21 maio 2024

no parlamento federal alemão, não pode - nem por sombras





Para memória posterior, aqui fica registado que aconteceu no Parlamento português, em 17.5.2024:

Pergunta da deputada Alexandra Leitão: "Se uma determinada bancada disser que uma determinada raça, ou uma determinada etnia, é mais burra, mais preguiçosa ou menos digna - também pode?"

Resposta de Aguiar-Branco, Presidente da Assembleia da República: "No meu entender, pode." A seguir, justifica: "A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada. A avaliação do discurso político que seja feita aqui nesta casa será feita pelo povo, em eleições." E insiste: "Não serei eu nunca a cercear a liberdade de expressão de um senhor deputado."

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Passei pelas redes sociais, encontrei o circo instalado. De um lado, o gozo e os aplausos por parte dos adeptos do "quanto pior, melhor". No outro extremo, este desabafo dos professores tocou-me especialmente: "se o presidente da Assembleia da República diz que o discurso racista está protegido pela liberdade de expressão, retira aos professores a autoridade para impedir comportamentos ou discursos racistas na sala de aula, e está a torpedear o cumprimento de um dever da escola, que é a construção de uma sociedade democrática e coesa, assente no respeito pelos direitos garantidos pela Constituição."

Em vez de repetir neste blogue o que por aí se diz e lê em português, traduzo alguns textos da comunicação social alemã, apenas com o intuito de informar sobre como se fala sobre estas questões na Alemanha (lembram-se? É o país onde Hitler chegou ao poder por via democrática – e “gato escaldado”...)

Não sou especialista destes temas. Limitei-me a fazer uma pesquisa sumária com o auxílio do google, e a traduzir algumas das primeiras páginas que me apresentou. Aqui, por ordem cronológica:

 

 

17.5.2018
Excertos de um artigo sobre as ofensas às normas e à dignidade do Parlamento Federal alemão (Bundestag), alguns meses depois de nele existir uma facção da AfD:

 

Quem preside a uma sessão parlamentar tem à sua disposição várias possibilidades para manter o respeito pela ordem e pela dignidade do Parlamento. Entre elas: repreensão, chamada à ordem, expulsão da sala (pode ir até 30 dias).

Na primeira legislatura (1949 a 1953) e na décima (1983 a 1987) foi preciso recorrer inúmeras vezes a esses instrumentos. A décima legislatura coincidiu com a entrada no Parlamento de um jovem partido: os Verdes. Famosa ficou a sessão em que Joschka Fischer disse ao presidente: "Com todo o respeito, o senhor é um cabrão". Foi expulso da sessão, e no dia seguinte pediu desculpa. As legislaturas seguintes tornaram-se muito calmas no que diz respeito ao tom do debate parlamentar. Com a entrada da AfD, no Outono de 2017, recomeçou a necessidade de velar para manter a ordem e o nível nas sessões parlamentares. Várias vezes os deputados da AfD foram interrompidos pelo presidente da sessão por se expressarem de forma "inapropriada para o Parlamento", ou "em moldes que não são habituais entre nós". Em Maio de 2018, a líder do grupo parlamentar da AfD, Alice Weidel, afirma no seu discurso: "Burkas, raparigas de lenço na cabeça, assassinos de faca a viver de subsídios e outra gente sem préstimo não vão garantir a nossa prosperidade, o crescimento económico e, acima de tudo, o Estado social". O presidente do Bundestag, Wolfgang Schäuble, interrompe-a: " A senhora deputada está a discriminar todas as mulheres que usam um lenço na cabeça. Por isso, chamo-a à ordem". Weidel apresentou uma objecção, que foi a votação e rejeitada pela maioria dos deputados.

  

14.6.2018
Um deputado da AfD usa o seu tempo de intervenção para fazer um minuto de silêncio em memória de uma jovem de 14 anos que fora encontrada dias antes sem vida, alegadamente assassinada por um refugiado.

A vice-presidente do Parlamento insiste para que o deputado fale sobre o tema do debate, e acaba por expulsá-lo do pódio, uma vez que não acata as suas ordens. Na semana seguinte, ao dar início aos trabalhos do plenário, o presidente da Assembleia fez algumas declarações sobre o assunto e admoestou a facção da AfD. Queixou-se de que o grupo parlamentar do AfD tinha publicado um vídeo da cena numa rede social, pouco depois do incidente, criticando a vice-presidente do Parlamento. Consequentemente, a deputada foi difamada, insultada e ameaçada em inúmeros comentários, e-mails e telefonemas - de tal forma que se pesou a necessidade de lhe dar protecção policial.

Afirmou que não é permitido "criar uma espécie de minuto de silêncio por meio de um silêncio demonstrativo", que o tempo de uso da palavra de um deputado está limitado a intervenções, e que o Presidente do Bundestag é o único que decide sobre os minutos de silêncio e as cerimónias de homenagem no Parlamento. A "encenação" do AfD não só resultou em violações dos direitos de personalidade, como também afectou o Bundestag enquanto órgão constitucional: "A mera aparência de instrumentalização das vítimas de crimes não é compatível com a dignidade do Parlamento Federal". Continuou, dizendo que as disputas no parlamento devem seguir regras, e que o que acontece no Bundestag tem consequências para o debate público: "Pode ser o modelo para um debate civilizado. Mas também pode ser uma causa para o ódio e a agitação, para o embrutecimento e até para as piores formas de violência. (...) Faz parte da nossa responsabilidade aprender com a experiência da nossa história a facilidade com que disputas irresponsáveis podem levar ao ódio e a uma escalada de violência. (...) Temos de manter a moderação para não envenenar o nosso clima político e social."

 

5.9.2023
Artigo no jornal Welt:

Na abertura da sessão parlamentar, a presidente do Bundestag, Bärbel Bas (SPD), apelou aos deputados para que se tratem com respeito. O número de medidas disciplinares aplicadas está "muito acima do nível" das legislaturas anteriores. (...) Criticou a forma como os deputados se comportam em plenário e apelou a que dêem o exemplo. "Caros colegas, todos sabemos que o discurso e a resposta são determinantes para um debate argumentativo e pacífico. Quem se serve do discurso para emitir provocações, generalizações e banalidades, quem insulta e agride, fica à margem do discurso argumentativo." Muitas sondagens mostram que a confiança nas instituições políticas está a diminuir. Por isso, apelou aos membros do Bundestag para que levem a sério a sua responsabilidade de dar o exemplo.

  

6.9.2023

Um deputado da AfD comparou de forma indirecta Angela Merkel a Hitler

 

Disse ele: "Exceptuando um 'cabo da Boémia', nenhum político trouxe tanta desgraça à Alemanha como esta ex-chanceler." A vice-presidente do Parlamento Federal repreendeu-o nestes termos: "No Bundestag, pode exprimir-se qualquer opinião, mas o que não se pode fazer é insultos pessoais. E o que também não é aceitável é equiparar as pessoas que trabalham na política deste país àquelas que ocuparam o poder durante o nacional-socialismo. (...) Não é apropriado para o Parlamento. E não vamos tolerar isso nesta Assembleia."


21.1.2024
Artigo no jornal SZ (não directamente sobre discurso racista ou xenófobo no Parlamento, mas sobre o modo de debater e exprimir discordância)

O ambiente no país está a ficar mais irritável - e os debates no Bundestag estão cada vez mais agitados. Por isso, o número de vezes que os deputados foram chamados à ordem aumentou consideravelmente. Só no ano passado, a presidência do Parlamento recorreu a este instrumento 51 vezes para penalizar deslizes verbais e outros comportamentos incorrectos. Este número foi superior ao registado em toda a legislatura anterior, de 2017 a 2021, na qual, de acordo com um resumo do Bundestag alemão, foram emitidas 49 chamadas à ordem. Daquelas 51, 30 foram para a AfD. Dois deputados (Beatrix von Storch, da AfD, e Michael Schrodi, do SPD) chegaram a ser penalizados com uma coima de 1000 Euros cada um. As estatísticas sobre as medidas disciplinares impostas em cada legislatura por violação das normas ou da dignidade do Parlamento mostram claramente que o ambiente se tornou muito mais áspero com a entrada da AfD, nas eleições de 2017. Em toda a 18ª legislatura (2013 a 2017), apenas tinham sido emitidas duas chamadas à ordem, e apenas uma na 17ª legislatura.


28.2.2024
Artigo sobre o modo como a AfD sabe usar as redes sociais e, inclusivamente, delineia os discursos no Parlamento para terem o maior impacto possível em plataformas como o Tiktok:

"Ao contrário de outros partidos, a AfD utiliza sistematicamente o Tiktok; os políticos da AfD são treinados para fazer discursos adequados a esta plataforma, com palavras no local certo para suscitar indignação e frases curtas e nítidas (mensagem central ou punch line)."

 

21.4.2024 
O Parlamento bávaro discute uma lei dos deputados nova, que pune de forma bem mais severa os comportamentos de desrespeito ao Parlamento

Os partidos CSU, Eleitores Livres, SPD e Verdes concordaram que, no futuro, os deputados poderão ser multados até 4000 euros se tiverem um comportamento inadequado no Parlamento - no hemiciclo, mas também noutras ocasiões, possivelmente de carácter social. Poderão também ser excluídos dos debates durante semanas. "Precisamos desta lei com muita urgência", disse o deputado que apresentou a proposta.


17.5.2024
Entrevista a Yvonne Magwas, vice-presidente do Bundestag, no jornal "Das Parlament"


Excertos:


A propósito do ataque ao deputado do SPD Matthias Ecke, que no princípio de Maio de 2024 foi barbaramente atacado em Dresden quando andava a colar cartazes, e teve de ser operado porque tinha vários ossos da face partidos (*), a vice-presidente do Parlamento Federal alemão diz: "É assustador que seja necessária uma tomada de posição condenando a violência física durante as campanhas eleitorais. O que está a correr mal? Até certo ponto, também podemos ver no Bundestag alemão que o clima do debate mudou. Endureceu. As chamadas à ordem são vistas pelos deputados da AfD como troféus. A difamação é usada para desafiar os limites do que pode ser dito. O que tem muito a ver com o facto de a AfD fazer isto em grande escala e de, com demasiada frequência, outros se juntarem a ela. O que leva a um clima exaltado no debate. E, infelizmente, as palavras são seguidas de actos."

Sobre o endurecimento na cultura de debate no Parlamento, cuja responsabilidade é atribuída ao grupo parlamentar da AfD: "As medidas disciplinares do regulamento do Parlamento ainda têm um certo efeito. No entanto, também nos apercebemos de que é necessário tornar este regulamento mais rigoroso. Penso, por exemplo, que temos de trabalhar muito mais com o instrumento das coimas em vez das repreensões. A alteração está atualmente em curso. Os partidos da coligação e da oposição democrática estão a dialogar sobre o assunto e nós, enquanto Comissão Executiva, apresentámos propostas. As conversações chegaram agora a uma fase muito concreta."


(*) Matthias Ecke na Spiegel, após o ataque de que foi vítima: "A AfD envenenou o clima social nos últimos anos. Estamos perante uma desinibição planeada e um embrutecimento organizado, que são acções deliberadas da AfD, em conjunto com outras estruturas de extrema-direita."

3 comentários:

Albino Manuel disse...

Eu também leio o que por aí se diz e escreve. Multas também. Schäuble multou um deputado da AfD em 1000 euros, se não me engano.

Mas também sei que o que não falta por aí é censura. É só ler o que escrevem sobre a Rússia e Israel. Mas não só: repressão é à esquina. Quantas manifs foram proibidas? Quantas detenções?

Enfim, democracia à alemã, bem condicionada pois nunca se tem a certeza de que um ex-alcoólico não volta à pipa.

Albino Manuel disse...

E já agora: também mudam as regras se for necessário. Não era costume que no início de cada legislatura a presidência coubesse ao deputado mais velho? E que mudaram a regra e passou a ser o mais antigo (Schäuble) porque o mais velho era da AfD e admirador de Mussolini?

Vá mas é rezando para não apanhar com o professor primário ou coisa parecida da Turíngia.

Helena Araújo disse...

Vamos lá por partes:

1. Petr Bystron, que por acaso é o segundo da lista da AfD para o Parlamento Europeu, e sob o qual recaem sérias suspeitas de ter ligações fortes à Rússia, de aceitar subornos e de fazer lavagem de dinheiro, há tempos, quando ainda só começava a testar os limites do sistema, por duas vezes fotografou o seu voto e publicou-o nas redes sociais. Da primeira vez foi avisado que estava a ferir o princípio do voto secreto, da segunda vez foi punido com a multa prevista para casos desses. E da próxima vez são 2.000 euros. Mas provavelmente não há próxima, porque pode ser que vá preso antes da próxima votação secreta. Qual é o problema?

2. Pode dar-me exemplos concretos de casos de censura em relação à Rússia? E a Israel?

3. Quanto à "repressão em cada esquina": pode dar-me alguns exemplos concretos de manifs que foram proibidas e dos motivos apresentados para as proibir, e de pessoas que foram injustamente detidas?

4. Qual é o problema de mudar democraticamente regras, leis e até tradições, se isso servir para proteger o sistema democrático?

5. Isso de "apanhar com o professor primário ou coisa parecida da Turíngia" soa muito a desejo seu. Se não é adepto da AfD, olhe que parece.