“Porque é que queremos ter #filhos?”, perguntou alguém na Enciclopédia Ilustrada, no dia em que se falou deste tema.
Porque é que quis ter filhos? Nunca me fiz essa pergunta. A questão nunca foi o porquê, mas o quanto, o quantos e o quando. Digam vocês, se quiserem: antes de se decidirem a ter um filho, perguntaram-se o porquê e o para quê?
Um amigo contou-me que, quando conheceu aquela que viria a ser a sua mulher, teve a percepção da presença dos filhos que esperavam por eles os dois para virem ao nosso mundo (espero que nenhuma pessoa do Porto leia a frase anterior, porque já imagino as piadinhas a que pode dar origem). Casaram, ela engravidou, e no sétimo mês de gestação o filho morreu-lhe no ventre. A equipa do hospital foi muito bruta: o corpo já em decomposição foi atirado para um caixote do lixo, sem que os pais tivessem a possibilidade de se despedirem do filho tão amado. Pouco depois surgiu na Alemanha uma iniciativa para lutar contra estes actos desumanos. Os meus amigos não conseguiram superar o trauma deste filho que desapareceu assim da vida deles, e a dor acabou por lhes destruir o casamento.
A Dolto fala da pulsão de vida que estará no âmago do mistério do orgasmo feminino. E eu, que sou do Porto, concluo logo que então o orgasmo múltiplo é sinal de a mulher – mesmo que não o saiba – querer ter muitos filhinhos.
“Muitos filhinhos”, como a Susaninha, que personifica um tipo de mãe fundada no “ter”. Os filhos como capital, a mãe como empresária de sucesso. E mesmo sem mudar de linha lembro as “empresárias de sucesso” do período nazi: as muito apreciadas mulheres que tinham mais de cinco filhos, produtoras dos arianos, fundamentais para a expansão e manutenção de um sistema ideológico tresloucado.
No outro extremo, ou melhor, num universo completamente diferente, está o poema de Khalil Gibran sobre os filhos:
“Os vossos filhos não são vossos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.”
Ou o título de um livro alemão que nunca li, mas cujo título me serviu de bússola: “os filhos são visitas que nos perguntam o caminho”. De facto, é mais que “perguntar o caminho”: os filhos são visitas que nos mostram caminhos que havia dentro de nós e não sabíamos. Lembro, por exemplo, aquelas noites em que um deles chorava por pesadelos ou doença, e eu ia ter com ele com uma sensação de ter sido "a escolhida" - nenhuma outra pessoa no mundo inteiro (excepto, vá, o pai) seria capaz de ajudar aquela criança melhor do que eu.
Tenho a sensação, a convicção, que os filhos já nos nascem prontos. O papel dos pais é não estragar demasiado. Claro que temos de educar (“não comas com as mãos”, “cumprimenta as visitas”, “fala mais baixo para não incomodar os vizinhos”, etc.) mas eles trazem dentro de si o mapa das suas possibilidades. E nós assistimos, maravilhados, a esses caminhos novos que eles desenham e que nos alargam a casa.
Como daquela vez que o Matthias, de cinco anos, parou no passeio para deixar passar pessoas que vinham na nossa direcção, e eu lhe disse que não era preciso parar, bastava chegar-se para o lado. “Parar é mais cortês”, respondeu ele, e eu nem sabia que ele conhecia essa palavra. Ou da outra vez, um ou dois anos mais tarde, quando ele foi limpar a neve da rua e limpou também até à porta do vizinho velhote, que tinha sido muito desagradável com ele. “Então tu limpas a neve desse vizinho que foi mau para ti?!”, perguntei eu, que sou muito rancorosa especialmente quando tratam mal os meus. “Sim, porque gosto de dar uma segunda oportunidade a toda a gente”, disse ele, e acrescentou: “e o que tu acabaste de dizer não é muito cristão.” Ou quando a Cristina começou a fazer baby-sitting com os gémeos da vizinha, e a mãe me perguntou: “que é que a tua filha fez ontem à tarde aos meus rapazes, que estavam tão felizes e equilibrados quando eu regressei a casa?” A Christina explicou-me: “cansei-os”.
Podia ficar o resto do dia nisto. Controlo-me para não contar mais nenhuma história, mas é difícil, porque os filhos são visitas que nos enchem a vida de caminhos novos e de recordações felizes.
--
Na foto: a Christina de dois anos a dar a si própria uma demão de mousse de chocolate, eu descansadinha da vida porque o vestido que levou àquele casamento estava bem protegido por uma bata de pintar, e o Matthias a cinco meses de nos vir mudar a vida para ainda melhor.
Porque é que quis ter filhos? Nunca me fiz essa pergunta. A questão nunca foi o porquê, mas o quanto, o quantos e o quando. Digam vocês, se quiserem: antes de se decidirem a ter um filho, perguntaram-se o porquê e o para quê?
Um amigo contou-me que, quando conheceu aquela que viria a ser a sua mulher, teve a percepção da presença dos filhos que esperavam por eles os dois para virem ao nosso mundo (espero que nenhuma pessoa do Porto leia a frase anterior, porque já imagino as piadinhas a que pode dar origem). Casaram, ela engravidou, e no sétimo mês de gestação o filho morreu-lhe no ventre. A equipa do hospital foi muito bruta: o corpo já em decomposição foi atirado para um caixote do lixo, sem que os pais tivessem a possibilidade de se despedirem do filho tão amado. Pouco depois surgiu na Alemanha uma iniciativa para lutar contra estes actos desumanos. Os meus amigos não conseguiram superar o trauma deste filho que desapareceu assim da vida deles, e a dor acabou por lhes destruir o casamento.
A Dolto fala da pulsão de vida que estará no âmago do mistério do orgasmo feminino. E eu, que sou do Porto, concluo logo que então o orgasmo múltiplo é sinal de a mulher – mesmo que não o saiba – querer ter muitos filhinhos.
“Muitos filhinhos”, como a Susaninha, que personifica um tipo de mãe fundada no “ter”. Os filhos como capital, a mãe como empresária de sucesso. E mesmo sem mudar de linha lembro as “empresárias de sucesso” do período nazi: as muito apreciadas mulheres que tinham mais de cinco filhos, produtoras dos arianos, fundamentais para a expansão e manutenção de um sistema ideológico tresloucado.
No outro extremo, ou melhor, num universo completamente diferente, está o poema de Khalil Gibran sobre os filhos:
“Os vossos filhos não são vossos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.”
Ou o título de um livro alemão que nunca li, mas cujo título me serviu de bússola: “os filhos são visitas que nos perguntam o caminho”. De facto, é mais que “perguntar o caminho”: os filhos são visitas que nos mostram caminhos que havia dentro de nós e não sabíamos. Lembro, por exemplo, aquelas noites em que um deles chorava por pesadelos ou doença, e eu ia ter com ele com uma sensação de ter sido "a escolhida" - nenhuma outra pessoa no mundo inteiro (excepto, vá, o pai) seria capaz de ajudar aquela criança melhor do que eu.
Tenho a sensação, a convicção, que os filhos já nos nascem prontos. O papel dos pais é não estragar demasiado. Claro que temos de educar (“não comas com as mãos”, “cumprimenta as visitas”, “fala mais baixo para não incomodar os vizinhos”, etc.) mas eles trazem dentro de si o mapa das suas possibilidades. E nós assistimos, maravilhados, a esses caminhos novos que eles desenham e que nos alargam a casa.
Como daquela vez que o Matthias, de cinco anos, parou no passeio para deixar passar pessoas que vinham na nossa direcção, e eu lhe disse que não era preciso parar, bastava chegar-se para o lado. “Parar é mais cortês”, respondeu ele, e eu nem sabia que ele conhecia essa palavra. Ou da outra vez, um ou dois anos mais tarde, quando ele foi limpar a neve da rua e limpou também até à porta do vizinho velhote, que tinha sido muito desagradável com ele. “Então tu limpas a neve desse vizinho que foi mau para ti?!”, perguntei eu, que sou muito rancorosa especialmente quando tratam mal os meus. “Sim, porque gosto de dar uma segunda oportunidade a toda a gente”, disse ele, e acrescentou: “e o que tu acabaste de dizer não é muito cristão.” Ou quando a Cristina começou a fazer baby-sitting com os gémeos da vizinha, e a mãe me perguntou: “que é que a tua filha fez ontem à tarde aos meus rapazes, que estavam tão felizes e equilibrados quando eu regressei a casa?” A Christina explicou-me: “cansei-os”.
Podia ficar o resto do dia nisto. Controlo-me para não contar mais nenhuma história, mas é difícil, porque os filhos são visitas que nos enchem a vida de caminhos novos e de recordações felizes.
--
Na foto: a Christina de dois anos a dar a si própria uma demão de mousse de chocolate, eu descansadinha da vida porque o vestido que levou àquele casamento estava bem protegido por uma bata de pintar, e o Matthias a cinco meses de nos vir mudar a vida para ainda melhor.
Nunca me ocorreu fazer essas perguntas, mas a pergunta que sempre fiz, ainda no tempo em que não queria ter filhos, depois quando passei a querer e ainda hoje que eles já cá estão, e que me vai acompanhar toda a vida é "Que raio de mundo vão ter eles para viver?" Sempre foi o meu maior problema e sempre irá ser....
ResponderEliminarTambém há a questão de ter a certeza que não fazemos, nós os pais, tanta asneira que lhe damos cabo do futuro.
Bonitos momentos de Natal. Tenho uma colega, já reformada, que diz muitas vezes que os piquenos não saem às pedras da calçada.
«Tenho a sensação, a convicção, que os filhos já nos nascem prontos. O papel dos pais é não estragar demasiado» - que maravilha!
ResponderEliminar(e eu que nem sou mãe).
Paulo, também penso muito nisso.
ResponderEliminarA minha filha dizia-me, há tempos: vocês andaram a dormir, e agora a minha geração vai ter imenso trabalho para corrigir os vossos erros.