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17 junho 2019

ninguém vem para nos salvar

O Daniel Carrapa escreveu uma excelente crítica ao discurso do 10 de Junho de João Miguel Tavares, na qual aponta bem o perigo deste tipo de discurso messiânico.
Para memória futura, copio-o integralmente para aqui:

Ninguém vem para nos salvar


Se eu fui o Éder deste 10 de Junho, o Presidente Marcelo foi o meu Fernando Santos – a congratulação em jeito de metáfora futebolística serve de corolário a essa fogueira de mediocridades que foi o discurso de João Miguel Tavares nas comemorações do dia 10 de junho. Um texto em tudo previsível, atabalhoado, feito de ideias avulsas, entre a crónica do meu pequeno ego e a construção narrativa de um Portugal imaginário. De resto está bem salpicado com laivos de populismo de puxar ao sentimento na vã tentativa de ocultar as suas próprias contradições.
Tomemos como termo de comparação o apontamento deixado por João Lopes a respeito do discurso de Jon Stewart no Congresso dos EUA. Sublinha o crítico que não é a emotividade daquele depoimento que o torna notável, mas a precisão das palavras. Refere João Lopes: São momentos em que, também na televisão, voltamos a acreditar no valor primordial das palavras e na precisão que o seu uso pode envolver.

Voltando a João Miguel Tavares vale a pena olharmos para a frase que se tornou mote daquele discurso: Dêem-nos alguma coisa em que acreditar. Eis o que não deixa de ser de um repto pueril feito “aos políticos” para que façam alguma coisa pelo povo; tão mais confrangedor pelo modo como o próprio quase se reconhece como aquele medíocre a quem foi concedida a bênção de poder ir falar às elites. Melhor seria dizer aos Portugueses que ninguém vem para nos salvar. Chega de apelar aos homens providenciais, chega de déspotas esclarecidos que desses já cá tivemos que chegue – e para experiências recentes já nos bastaram os déspotas da troika que bem sabemos o mal que por cá andaram a fazer.

Em boa verdade não faltam coisas em que acreditar. Acreditar numa profunda reforma do sistema económico que permita evitar uma catástrofe ambiental sem precedentes. Acreditar na defesa do nosso modelo social, herdeiro do pós-Segunda Guerra Mundial, que assegurou a paz à maior parte dos países da Europa. Acreditar no combate à desigualdade crescente que corrói a relação entre gerações e ameaça a estabilidade social em que assentam as nossas democracias.
Não faltam coisas em que acreditar e partidos que, de uma forma ou de outra, procuram promover agendas políticas que vão ao encontro desses objectivos.

Acredito pois que o que está aqui em causa é que João Miguel Tavares e os “neoliberalinhos” órfãos do Passismo que ele representa não têm nada em que acreditar. Certo é que se as ideias que eles defendem orientassem a nossa governação estaríamos pior, nestas como em tantas outras áreas da nossa vida comum.

Eis que clamam agora em defesa do “elevador social” – que tanto melhorou no tempo da democracia que gostam de depreciar – mas defendem políticas que repetidamente demonstraram acentuar o fosso da desigualdade e a clivagem entre gerações. Clamam pela defesa da família, mas defendem políticas que potenciaram a precariedade e os baixos salários que tanto adiam e prejudicam a estabilidade da vida familiar.
Clamam assim pelo homem providencial que os salve e os faça acreditar, incapazes de compreender porque é que as ideias que defendem – que tanto ocupam a bolha do comentariado mediático de que fazem parte – têm cada vez menos expressão junto do eleitorado.

Risível é o repto às elites como risíveis são as suas ideias pueris sobre a História. Num dos mais acutilantes exemplos escapa-lhe a dimensão dos “Descobrimentos” enquanto visão narrativa de um passado comum, sem correspondência na complexa e contraditória experiência humana que lhe deu corpo. Uma História sobre a qual podemos hoje ter uma visão crítica porque vivemos em democracia, um sistema que nos permite confrontar, em liberdade, essas narrativas em que foram construídas as exaltações do passado, como assentam tantas vezes as falsidades do presente.

Ninguém vem para nos salvar. Prefiro uma democracia imperfeita, feita de pessoas e partidos imperfeitos, feita de compromissos, de tentativas e erros, à crença em homens providenciais que “venham pôr ordem nisto tudo” e vender o quinto império a reboque de grandes efabulações sobre esse animal mitológico que é o português comum. De resto, João Miguel Tavares bem podia ter feito o seu discurso com um boné encarnado com as palavras “tornem Portugal grande outra vez”.

Não em meu nome.


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