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09 julho 2019

"Fátima Bonifácio e o soufflé"

A melhor reacção que li até agora ao texto racista da Fátima Bonifácio no Público é este texto do Hugo van der Ding.

(Se vocês tivessem de ir para uma ilha deserta e só pudessem levar um humorista, qual dos outros levavam?) (O Hugo van der Ding não podiam levar, que já está reservadinho.)


Leiam tudo. Deixo aqui apenas duas pequenas ideias:

"Não conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que me ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu escrever aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o texto está ótimo!"
(...)
"É curioso que a académica Maria de Fátima se queixe depois das portas escancaradas das Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria do acesso irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a própria Maria de Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a única coisa sua que li até hoje — como uma analfabeta."


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ADENDA - agora que já passaram alguns dias, transcrevo o texto completo:

Cara Maria de Fátima,
Permita-me que a trate assim, que estou sem pachorra para ir ao Google procurar o seu grau académico, que, li não sei onde, é de licenciada para cima. Pois que já deve adivinhar o que me traz aqui: o seu artigo de opinião «Podemos? Não, não podemos», publicado no jornal Público, que li, eu e o resto do país. E resolvi então escrever-lhe uma carta aberta, para juntar às muitas outras que lhe têm escrito por estes dias a propósito do mesmo tema. Olhe, sempre é mais uma para pôr em cima da lareira ou do piano no Natal, que, com esse feitio não deve receber muitos postais de Boas Festas. Digo eu.
Por ignorância minha ou por não frequentarmos os mesmo círculos (nunca a vi, por exemplo, num after, ou, pelo menos, não tenho ideia disso), confesso que nunca tinha ouvido falar da Maria de Fátima. Mas soube agora, a propósito do frisson que causou o seu artigo, que ando a perder bastante, pois garantem-me que a Maria de Fátima é uma respeitadíssima e publicadíssima académica. Faz muito bem, que o saber não ocupa lugar. E, como diz o povo, um burro carregado de livros é um doutor. O povo é mesmo torto, credo.
Não conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que me ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu escrever aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o texto está ótimo!
Mas quero acreditar que a pessoa cuja crónica saiu no Público foi a Maria-de-Fátima-Calhandreira. É que a Maria-de-Fátima-Académica não faria generalizações como «os ciganos», «os africanos», e muito menos usaria como amostragem académica uma conversa que teve no elevador com a mulher-a-dias da sua vizinha de cima.
Dirijo-me, portanto, à Maria-de-Fátima-Calhandreira, com um intuito pedagógico. Não vou comentar a sua posição em relação ao sistema de quotas que tanto a incomoda. Discuti-la-ia com gosto com a Maria-de-Fátima-Académica, se ela assim quisesse. Mas, como já vimos, não é dela a prosa do artigo.
Abeiro-me assim da janela de onde a Maria-de-Fátima-Calhandreira, de óculos na ponta do nariz, casaco de malha coçado, e naperon de crochet crescendo numas agulhas, tece as suas considerações para quem a quiser ouvir.
Vou saltar por cima dos clichés estafados sobre os ciganos, que já não há pachorra para essa conversa, de tão pouco original. E qualquer taxista expõe melhor os seus argumentos do que a Maria de Fátima. Mas, Maria de Fátima, os africanos? A Maria de Fátima escreveu mesmo «os africanos»?
O que me parece faltar à Maria-de-Fátima-Calhandreira, como sói acontecer às calhandreiras, é mundo. É viajar, é ler, é ir ao cinema, que são três boas soluções para a falta de mundo. Uma mais cara, outra média e outra barata, para não haver desculpas.
África, Maria de Fátima, é um continente. Que vai do deserto à selva, da savana às montanhas. Tem o norte e tem o sul, tem o interior e o litoral, tem a costa atlântica e a costa oriental. E cada uma destas partes tem tanto a ver com as outras como têm a ver o olho do rabo com a Feira de Montemor, como também diz o povo.
África tem 30 milhões de quilómetros quadrados, 20% do total da área terreste. Tem 54 países. Tem cerca de 2000 línguas, com 140 delas faladas por vários milhões de pessoas. E, por falar em milhões de pessoas, sabia, Maria de Fátima, que «os africanos» são (números de 2018) 1.287.920.518 de pessoas? Vou dizer por extenso, pois creio ter lido que a Maria de Fátima é de Letras: mil duzentos e oitenta e sete milhões novecentas e vinte mil quinhentas e dezoito pessoas. Ou seja, há mais 1.287.920.517 de africanos, para além da mulher-a-dias da sua vizinha de cima, que a Maria de Fátima usou para resumir «os africanos». Já agora, estima-se que haja em África 380 milhões de cristãos, ao contrário do que a Maria de Fátima parece pensar, quando escreve que os africanos não «fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade». É bom de ver que a Maria de Fátima nunca leu, nem sequer nas revistas das Selecções do Reader’s Digest, na privacidade da sua casa de banho, que algumas das comunidades cristãs mais antigas do mundo (dos séculos I e II) são em África.
Mesmo dando de barato que a Maria de Fátima se referia à África que fala português, ficamos com cinco países, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, que ficam geograficamente em regiões tão distintas culturalmente como o noroeste, o sul, o oriente ou o meio do mar. E são cerca de 52.000.000 de pessoas. Cinquenta e dois milhões de pessoas.
Penso que foi a ignorância destes números que fez com que generalizasse que todos os africanos (e afrodescendentes) se «autoexcluem, possivelmente de modo menos agressivo [que os ciganos], da comunidade nacional»,  que «odeiam ciganos», que «constituem etnias irreconciliáveis», que «são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios», que «detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou "nacionalidades" rivais». E é aqui que usa o seu vasto conhecimento dos africanos, através do exemplo da mulher-a-dias da sua vizinha de cima, que, conta a Maria de Fátima, lhe disse: «Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana». Desta história que a Maria de Fátima parece usar como exemplo académico, fica uma dúvida: a Maria de Fátima chamou preta à mulher-a-dias da sua vizinha de cima? É que, pun not intended, fica pouco claro.
Mais à frente no seu texto, e a propósito da criação de um observatório do racismo e da discriminação, escreve a Maria de Fátima: «Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés». Isto escrito pela mulher que, umas linhas antes, usa o exemplo da mulher-a-dias da vizinha de cima para concluir que todos os africanos são racistas. Ai, Maria de Fátima, Maria de Fátima...
África e os africanos têm bastantes problemas, sabemos todos, e um deles, que não é de somenos, são os brancos como a Maria de Fátima que, por ignorância, mas também por maldade, usam o seu estatuto «académico» para despejar o seu ódio racista. Um discurso racista disfarçado por vezes de humanitário, trazendo para a conversa temas de facto sérios e graves como a excisão feminina, oferecendo, como contributo, a exclusão.
É curioso que a académica Maria de Fátima se queixe depois das portas escancaradas das Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria do acesso irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a própria Maria de Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a única coisa sua que li até hoje — como uma analfabeta.
A propósito do por vezes complicado choque de culturas, lembrei-me de uma história de Kofi Annan — pedindo-lhe desde já, Maria de Fátima, desculpa por usar o exemplo de um africano cuja craveira intelectual faz de si, Maria de Fátima, por comparação, uma analfabeta, cuja imensa pinta e classe fazem de si, Maria de Fátima, por comparação, uma frequentadora de supermercados baratos, e cujo prestígio internacional faz de si, Maria de Fátima, por comparação, tenho de dizer-lhe, a mulher-a-dias da sua vizinha de cima.
Kofi Annan casou, como sua segunda mulher, com uma condessa sueca. Vinda de um país, nas palavras da própria, onde «quando combinamos um jantar para as oito da noite, chegamos às sete e meia e ficamos a dar voltas de carro pelo bairro até chegar a hora marcada de bater à porta». Para o primeiro jantar que deu aos seus novos parentes africanos, fez a condessa um soufflé. Ora os seus novos parentes não chegaram às oito, nem chegaram às nove, chegaram às dez da noite. Já há muito que tinha ido o soufflé (que, penso que sabe, é um prato que tem de ser servido assim que sai do forno) para o caraças. A condessa ficou pior que estragada, claro. Depois de os parentes se irem embora, Annan, sempre um diplomata, lá acalmou a condessa. E acabaram por concordar que, no futuro, os parentes chegariam atrasados só uma hora e não duas, e que a condessa não voltaria a fazer soufflé.
São duas maneiras de encarar o «outro»: tratá-lo genericamente como um bárbaro selvagem, ou abdicar, de vez em quando, de um soufflé.
E esta escolha dirá sempre mais sobre «nós» do que sobre o «outro».



2 comentários:

  1. Muito bom, sem dúvida nenhuma. Obrigado.

    Quanto à Maria de Fátima calhandreira, para além de analfabeta, básica, descarada e a roçar o ordinarote, tem um evidente problema de esquizofrenia cronológica: vive nos dias de hoje com o saber do comum dos mortais do Séc. XV, já para não dizer da Idade das Trevas.

    Assim sendo, a melhor coisa que poderia fazer no tempo de vida que lhe resta seria tentar ao menos avançar uns duzentos anos na sabedoria e descobrir alguns escritos fantásticos de um famoso Padre português, sobre este tema do Racismo, que eu muito gostaria aqui de identificar, mas para o que infelizmente não disponho do tempo suficiente.

    Se os lesse (e os compreendesse), talvez a calhandreira aprendesse alguma coisa que a elevasse uns bons furos acima do patamar de intolerância vesga onde se hoje se esparrama e merecesse enfim usar condignamente conceitos que obviamente não domina, como acima de todos o de Cristandade.

    Todos nós, aliás, deveríamos ler e reler o Padre António Vieira, esse genial "subversivo", no seu tempo ostracizado da Pátria e hoje dos currículos escolares (pelo Estado Novo) e ainda não devidamente resgatado pela tal suposta "modernidade" de Portugal - que afinal não passa de uma fachada postiça, alimentada entre muitos outros (Marcelo&Padeiro incluídos) por este tipo de "académicos" tacanhos, ignorantes e labregos.

    Talvez porque o P.e Ant.º Vieira, se escrevesse nos dias de hoje, seria também imediatamente conotado como "esquerdalho", no mínimo, pela mentalidade reaccionária dominante no espaço mediático luso (que aliás pensa exactamente o mesmo do próprio Papa Francisco...).

    Porque ele, em pleno Século XVII, atreveu-se a escrever coisas como "a Humanidade negra é mais pura do que a branca e por isso está muito mais próxima de Deus". Isto e muito mais.

    Leiam-no e maravilhem-se.

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  2. Eu contentava-me com o RAP que, mau grado uma visão algo ingénua do que devem ser os limites da Liberdade de Expressão, conseguiu, com o autor que cita, ser aquele que escreveu o melhor texto em resposta a Bonifácio ('Mário Bonifácio, taxista').

    Quando os parvos se apercebem de algo (as falácias de que estava pejado o texto de Bonifácio, desde logo) que escapa aos doutos senhores Vasco Pulido Valente (que nos garante que Bonifácio não é racista porque ele a conhece há 50 anos, azar o nosso que só conhecemos os textos dela), Rui Ramos e aos menos doutos José Manuel Fernandes e João Miguel Tavares, bom, a Direita não pode acusar a Esquerda de falência cultural sem uma boa dose de Hipocrisia.

    Depois do colapso do modelo keynesiano nos anos 70 e do socialismo real no final dos anos 80, são agora as contradições do neoliberalismo que ficam postas a nu.

    Próceres como Fernandes, que defendiam a democratização à bomba no Iraque e o universalismo dos valores liberais, acabam a dar cobertura a quem defende opiniões que não andam longe da tese da grande substituição dos 'cristãos europeus' por outros povos, cara à Extrema-direita, supostamente orquestrada pelo 'capitalismo cosmopolita', mas nós sabemos muito bem a quem esta gente se quer referir (estranhamente Fernandes parece não conhecer tais teses)...

    Manuel Carvalho, que ficou atrapalhado com o texto de Bonifácio, não reparou certamente que há tempos o Público deu espaço a quem disse isto mesmo. Mas como não era ninguém importante, não se ligou...

    Salvou-se à Direita, Poiares Maduro que explicou que a defesa da Liberdade de Expressão não nos obriga a dar um megafone e a estender um tapete vermelho a quem debita banalidades racistas. Para isso é que serve uma política editorial em condições...

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