Para memória posterior, aqui fica registado que aconteceu no Parlamento
português, em 17.5.2024:
Pergunta da deputada Alexandra Leitão: "Se uma
determinada bancada disser que uma determinada raça, ou uma determinada etnia,
é mais burra, mais preguiçosa ou menos digna - também pode?"
Resposta de Aguiar-Branco, Presidente da Assembleia da República: "No meu
entender, pode." A seguir, justifica: "A liberdade de expressão está
constitucionalmente consagrada. A avaliação do discurso político que seja feita
aqui nesta casa será feita pelo povo, em eleições." E insiste: "Não
serei eu nunca a cercear a liberdade de expressão de um senhor deputado."
=====
Passei pelas redes sociais, encontrei o circo
instalado. De um lado, o gozo e os aplausos por parte dos adeptos do
"quanto pior, melhor". No outro extremo, este desabafo dos
professores tocou-me especialmente: "se o presidente da Assembleia da
República diz que o discurso racista está protegido pela liberdade de
expressão, retira aos professores a autoridade para impedir comportamentos ou
discursos racistas na sala de aula, e está a torpedear o cumprimento de um
dever da escola, que é a construção de uma sociedade democrática e coesa,
assente no respeito pelos direitos garantidos pela Constituição."
Em vez de repetir neste blogue o que por aí se diz e lê em português, traduzo alguns textos da comunicação social alemã, apenas com o intuito de informar sobre como se fala sobre estas questões na Alemanha (lembram-se? É o país onde Hitler chegou ao poder por via democrática – e “gato escaldado”...)
Não sou especialista destes temas. Limitei-me a fazer uma pesquisa sumária com
o auxílio do google, e a traduzir algumas das primeiras páginas que me
apresentou. Aqui, por ordem cronológica:
17.5.2018
Excertos de um artigo sobre as ofensas às normas e à
dignidade do Parlamento Federal alemão (Bundestag), alguns meses
depois de nele existir uma facção da AfD:
Quem preside a uma sessão parlamentar tem à sua
disposição várias possibilidades para manter o respeito pela ordem e pela
dignidade do Parlamento. Entre elas: repreensão, chamada à ordem, expulsão da
sala (pode ir até 30 dias).
Na primeira legislatura (1949 a 1953) e na décima
(1983 a 1987) foi preciso recorrer inúmeras vezes a esses instrumentos. A
décima legislatura coincidiu com a entrada no Parlamento de um jovem partido:
os Verdes. Famosa ficou a sessão em que Joschka Fischer disse ao presidente:
"Com todo o respeito, o senhor é um cabrão". Foi expulso da sessão, e
no dia seguinte pediu desculpa. As legislaturas seguintes tornaram-se muito
calmas no que diz respeito ao tom do debate parlamentar. Com a entrada da AfD,
no Outono de 2017, recomeçou a necessidade de velar para manter a ordem e o
nível nas sessões parlamentares. Várias vezes os deputados da AfD foram
interrompidos pelo presidente da sessão por se expressarem de forma
"inapropriada para o Parlamento", ou "em moldes que não são
habituais entre nós". Em Maio de 2018, a líder do grupo parlamentar da
AfD, Alice Weidel, afirma no seu discurso: "Burkas, raparigas de lenço na
cabeça, assassinos de faca a viver de subsídios e outra gente sem préstimo não
vão garantir a nossa prosperidade, o crescimento económico e, acima de tudo, o
Estado social". O presidente do Bundestag, Wolfgang Schäuble,
interrompe-a: " A senhora deputada está a discriminar todas as mulheres
que usam um lenço na cabeça. Por isso, chamo-a à ordem". Weidel apresentou
uma objecção, que foi a votação e rejeitada pela maioria dos deputados.
14.6.2018
Um deputado da AfD usa o seu tempo
de intervenção para fazer um minuto de silêncio em memória de uma jovem de 14
anos que fora encontrada dias antes sem vida, alegadamente assassinada por um
refugiado.
A vice-presidente do Parlamento insiste para que o
deputado fale sobre o tema do debate, e acaba por expulsá-lo do pódio, uma vez
que não acata as suas ordens. Na semana seguinte, ao dar início aos trabalhos
do plenário, o presidente da Assembleia fez algumas declarações sobre o assunto
e admoestou a facção da AfD. Queixou-se de que o grupo parlamentar do AfD tinha
publicado um vídeo da cena numa rede social, pouco depois do incidente,
criticando a vice-presidente do Parlamento. Consequentemente, a deputada foi
difamada, insultada e ameaçada em inúmeros comentários, e-mails e telefonemas -
de tal forma que se pesou a necessidade de lhe dar protecção policial.
Afirmou que não é permitido "criar uma espécie de minuto de silêncio por meio de um silêncio demonstrativo", que o tempo de uso da palavra de um deputado está limitado a intervenções, e que o Presidente do Bundestag é o único que decide sobre os minutos de silêncio e as cerimónias de homenagem no Parlamento. A "encenação" do AfD não só resultou em violações dos direitos de personalidade, como também afectou o Bundestag enquanto órgão constitucional: "A mera aparência de instrumentalização das vítimas de crimes não é compatível com a dignidade do Parlamento Federal". Continuou, dizendo que as disputas no parlamento devem seguir regras, e que o que acontece no Bundestag tem consequências para o debate público: "Pode ser o modelo para um debate civilizado. Mas também pode ser uma causa para o ódio e a agitação, para o embrutecimento e até para as piores formas de violência. (...) Faz parte da nossa responsabilidade aprender com a experiência da nossa história a facilidade com que disputas irresponsáveis podem levar ao ódio e a uma escalada de violência. (...) Temos de manter a moderação para não envenenar o nosso clima político e social."
5.9.2023
Artigo no jornal Welt:
Na abertura da sessão parlamentar, a presidente do
Bundestag, Bärbel Bas (SPD), apelou aos deputados para que se tratem com
respeito. O número de medidas disciplinares aplicadas está "muito acima do
nível" das legislaturas anteriores. (...) Criticou a forma como os
deputados se comportam em plenário e apelou a que dêem o exemplo. "Caros
colegas, todos sabemos que o discurso e a resposta são determinantes para um
debate argumentativo e pacífico. Quem se serve do discurso para emitir
provocações, generalizações e banalidades, quem insulta e agride, fica à margem
do discurso argumentativo." Muitas sondagens mostram que a confiança nas
instituições políticas está a diminuir. Por isso, apelou aos membros do
Bundestag para que levem a sério a sua responsabilidade de dar o exemplo.
Um deputado da AfD comparou de forma
indirecta Angela Merkel a Hitler
Disse ele: "Exceptuando um 'cabo da Boémia',
nenhum político trouxe tanta desgraça à Alemanha como esta ex-chanceler."
A vice-presidente do Parlamento Federal repreendeu-o nestes termos: "No
Bundestag, pode exprimir-se qualquer opinião, mas o que não se pode fazer é insultos
pessoais. E o que também não é aceitável é equiparar as pessoas que trabalham
na política deste país àquelas que ocuparam o poder durante o
nacional-socialismo. (...) Não é apropriado para o Parlamento. E não vamos
tolerar isso nesta Assembleia."
21.1.2024
Artigo no jornal SZ (não
directamente sobre discurso racista ou xenófobo no Parlamento, mas sobre o modo
de debater e exprimir discordância)
O ambiente no país está a ficar mais irritável - e os debates no Bundestag
estão cada vez mais agitados. Por isso, o número de vezes que os deputados
foram chamados à ordem aumentou consideravelmente. Só no ano passado, a
presidência do Parlamento recorreu a este instrumento 51 vezes para penalizar
deslizes verbais e outros comportamentos incorrectos. Este número foi superior
ao registado em toda a legislatura anterior, de 2017 a 2021, na qual, de acordo
com um resumo do Bundestag alemão, foram emitidas 49 chamadas à ordem. Daquelas
51, 30 foram para a AfD. Dois deputados (Beatrix von Storch, da AfD, e Michael
Schrodi, do SPD) chegaram a ser penalizados com uma coima de 1000 Euros cada
um. As estatísticas sobre as medidas disciplinares impostas em cada legislatura
por violação das normas ou da dignidade do Parlamento mostram claramente que o
ambiente se tornou muito mais áspero com a entrada da AfD, nas eleições de 2017.
Em toda a 18ª legislatura (2013 a 2017), apenas tinham sido emitidas duas
chamadas à ordem, e apenas uma na 17ª legislatura.
28.2.2024
Artigo sobre o modo como a AfD sabe
usar as redes sociais e, inclusivamente, delineia os discursos no Parlamento
para terem o maior impacto possível em plataformas como o Tiktok:
"Ao contrário de outros partidos, a AfD utiliza sistematicamente o Tiktok;
os políticos da AfD são treinados para fazer discursos adequados a esta
plataforma, com palavras no local certo para suscitar indignação e frases
curtas e nítidas (mensagem central ou punch line)."
21.4.2024
O Parlamento bávaro discute uma lei
dos deputados nova, que pune de forma bem mais severa os comportamentos de
desrespeito ao Parlamento
Os partidos CSU, Eleitores Livres, SPD e Verdes
concordaram que, no futuro, os deputados poderão ser multados até 4000 euros se
tiverem um comportamento inadequado no Parlamento - no hemiciclo, mas também
noutras ocasiões, possivelmente de carácter social. Poderão também ser
excluídos dos debates durante semanas. "Precisamos desta lei com muita
urgência", disse o deputado que apresentou a proposta.
17.5.2024
Entrevista a Yvonne Magwas, vice-presidente do Bundestag, no jornal "Das
Parlament"
Excertos:
A propósito do ataque ao deputado do SPD Matthias Ecke, que no princípio de
Maio de 2024 foi barbaramente atacado em Dresden quando andava a colar
cartazes, e teve de ser operado porque tinha vários ossos da face partidos (*),
a vice-presidente do Parlamento Federal alemão diz: "É assustador que seja
necessária uma tomada de posição condenando a violência física durante as
campanhas eleitorais. O que está a correr mal? Até certo ponto, também podemos
ver no Bundestag alemão que o clima do debate mudou. Endureceu. As chamadas à
ordem são vistas pelos deputados da AfD como troféus. A difamação é usada para
desafiar os limites do que pode ser dito. O que tem muito a ver com o facto de
a AfD fazer isto em grande escala e de, com demasiada frequência, outros se
juntarem a ela. O que leva a um clima exaltado no debate. E, infelizmente, as
palavras são seguidas de actos."
Sobre o endurecimento na cultura de debate no Parlamento, cuja responsabilidade
é atribuída ao grupo parlamentar da AfD: "As medidas disciplinares do
regulamento do Parlamento ainda têm um certo efeito. No entanto, também nos
apercebemos de que é necessário tornar este regulamento mais rigoroso. Penso,
por exemplo, que temos de trabalhar muito mais com o instrumento das coimas em
vez das repreensões. A alteração está atualmente em curso. Os partidos da
coligação e da oposição democrática estão a dialogar sobre o assunto e nós,
enquanto Comissão Executiva, apresentámos propostas. As conversações chegaram
agora a uma fase muito concreta."
(*) Matthias Ecke na Spiegel,
após o ataque de que foi vítima: "A AfD
envenenou o clima social nos últimos anos. Estamos perante uma desinibição
planeada e um embrutecimento organizado, que são acções deliberadas da AfD, em
conjunto com outras estruturas de extrema-direita."
Eu também leio o que por aí se diz e escreve. Multas também. Schäuble multou um deputado da AfD em 1000 euros, se não me engano.
ResponderEliminarMas também sei que o que não falta por aí é censura. É só ler o que escrevem sobre a Rússia e Israel. Mas não só: repressão é à esquina. Quantas manifs foram proibidas? Quantas detenções?
Enfim, democracia à alemã, bem condicionada pois nunca se tem a certeza de que um ex-alcoólico não volta à pipa.
E já agora: também mudam as regras se for necessário. Não era costume que no início de cada legislatura a presidência coubesse ao deputado mais velho? E que mudaram a regra e passou a ser o mais antigo (Schäuble) porque o mais velho era da AfD e admirador de Mussolini?
ResponderEliminarVá mas é rezando para não apanhar com o professor primário ou coisa parecida da Turíngia.
Vamos lá por partes:
ResponderEliminar1. Petr Bystron, que por acaso é o segundo da lista da AfD para o Parlamento Europeu, e sob o qual recaem sérias suspeitas de ter ligações fortes à Rússia, de aceitar subornos e de fazer lavagem de dinheiro, há tempos, quando ainda só começava a testar os limites do sistema, por duas vezes fotografou o seu voto e publicou-o nas redes sociais. Da primeira vez foi avisado que estava a ferir o princípio do voto secreto, da segunda vez foi punido com a multa prevista para casos desses. E da próxima vez são 2.000 euros. Mas provavelmente não há próxima, porque pode ser que vá preso antes da próxima votação secreta. Qual é o problema?
2. Pode dar-me exemplos concretos de casos de censura em relação à Rússia? E a Israel?
3. Quanto à "repressão em cada esquina": pode dar-me alguns exemplos concretos de manifs que foram proibidas e dos motivos apresentados para as proibir, e de pessoas que foram injustamente detidas?
4. Qual é o problema de mudar democraticamente regras, leis e até tradições, se isso servir para proteger o sistema democrático?
5. Isso de "apanhar com o professor primário ou coisa parecida da Turíngia" soa muito a desejo seu. Se não é adepto da AfD, olhe que parece.