives are in danger. To the ones who say that it is either or, we want to remind you that sorrow is universal. Mourning the loss of human beings on one side doesn’t mean that we don’t mourn others’ losses too. Stating the opposite is simply dishonest, and shameful and polarizing behavior.
As festivalgoers and programmers, we truly hope that the Berlinale will stay a “window of the free world”. A place where any film can be shown. A place where any international guest can come without having their political views scrutinized. As Meron Mendel, director of the Bildungsstätte Anne Frank said when asked for comments regarding the award ceremony, “It would be wrong to describe all those who criticize Israel one-sidedly and sometimes with radical positions as antisemites…
Whether we like it or not, we have to learn to endure such debates!
Carlo Chatrian, artistic director
Mark Peranson, head of programming
02 março 2024
Berlinale 2024 - entre a política e o cinema, com a guerra de Gaza no centro do palco
A Berlinale começou a 15 de Fevereiro, e acabou no domingo passado - depois de 90 km, 180 andares e três dúzias bem aviadas de filmes, no que me diz respeito. Desde que verifico no telemóvel os passos que dou e as escadas que subo, dou-me conta de que a Berlinale é meia preparação para uma maratona.
Em 2024, o festival mostrou-se ainda mais político que o habitual. Na cerimónia de abertura começaram por aludir ao facto de terem desconvidado dois deputados da AfD, depois de se ter tornado pública a ligação deste partido a um movimento que pretende expulsar do país estrangeiros e até os seus filhos com nacionalidade alemã ("as tradições são importantes, mas às vezes é preciso serem revistas, e foi o que fizemos"). Condenaram a invasão da Ucrânia, o massacre do Hamas e o horror que neste momento se abate sobre a população civil de Gaza. No seu discurso, a ministra federal da Cultura referiu-se à guerra de Gaza num tom que já foi bem diferente do registo dos representantes políticos alemães em Outubro e Novembro. Por parte da Alemanha, o apoio a Israel mantém-se - mas não impede esta ministra do governo alemão de acusar a tragédia humanitária, e de afirmar que é imperativo caminhar urgentemente para uma solução de coexistência pacífica entre ambos os povos.
Perante o ambiente muito tenso desta Alemanha polarizada entre o apoio incondicional a Israel e as duras críticas à catástrofe humanitária em Gaza, os directores da Berlinale falaram do festival como um espaço de diálogo, de troca de ideias e de escuta do outro, e apresentaram o projecto "tiny house", que é sobretudo simbólico: um pequeno pavilhão na Potsdamer Platz onde, no início do festival, durante três dias um judeu e um palestiniano se ofereciam como interlocutores para quem quisesse trocar ideias e verbalizar angústias.
O festival de cinema correu bem, como é habitual. Nota-se nos detalhes que já não tem os patrocinadores poderosos de outros tempos, mas os bilhetes para a maioria dos filmes continuaram a esgotar poucos minutos depois da abertura das bilheteiras online, e muitas praças de Berlim encheram-se com o bulício típico da Berlinale.
Na cerimónia de encerramento é que tudo se complicou: os prémios principais foram atribuídos segundo critérios mais políticos que artísticos - urso de ouro para um documentário sobre a restituição de peças de património cultural ao Benim, prémio do melhor documentário para "No Other Land", sobre a ocupação violenta de aldeias palestinianas e o roubo de terras na Cisjordânia. Os discursos foram - segundo as críticas que logo agitaram a sociedade - demasiado unilaterais. Falou-se em genocídio e apartheid, exigiu-se um cessar-fogo imediato, mas a ninguém ocorreu lembrar o massacre do Hamas, e o que revelou ao mundo inteiro sobre a insegurança de quem vive em Israel. Mais significativo ainda: quando duas pessoas da assistência se ergueram e gritaram "Paz para Israel e os palestinianos!", foram vaiadas. E os políticos presentes na sala - entre outros, o presidente de Berlim e a ministra federal da Cultura - não tiveram a presença de espírito de reagir de forma adequada. Como também não houve reacção por parte dos moderadores no palco, nem dos directores da Berlinale.
No noticiário do primeiro canal de televisão, o responsável pelo pelouro da cultura do Estado de Berlim acusou o anti-semitismo que grassa nesta sociedade e em particular no mundo da cultura, e que tem de ser encarado de frente, nomeadamente recusando financiar com fundos públicos projectos artísticos de pessoas que são anti-semitas ou têm um comportamento discriminatório. Como é, infelizmente, habitual nestes casos, o seu discurso não foi claro na distinção entre anti-semitismo e crítica aos actos cometidos pelo Estado de Israel.
A comentadora Monika Wagner foi mais clara e pedagógica: "O que aconteceu na Berlinale provocou um escândalo que não foi útil para ninguém e prejudicou muitos, desde logo os artistas que querem que o seu trabalho seja levado a sério. Sim, pode-se exigir um cessar-fogo, sim, pode-se criticar a política de colonatos de Israel, sim, com certeza que se pode criticar o modo como Israel aceita que em Gaza sejam mortas pessoas inocentes em massa. A nada disto se pode chamar "discurso anti-semita". O que levanta questões é o modo como alguns criticaram as operações militares de Israel em Gaza sem mencionarem o sofrimento das pessoas no dia 7 de Outubro. Porque estamos a falar de pessoas que foram torturadas e mortas com toda a bestialidade, pessoas que foram desumanizadas. Falamos de uma organização terrorista que quer implantar um Estado islâmico, quer varrer Israel do mapa e tem ainda em seu poder muitos reféns inocentes. Nos seus discursos, os artistas premiados não disseram uma única palavra sobre isto. Não será possível pôr fim a este conflito assustador se não se encarar e nomear o sofrimento de ambos os lados. Só uma verdadeira compaixão em relação a todas as vítimas pode ajudar a resolver este conflito e a restaurar a humanidade. O que não ajuda nada são afirmações unilaterais cheias de veemência. Pode-se ou deve-se proibir manifestações deste género no futuro? Como é óbvio: não. Deviam os moderadores ou a direcção do festival ter reagido de outra forma? Isso teria, ao menos, reduzido a dimensão dos danos. Porque os danos são imensos no caso de um festival internacional como este. A polarização unilateral raramente ajudou a resolver um conflito; na maior parte dos casos, tornaram-no ainda mais grave e mais duradouro."
Perante a catástrofe de Gaza, o mundo dá consigo cada vez mais entrincheirado em retóricas de abominação do outro. Se queremos o fim deste conflito de tantas décadas, temos de saber pôr fim à espiral do ódio. Antes de mais, temos de ser capazes de transformar o nosso discurso num húmus para a paz: a matéria orgânica que transforma a podridão e o horror da morte em promessa de vida. Queremos que Israel e os grupos jihadistas parem de atacar as populações civis de um lado e do outro do muro, queremos a libertação imediata tanto dos reféns do Hamas como dos palestinianos que estão em prisões israelitas sem julgamento. E queremos que os governos dos nossos países se unam a uma comunidade internacional cada vez mais coesa, e muito determinada em estabelecer uma ordem nova que garanta para todos - judeus e árabes - a coexistência pacífica e uma vida com dignidade naquela terra.