Ando há que tempos para contar esta história, e vai ser hoje: era uma vez um rapazinho turco, chamado Uğur, que é um nome que nem sei pronunciar. Aos quatro anos, Uğur veio com a mãe para a Alemanha, para se juntarem ao pai que trabalhava numa fábrica da Ford em Colónia.
O miúdo gostava muito de futebol, e também lia com gosto os livros de divulgação científica que ia levando da biblioteca da igreja (não sei se ele era cristão, ou se aquela comunidade cristã decidiu dar espaço também aos filhos dos muçulmanos). Quando estava a chegar ao fim da escola primária, os professores decidiram que o lugar de um filho de turcos era no lugar habitual para os filhos dos turcos: uma escola da via profissionalizante. Portanto, a escola primária negou-lhe a recomendação para frequentar um liceu (ou seja: o ramo de ensino intelectualmente mais exigente, que dá acesso à universidade). Um vizinho da família, um alemão, soube do caso e foi à escola protestar. Graças a essa intervenção, a escola cedeu, e Uğur conseguiu matricular-se num liceu: foi o primeiro aluno dessa escola que vinha de uma família de imigrantes turcos. Escolheu matemática e química, e terminou o liceu com o título de melhor aluno do seu ano.
O resto, já todos sabemos: estudou, fez o doutoramento, e criou com a sua mulher, também de origem turca, uma pequena empresa de investigação na área de imunologia. No início de 2020, Uğur Şahin foi uma das primeiras pessoas a dar-se conta de que estávamos no início de uma pandemia global e mortal. Em 25 de janeiro de 2020, quando ainda havia menos de 1000 casos confirmados em todo o mundo, o casal decidiu produzir uma vacina contra a doença. No dia 26 de janeiro, um domingo, Uğur Şahin identificou as primeiras oito candidatas a vacinas, e esboçou os planos técnicos de construção das mesmas.
Onze meses mais tarde, começava o processo global de vacinação.
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Pergunto: se os professores daquela escola primária alemã tivessem ido em frente com a sua decisão baseada no preconceito generalizado em relação aos turcos, e se não tivesse havido um vizinho a tomar uma posição frontal contra esse preconceito, quantas pessoas teriam morrido de covid no início de 2021 por não haver ainda uma vacina? Sim, bem sei que também foram criadas outras vacinas. Estamos a falar de uma diferença de poucas semanas, e contudo: quantas pessoas não morreram devido a essas semanas de diferença?
Falo em morte, e também posso falar em empobrecimento: graças à vacina destes investigadores filhos de imigrantes turcos, a balança de pagamentos da Alemanha aguentou-se lindamente nos tempos de recessão económica provocada pela pandemia. E a cidade onde a empresa paga os seus impostos já não sabe o que fazer a tanto dinheiro. Da próxima vez que alguém se lembrar de dizer sabe-se lá o quê sobre os turcos, lembrem-se desta história. Porque as palavras que reforçam preconceitos e se multiplicam na sociedade como algo aceitável (e, fazendo agora a ligação para a actualidade, como algo perfeitamente legítimo ao abrigo da liberdade de expressão) podem ter consequências muito graves para a própria sociedade que convive pacatamente com esses preconceitos.
4 comentários:
Aqui dou-lhe razão. Sabia do caminho extraordinário feito por este homem. Tem mais: quando penso na sobranceria com que eram olhados, eles e sobretudo as mães, aquelas mulheres turcas de gabardinas cinzentas e lenço, dá que pensar.
Curioso: pelo que tenho visto a maioria delas mandou às malvas a maldita da bata.
Aqui dou-lhe razão. Sabia do caminho extraordinário feito por este homem. Tem mais: quando penso na sobranceria com que eram olhados, eles e sobretudo as mães, aquelas mulheres turcas de gabardinas cinzentas e lenço, dá que pensar.
Curioso: pelo que tenho visto a maioria delas mandou às malvas a maldita da bata.
Conheço essa mesma história com uma família portuguesa . O miúdo era muito esperto e o pai optou por o enviar para a Portugal. Hoje é docente no Ensino Superior e investigador com responsabilidade
Quantas "mortes" o preconceito pode provocar!
Célia,
Conheço uma família portuguesa que emigrou para a Alemanha para poder pagar os estudos do mais velho, e regressou a Portugal porque percebeu que o mais novo não ia conseguir chegar à universidade se continuasse ali.
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