03 agosto 2019

incendiários

(foto: mural de facebook de Burkhard Jung)

Sabem aquela piada do homem que lançava os foguetes, fazia "pum!" e ia apanhar as canas?
É o jornal alemão Bild.

O caso mais recente: por motivos de simplificação logística e redução de custos, um infantário de Leipzig optou por não ter carne de porco na ementa semanal. Os infantários estatais costumam ter vários pratos diários à escolha, mas aquele infantário privado, que ao almoço tem um prato único para todas as crianças, optou pela solução mais simples: deixar a carne de porco de fora, para não ter de se preocupar com uma ementa alternativa para duas das crianças, que são de famílias muçulmanas. De qualquer modo, já só oferece carne em dois dias da semana - nos restantes, os miúdos comem pratos vegetarianos ou com peixe. Perante isto, que faz o jornali Bild? Agarra neste não-assunto e faz uma capa alarmista a incitar ao ódio contra os muçulmanos:
POR RESPEITO À "SALVAÇÃO DA ALMA"
Infantário proíbe todas as crianças de comer carne de porco

A versão online acrescentava ainda uma linha venenosa: "as gomas estão proibidas, com efeitos imediatos".

Note-se que este infantário é um dos muitos estabelecimentos alemães que tomaram essa decisão, sem que alguma vez tivesse havido protestos por parte dos pais ou da comunidade. Ninguém impede os miúdos de trazerem de casa o seu pãozinho com fiambre ou as suas gomas, e muito menos os impede de comerem em casa um belo lombo de porco assado. Mas depois desta capa do jornal Bild os políticos de extrema-direita agitaram quanto puderam ("proibir carne de porco nos infantários é capitular perante o Islão!" - Beatrix von Storch, AfD), as redes sociais foram ao rubro ("hoje é a carne de porco... / amanhã será a obrigação de cobrir a cabeça... / e depois de amanhã? / seremos obrigados a converter-nos ao Islão? a obedecer à sharia? a casar a nossa filha à força com um homem de 40 anos?") e o infantário viu-se alvo de inúmeras críticas e ameaças violentas. Naturalmente contactaram a polícia, e o Bild aproveitou para fazer nova capa, com a fotografia de um polícia a entrar no edifício:


Protecção policial para infantário sem carne de porco

Lançar os foguetes, fazer "pum" e ir apanhar as canas: pegar numa não-notícia para fazer uma capa incendiária, alimentar a falsa ideia de que os muçulmanos estão a invadir a Europa para destruir a cultura ocidental, instigar os ódios que dão força à extrema-direita e a seguir fazer outra capa a dar aos neonazis a sensação de que são poderosos e fazem tremer as instituições. Avisem o Putin que não precisa de se ocupar tanto a destruir as Democracias europeias - os nossos jornais já fazem o trabalhinho.

O socialista Burkhard Jung, presidente da Câmara de Leipzig, tomou uma posição muito clara sobre o assunto na sua página de facebook, que traduzo aqui rapidamente:

Não posso deixar de comentar os acontecimentos da semana passada.

O que se passou:
dois infantários de Leipzig decidiram alterar a ementa dos almoços das crianças. Não há nisso nada de anormal - muitos infantários e escolas mudam frequentemente o fornecedor de refeições. Há muitas razões para isso, e resultam antes de mais de decisões que os infantários tomam em conjunto com os pais, tendo em conta os interesses das crianças. Os motivos para que o infantário e os pais tomem uma decisão relativa à alimentação, seja a favor ou contra a carne de porco, a comida vegetariana ou até vegan, podem ser de vária ordem: culturais, fisiológico-alimentares, ou simplesmente porque os gostos são diferentes.

É irresponsável estilizar esta escolha de ementa de um infantário para o tornar num símbolo da destruição da nossa cultura, como pessoas da CDU, da AfD e de um modo geral de círculos conservadores fizeram nos últimos dias. Não, a decisão dos infantários de Leipzig não é uma derrota cultural, mas uma decisão livre num país livre. Quem não aceita isso, não aceita a liberdade e até a põe em risco.   

O que se seguiu é inacreditável:


"À forca, ou fuzilamento segundo a lei vigente" [texto na imagem acima]
"Senhora..., ou repõe imediatamente a carne de porco na ementa, até 30.7, ou o seu infantário vai arder, mesmo que isso prejudique as crianças. Não, isto não é uma piada. E mesmo que avise a polícia, o infantário vai arder. E vou-lhe dar uma tareia tamanha que a mando para o hospital e a deixo incapaz de voltar a trabalhar!!! Portanto: ou muda, ou fogo!"
"Não vou apenas espancá-la até precisar de ir para o hospital, vou matá-la com uma facada no coração." 

Trata-se de uma pequena selecção das ameaças que os infantários receberam, tanto por carta como em forma descaradamente verbal.

Estou sem palavras. Há três, quatro anos, quando tantas pessoas em terrível estado de necessidade buscaram a nossa ajuda, houve por toda a Alemanha ataques pessoais e alojamentos incendiados. Não fomos capazes de proteger todos os abrigos, e a nossa sociedade não foi agitada por um choque de indignação moral. Em vez disso, os Gaulands, Weidels e Höckes
[políticos da AfD] continuam a zurzir verbalmente os mais frágeis.

E as suas sementes estão a dar fruto: em 2019, há infantários que são ameaçados apenas por terem mudado a sua ementa semanal de uma forma que não se enquadra numa visão mesquinha do mundo.


A queda do Ocidente e o perigo para a nossa liberdade esclarecida não provêm daqueles que, por qualquer razão, têm uma cultura alimentar diferente da culinária tradicional alemã, mas daqueles que perderam todas as referências morais e o sentido de decência.

Não podemos ignorar, não podemos calar, não podemos ceder: no nosso país, a liberdade, a igualdade e a empatia estão em risco. O que aqui aconteceu e acontece é apenas uma amostra do que nos espera se nas próximas eleições o poder ficar nas mãos destes que já hoje preparam a terra com as suas sementes de ódio.

Permanecei vigilantes!



Dois meses após o assassinato de Walter Lübcke por um neonazi que não gostou de algo que esse político da CDU dissera sobre os valores da nossa sociedade e a obrigação moral de acolher os refugiados, esta tomada de posição parece-me um acto de enorme coragem.

Nos difíceis tempos que vivemos, há demasiados extremistas violentos predispostos a ameaçar qualquer político que defenda destemidamente os valores de uma sociedade pluralista e democrática.

Perante o clima de violência verbal e física contra políticos que hoje se vive na Alemanha, pergunto-me como é possível ainda alguém argumentar com o batido "não concordo com o que dizes, mas estaria disposto a dar a vida para que tu possas dizer o que pensas" - como se certos discursos não fossem o gatilho que accionam a violência latente e letal que já existe entre nós.

De facto, em 2019 aquele "dar a vida" pelos valores democráticos já não se formula no condicional.    
Burkhard Jung assume com frontalidade a defesa dos valores democráticos em que acredita, mesmo sabendo o risco que corre.

Pergunto aos que defendem a liberdade de expressão custe o que custar: querem mesmo - querem mesmo mesmo - dar a vida pela defesa da liberdade de expressão de quem já começou a matar aqueles com quem não concorda? Querem dar a vida pelo direito do jornal Bild torcer a realidade para fazer um discurso incendiário que dá origem a ameaças de destruição e morte num infantário?

O jogo já não é a feijões.


5 comentários:

Filipa disse...

Também ninguém impede as famílias muçulmanas de trazerem comida de casa quando o infantário servir porco.

Se os alunos só comem carne duas vezes por semana, não servir porco nesses dias é uma cedência que só serve para alimentar essas notícias.

A Alemanha não é um país muçulmano, não faz qualquer sentido impor restrições alimentares baseadas nessa religião.

As sementes do ódio não aparecem do nada e é ridículo fingir que essas medidas, q ficam muito bonitas na teoria, não causam desagrado.

E também não são medidas inclusivas. As famílias muçulmanas não passaram a comer porco por estarem na Alemanha.

Concordo que nem todos os discursos deverão ser permitidos nas redes sociais/órgãos de comunicação, já que acabam por legitimados. Mas o que mais fortalece esses discursos é a noção de que se tem de aceitar tudo o que é considerado medidas de inclusão ou ser considerado um fascista.

Os extremistas sabem explorar muito bem esse filão.

Helena Araújo disse...

Filipa, para estes infantários não é uma questão de inclusão, mas de redução de custos. Para mim, não é uma questão de inclusão, mas de boa educação.

E para si? Se fosse na sua casa e tivesse todos os dias da semana convidados muçulmanos para o almoço: porque faria questão de pôr carne de porco na mesa? Não lhe bastava comer a carne de porco ao jantar e aos fins de semana?
Se tivesse um diabético para almoçar: servia doce à sobremesa?
Se tivesse uma pessoa alérgica a glúten: punha esparguete na mesa?

O que é que custa àquelas crianças comerem hamburger, almôndegas ou esparguete bolonhesa em vez de febras de porco?

E o que é que ganham se comerem todas o mesmo prato? Ganham isto: aprender a ser delicados com os outros, aprender a encontrar pontos comuns, aprender a olhar para o que os une e não para o que os separa.

Em síntese, e já que estamos a falar de diferenças de religiões: aprendem o valor mais profundo da comunhão no amor de Cristo.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...



Estamos agora a seguir uma Série muito interessante, «O Círculo do Mal de Hitler», e temos aprendido muito sobre a História alemã desse período, que sempre me fascinou.

Mas continuo sem conseguir compreender bem como foi possível a um Partido com 2,5% de votos nas Eleições de 1928 ter arrebatado o Poder absoluto em 1933 num País como a Alemanha.

Claro que compreendo que o Desemprego era elevadíssimo, que a Miséria era aflitiva, que o sentimento de humilhação nacional dos Alemães era devastador, mas ainda assim, como foi possível uma Nação culta e desenvolvida, a sua intelectualidade, a sua elite e a Opinião Pública de um modo geral não se terem apercebido, ou apenas tarde demais, do que iria suceder à Alemanha?

Por que razão o Poder Judicial bávaro agraciou um ferrabrás arruaceiro, líder de um bando de desordeiros violentos, com uma libertação ao fim de cumprir cinco meses de uma pena de cinco anos (já de si muito branda, face à moldura penal vigente para a sedição)?

Como foi possível ao Presidente Hindenburg colocar a Chancelaria alemã nas mãos de um perigoso cadastrado?

Como foi possível este sentimento de "não te rales", num País com a importância, a alfabetização e a dimensão da Alemanha?

Por que será que apenas o pobre Elser teve a coragem de pôr a bomba salvífica na famosa Cervejaria de Munique, que só não pôs um ponto final na trágica epopeia hitleriana logo à nascença por um acaso incrivelmente improvável?

Talvez seja conveniente os Alemães (e não só, como é óbvio...) estarem bem vigilantes e não esquecerem nunca as terríveis lições deste Passado ainda bem recente...

Helena Araújo disse...

Os alemães estão alerta e bem vigilantes. O fascismo recomeçou a entrar na Europa por outros países... :(
Como foi possível? Clima político confuso, falta de entendimento entre os partidos para conseguirem criar uma frente de resistência a este fenómeno, manipulação da opinião pública (nessa altura os judeus, hoje os refugiados). E depois, o aproveitamento do incêndio do Reichstag para meter a oposição nos campos de concentração e para impor leis especiais que davam todo o poder aos nazis.

Marçal disse...


Sim, bem sei.

Tomáramos nós, Portugueses, ter um décimo do nível de conhecimento histórico e de vigilância activa quanto a este trágico passado que têm os ultra-vacinados Alemães, é bem verdade...