Este texto sobre os vários 9 de Novembro da Alemanha foi publicado no 7 Margens em Novembro de 2018. Para minha memória futura, publico-o aqui agora por extenso:
A queda
do muro de Berlim (em 1989), que deu origem ao processo de reunificação
da Alemanha dividida após a Segunda Guerra Mundial, seria a melhor das
razões para fazer do dia 9 de Novembro o feriado nacional alemão. Mas o 9
de Novembro está também marcado pela terrível sombra do pogrom nazi de
1938, pelo que a data escolhida para o feriado nacional acabou por ser o
3 de Outubro, dia da entrada oficial dos cinco Estados da RDA na
República Federal da Alemanha.
O que há numa data?
Para além do pogrom nazi e da queda do muro, esta data está marcada por outros acontecimentos históricos importantes:
– 9 de Novembro de 1848: a execução de
Robert Blum em Viena marcou o início do fim da Revolução de Março nos
Estados alemães (que exigia – entre outros – uma Constituição para
limitar o poder monárquico, a extinção dos laços que mantinham os
agricultores presos aos senhores das terras, e mais direitos para os
trabalhadores);
– 9 de Novembro de 1918: proclamação da
República em Berlim (levando ao fim da Primeira Guerra Mundial, que
desembocou tragicamente no tratado de Versalhes e na criação do contexto
dramático que permitiria a ascensão dos nazis);
– 9 de Novembro de 1923: golpe do Hitler,
em Munique, com o objectivo de tomar o poder e instalar uma ditadura
nacionalista; o golpe falhou, o partido NSDAP foi proibido, Hitler foi
condenado a cinco anos na prisão, aproveitou esse tempo para começar a
escrever Mein Kampf, e dez anos depois estava a tomar o poder por via
democrática.
Pelo que retomo a questão de fazer do 9 de
Novembro o feriado nacional alemão: haveria algo de extraordinariamente
inovador num feriado nacional que lembrasse tanto os feitos gloriosos
como as vergonhas e os passos em falso da História – porque os países
são feitos de tudo isso: glória, fracasso e vergonha.
O que há num nome?
Há apenas oitenta anos (já as minhas avós
eram adultas, já os meus pais começavam a frequentar a escola) os nazis
organizaram um ataque contra os judeus em toda a Alemanha. Para dar a
aparência de uma certa legalidade, mascararam o ataque de “fúria
popular”. Os paramilitares iam vestidos à civil, e Goebbels fez saber
que a polícia não impediria os populares de darem livre curso à sua
fúria justificada pelo recente assassinato de Ernst von Rath, em
Paris. Por seu lado, as ordens dadas às SA eram muito claras: deitar
fogo às sinagogas apenas se não houvesse a possibilidade de alastrar a
outras casas; destruir as lojas dos judeus mas não permitir que fossem
pilhadas; cuidar da segurança das lojas dos não judeus.
O ataque foi realizado com toda a
eficiência, e permitiu testar a população alemã: ao assistir sem nada
fazer, mostrou que permitiria acções ainda mais violentas contra os seus
vizinhos judeus.
Durante décadas chamou-se a este ataque
“Noite dos Cristais”. O nome resultou naturalmente dos montes de vidros
espalhados pelos passeios das cidades (que no dia seguinte, em mais um
sinal do cinismo do regime, as vítimas foram obrigadas a remover, porque
“dava mau aspecto à rua”), e assim foi usado de forma acrítica até aos
anos oitenta do século passado.
Só nessa altura surgiu o debate que
alertava para o eufemismo e até a glorificação do feito subjacentes à
expressão “Noite de Cristal” ou “Noite dos Cristais”. Ainda hoje não há
acordo sobre o nome correcto a dar a este momento, e é lamentável,
porque se trata de uma fenda na História da civilização europeia. Alguns
nomes propostos: Noite do Pogrom do Reich, Noite do Pogrom de
Novembro.
Por mim, seria este: Noite do Pogrom Nazi.
Erich Kästner, jornalista e escritor,
testemunhou assim os acontecimentos da noite de 9 para 10 de Novembro de
1938 no Kurfürstendamm (a avenida mais importante da abastada parte
ocidental da cidade):
Naquela noite apanhei um táxi para
regressar a casa, que me levou pela Tauentzien e pelo Kurfürstendamm.
Dos dois lados da rua havia homens que batiam com barras de metal nas
montras das lojas. Por todos os lados o vidro quebrava e espalhava-se em
estilhaços. Eram homens da SS, com calças de montar pretas e botas de
cano alto, mas com chapéu e casaco à paisana. Faziam o seu trabalho
calma e sistematicamente. Dava a impressão que cada um estava
encarregado de quatro ou cinco casas. Levantavam a barra de ferro,
batiam várias vezes e avançavam depois para a montra seguinte. Não se
viam outras pessoas na rua. Só mais tarde, contaram-me no dia seguinte,
terão aparecido serventes de bar, empregados de mesa nocturnos e
prostitutas, para saquear as lojas.
Três vezes fiz parar o táxi. Três vezes
quis sair do carro. Três vezes surgiram de trás de uma árvore agentes da
polícia que me deram ordens peremptórias de voltar a entrar no táxi e
continuar a viagem. Três vezes lhes retorqui que ainda posso sair de um
carro quando me apetece, e particularmente num momento como este, quando
em público se praticam – passe o eufemismo – actos impróprios. Três
vezes disseram com maus modos “polícia judiciária!”. Três vezes bateram a
porta do carro. Quando quis parar pela quarta vez, o condutor
recusou-se. “Não adianta”, disse ele, “e além disso está a resistir à
autoridade do Estado!” Só parou quando chegámos à minha casa.
(Erich Kästner: Notabene 45. Ein Tagebuch, Frankfurt/M 1983, Pg.140)
9 de Novembro de 1989
Pouco haverá a acrescentar para quem – como
quase todos nós – assistiu à História em directo pela televisão. Pelo
que me limito a dois relatos que ouvi a mulheres que conheci em Weimar,
cidade da antiga RDA, no dia em que a pergunta foi “onde estavas no 9 de
Novembro?”
– Naquela noite, estava num restaurante com
a minha família. Era o jantar de despedida do meu irmão, que tinha
conseguido um visto para abandonar o país. Estávamos todos muito
tristes, porque não tínhamos a menor ideia do que seria a vida dele na
Alemanha Ocidental e de quando nos poderíamos voltar a encontrar. Às
tantas, um empregado chegou à nossa mesa cheio de pressa para pagarmos o
jantar porque se queria ir embora, e anunciou “abriram a fronteira!”
Nós respondemos-lhe que a última coisa de que precisávamos era de gracinhas de mau gosto.
– Não me dei conta de nada nessa noite. No
dia seguinte, na universidade, alguém contou que tinha andado a passear
no Kurfürstendamm. Eu ouvia a história, à espera do momento em que viria
a frase “e estendi a mão e bati na mesinha de cabeceira”, mas nunca
mais vinha. Até que me dei conta que era verdade. Corri para uma rua que
me tinham indicado, reparei pela primeira vez que nessa parte do muro
havia uma porta, e que estava aberta. Juntei-me ao grupo enorme dos que
queriam passar. Eram tantos, que os meus pés quase não tocavam o chão.
Os guardas já nem se davam ao trabalho de olhar para os passaportes. Mas
o tempo todo eu temia que fechassem a porta mesmo à minha frente. Algo
tão fantástico não poderia tornar-se verdade. Finalmente consegui
atravessar a fronteira, e passei o resto do dia a entrar em lojas de
florista para ver e cheirar todas aquelas flores que não conhecia.
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