[ A quem interessar possa: o grupo de amigas da antiga bloga, que todas as semanas escreve sobre um tema determinado, continua vivo e de boa saúde. Eu é que andei pela Berlinale, e depois pelas eleições alemãs, e mais isto e mais aquilo, e só agora regresso. Esta semana, o tema é "coração lavado". ]
Aquela sensação de coração lavado com que uma pessoa saía da confissão, em criança, aquela leveza feliz: quem mais conhece?
Abençoado ópio do povo, que tão boas sensações me dava! Implicava trabalho, também: percorrer a lista de pecados de um missal da minha avó, anotar os que tinha cometido, ter cuidado para os meus irmãos não descobrirem a minha listinha, ter cuidado para não a perder, decorá-la com afinco antes de ser a minha vez no confessionário, dizer o acto de contrição e começar a debitar: não obedeci aos meus pais, bati nos meus irmãos, não devolvi um livro que me emprestaram. Depois os pais nossos e as avés marias que tivesse de ser, e ala para a rua e para o sol, livre de culpas. Não que os meus pecados tivessem andado a pesar-me muito, mas saía da confissão de coração lavadíssimo.
Até que, um pouco mais velha, apareceu na minha lista um pecado novo: "pequei contra a castidade". E o padre, logo: "sozinha ou acompanhada?"
Queria saber tudo. Nem sequer era novidade para mim, porque no livrinho da minha avó também havia sub-alíneas sucessivas: "sozinho ou acompanhado", "com homem ou com mulher", etc. Mesmo assim, dessa vez saí do confessionário com o coração sombrio, como se o confessor mo tivesse conspurcado.
E nunca mais lá voltei.
Excepto muitos anos mais tarde, com padres que sabia serem pessoas sérias, adultas e responsáveis. No tempo em que a confissão passou a ser uma conversa libertadora, mas não me lavava o coração - nem era preciso. Entretanto, já me habituara ao mistério e às dúvidas, ao espinho dos erros cometidos agarrados a mim como uma segunda pele a lembrar-me o mal de que sou capaz, a dizer-me para ter cuidado. Já me habituara a este coração que nunca conseguirei lavar tão branco como no tempo inocente das primeiras confissões. Este coração com manchas que nem a corar ao sol desaparecem: a vida.
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