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14 setembro 2019

ainda temos a alegria



"O Brasil sob Bolsonaro" foi o tema de duas palestras a que assisti ontem no Instituto Cervantes, no âmbito do Festival Internacional de Literatura de Berlim.

[E para que ninguém me acuse de só avisar sobre estas coisas depois de elas acontecerem: hoje, às quatro da tarde na nova galeria na Ilha dos Museus, é a vez de José Eduardo Agualusa, Luiz Ruffato e Grada Kilomba falarem sobre os vestígios coloniais no ADN cultural e biológico.] 

Não tomei notas, pelo que faço um resumo de memória:

Na primeira sessão, Perry Anderson abordou o contexto brasileiro que tornou possível o fenómeno Bolsonaro (a crise económica, o aumento da corrupção dos políticos, a cínica perícia que conseguiu concentrar em Lula o ódio à corrupção que de facto grassa em todos os partidos, a falência do sistema jurídico, etc.). Luiz Ruffato trouxe números: em que grupos está a maioria dos apoiantes de Bolsonaro (são tantos, que mais vale dizer quais não são: a maioria dos negros, e a maioria dos jovens entre os 16 e os 24 anos), e o resultado dos primeiros oito meses de discurso fascista do sistema Bolsonaro: o aumento da violência (especialmente contra negros e contra mulheres), o aumento do número de assassinatos cometidos pela polícia e, mais assustador ainda, o aumento do número de suicídios entre os jovens e a assustadora quantidade de pessoas que querem fugir do seu próprio país. Djamila Ribeiro falou da incapacidade de reconhecer o genocídio contra negros que tem estado em curso, das lutas do feminismo negro e da urgência do agir.

A segunda sessão juntou Rafael Cardoso (historiador da arte, escritor - e anoto aqui o livro que quero ler: "O Remanescente"), Márcia Tiburi e Leonardo Tonus a conversar em modo de perguntas que lançavam uns aos outros.

Sabem aquela sensação de belo-horrível? Foi esta sessão: as frases e as ideias com que se referiam à ascensão do fascismo no Brasil eram simultaneamente um exercício brilhante de inteligência e um prazer estético. A conversa foi perccorrendo os temas da capacidade do fascismo se reinventar e regressar, da repetição de algo que há menos de meia dúzia de anos seria impensável imaginar, do modo como os cidadãos se vão habituando aos horrores noticiados dia após dia, do exílio e das formas de resistência. Falaram de Leibniz (o efeito corrosivo do medo e da tristeza) e de Adorno (a poesia depois de Auschwitz) e da dificuldade de ser quando se está marcado para o extermínio.

Uma intervenção tocou-me especialmente: a de Leonardo Tonus, sobre o que se pode fazer neste contexto de marasmo e caos. Continuando a citar de memória: disse que se pode aprender algo importante com os europeus, e deu o exemplo da reacção ao ataque ao Bataclan. O professor da Sorbonne, que dera consigo paralisado e chocado, a chorar desamparado no meio da cozinha, recebeu no domingo à noite uma mensagem da direcção da Universidade a exigir que todos os professores fossem dar as aulas no dia seguinte, como previsto. E ele foi. Às oito da manhã estava à frente da sua turma a falar de literatura do séc. XVIII, apesar de cinco dos seus alunos terem sido assassinados três dias antes. 

"Ainda temos a alegria", disse ele. "A questão não é sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz. Havia poesia em Auschwitz! Mesmo que pareça uma ideia tonta, o céu continua azul e os pássaros continuam a chilrear. Não podemos desistir. Nestes tempos tão difíceis continuarei a escrever, nem que tenha de o fazer com o meu próprio sangue. E vocês também: escrevam nas paredes da vossa casa o poema "mãos dadas", de Carlos Drummond de Andrade. Espalhem a alegria."


MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes
A vida presente

Carlos Drummond de Andrade


2 comentários:

  1. O seu relato me encontra com as mesmas esperanças de que é preciso continuar e resistir, sobretudo, construir outras trilhas, estratégias para ocupar espaços de visibilidade, a fim de alcançar a sensibilidade, talvez esta seja mais fecunda que a inteligência, haja visto que há tanta circulação de informação, há tanto desvelar dos absurdos cotidianos, mesmo assim, as pessoas seguem imunes ao outro. Quero encontrar caminhos, por ora, meus calçados me levam pelos caminhos da literatura, incentivando, divulgando, buscando aflorar algo em desuso em nossos dias: a poesia do existir. Obrigada!

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  2. "a fim de alcançar a sensibilidade" - sim, deve ser esse o melhor farol para a nossa rota. Obrigada! :)

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