Ultimamente tenho pensado muito numa história que ouvi a um antigo prisioneiro
de Robben Island. Fora levado para a ilha já numa fase final do apartheid, e participou nas últimas
greves da fome que alguns prisioneiros jovens fizeram nessa época, para exigir a melhoria das condições de vida na prisão. Se
bem me lembro, exigiam água quente no duche e outros
confortos semelhantes. Os prisioneiros mais antigos discordavam dessas
iniciativas, e criticavam-nos imenso por estarem a desprestigiar algo
tão sério como uma greve da fome por motivos que lhes pareciam ridículos. Os mais velhos - que tinham lutado para ter água doce em vez de água do mar nos duches, para ter uma cama em vez da esteira de sisal no chão, para acabar com a lista de alimentos e calorias do menu prisional conforme a cor da pele - afirmavam que a greve é a última medida à qual se deve recorrer, e apenas por motivos realmente fortes. Caso contrário, diziam, retira-se seriedade e prestígio a esse instrumento de luta.
Há cerca de quarenta anos, em Robben Island, debatia-se a essência e a função da greve. Em Portugal, pelo contrário, aceitámos há décadas a realização de greves por motivos abertamente políticos, muito além dos laborais, como sendo um facto
normal e indiscutível da vida democrática. Prova recente disso é o argumento que mais vezes li nas redes sociais na semana passada: "quando a greve é contra um governo de Direita não dizem nada, mas quando é contra um governo de Esquerda..."
Esta prática, que já é questionável na medida em que ameaça o princípio democrático da governação escolhida por sufrágio universal, torna-se ainda mais arriscada perante os dois fenómenos a que temos assistido nos últimos anos e não podemos ignorar: o surgimento de sindicatos independentes de contornos pouco claros, e a
ameaça real de desestabilização da política europeia por parte da Rússia
e de movimentos internacionais de extrema-direita como o de Bannon (veja-se a análise de Boaventura Sousa Santos). Chegados a este ponto, temos obrigação de reconhecer o enorme potencial de uma greve para atingir e destruir o funcionamento democrático de um país, e temos de saber agir em conformidade.
De que falamos quando falamos de greve, e quando defendemos o direito inalienável à greve, independentemente dos seus motivos? Referimo-nos apenas à justa luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e de salários, ou entendemos que, mesmo numa Democracia, esse direito laboral deve poder ser usado para jogadas políticas? Não vemos qualquer problema no poder de um pequeno grupo de
trabalhadores para se sobrepor à vontade do povo expressa nas urnas eleitorais? Defendemos
também que numa greve vale tudo, inclusivamente dificultar
gravemente a vida aos cidadãos, usando-os como reféns e peça-chave da
estratégia para atacar o governo? Queremos fechar deliberadamente os olhos à eventualidade de um pequeno grupo de trabalhadores com o poder de paralisar um país ser manipulado por obscuros interesses internacionais com o objectivo de influenciar o processo eleitoral ou a governação?
Eu, não.
Começando pelos motivos: há greves que não suscitam a menor dúvida quanto à justeza das reivindicações - como foi por exemplo a greve das tripulações da Ryan Air, em plena época do Natal, sem que alguém se lembrasse de lhe atribuir objectivos de ordem política. Essas greves merecem a nossa defesa incondicional.
Já no caso actual da greve dos condutores de matérias perigosas, alguma coisa correu muito mal: uma greve para obter um nível de remunerações mais que justificado, como parece ser esta, foi imediatamente entendida por muitos como uma tentativa de desestabilização política ("...quando a greve é contra um governo de Esquerda..."). Só um sindicato inacreditavelmente incompetente conseguiria deixar uma luta laboral tão justificada descarrilar para este ponto de descrédito. Não sei o suficiente sobre o conflito e o modo como o sindicato o conduziu (alguém sabe?) para poder fazer afirmações sobre a existência ou não de um objectivo político de desestabilização. Mas o simples facto de se falar abertamente dessa hipótese confere a esta greve uma qualidade - ou pelo menos uma potencialidade - que impede a defesa cega do direito à greve como se fosse uma questão simples de Direito do Trabalho.
Uma segunda questão prende-se com os meios usados. Limitando a análise às greves por motivos exclusivamente laborais, pergunto quando é que o alvo deste instrumento de pressão nos conflitos do trabalho se deslocou do empregador para os cidadãos, e por que motivos se considerou esta alteração aceitável. Tanto mais que se cria uma distorção grave entre os trabalhadores dos diferentes sectores, dado que o poder de negociação varia conforme o grau de sensibilidade do respectivo sector económico, e surgem tensões entre a sociedade em geral e os grevistas, tensões essas que a longo prazo não servem a causa dos direitos laborais.
Tenho a certeza que é possível fazer greves eficazes que atinjam o empregador em vez dos cidadãos, ou, melhor ainda, que transformem o prejuízo do empregador em ganho para os cidadãos. Algumas sugestões, sem pensar muito:
- as greves das companhias aéreas não têm de ser feitas na época de Natal: se as tripulações adoptarem comportamentos de zelo - obsessivo e excessivo, mas de algum modo justificável - que na sua soma provoquem atrasos de mais de 3 horas, a empresa vê-se obrigada a pagar centenas de euros a cada um dos passageiros, bem como a uma onerosa sobrecarga logística para dar resposta a inúmeros problemas sem importância;
- as greves dos transportes públicos podem ser feitas sem interromper os serviços, mas simplesmente deixando de cobrar o pagamento da viagem (e avisando sobre a greve com antecedência, para as pessoas planearem a compra dos passes mensais);
- as greves dos condutores de camiões podiam jogar-se ao nível da facturação: entregar a mercadoria mas criar mecanismos que impeçam a respectiva facturação até à resolução do conflito laboral.
Em certos sectores será mais difícil encontrar soluções de greve que atinjam directamente os interesses do empregador em vez dos interesses dos cidadãos. Mas já seria uma grande conquista se houvesse ao menos vontade de repensar os alvos preferenciais, bem como de questionar criticamente os processos de negociação e os motivos últimos do recurso a este instrumento de luta.
Os mais antigos prisioneiros políticos de Robben Island, que passaram décadas naquela prisão, sentiam ser seu dever lutar contra o abuso da greve, para lhe proteger a seriedade e o prestígio. Deixaram um exemplo que nos obriga a questionar o uso, os objectivos e as consequências das greves que se realizam no nosso tempo.
Não tendo, eu, certezas nenhumas no mundo de "fake news" e de instrumentalização de informação em que me vejo cada vez mais enterrado, atrevo-me a sugerir alguns elementos alternativos para a discussão: pessoalmente, de tudo o que se tem dito sobre o assunto, começaria por descontar o artigo do Boaventura Sousa Santos, que apresenta uma vulgaríssima teoria da conspiração, perfeitamente infundamentada, misturando episódios que não creio que tenham que ver uns com os outros. Sobre a greve dos camionistas de matérias perigosas: a reivindicação essencial (que o que ganham seja declarado na totalidade, para que possam ter direito a receber pensões condignas) não me parece semelhante a fazer-se "uma greve por água quente", se entendi a analogia. Por outro lado, pergunto-me até que ponto é que a "utilização política da greve" não é sobretudo o que o PS (e a imprensa em parte manobrada pelo PS) e o PC (contra esta greve, por não ser orquestrada pela CGTP) querem dar a entender - o que explicaria, também, por que razão o sindicato destes camionistas, independente e inexperiente, teria sido incapaz de evitar que essa imagem passasse para os cidadãos. Fomos bombardeados com uma mesma versão em todos os telejornais. Claro que o sindicato foi confuso, e esse cromo, que é o Dr. Pardal, não é pessoa recomendável nem ajudou à clareza da situação. Mas também me pergunto se, a não ser excepcionalmente, uma greve pode não atingir os cidadãos. Pessoalmente, tive muitas dúvidas, como professor, perante a proposta de fazer greve às reuniões de notas, prejudicsado a vida de muitos alunos que se iriam candidatar à Universidade. E no entanto, menos do que algo com esse impacto não surtiria qualquer efeito. Em tudo isto, parece-me de salientar que a resposta do governo foi descabida e, sim, um acto de pura demagogia, que abre um precedente grave.
ResponderEliminarEstendi-me de mais, peço desculpa. Talvez não valha a pena publicar.
Obrigado por ler.
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ResponderEliminarOlá José Pacheco,
ResponderEliminarobrigada pelo comentário. Apaguei o segundo, que era apenas uma repetição.
Não acompanho o Boaventura Sousa Santos em tudo o que diz, mas penso que é importante lembrar que "eles andam aí". Não tenho dúvida nenhuma de que estão a tentar desestabilizar a Europa a favor da extrema-direita.
Longe de mim desprezar os motivos (enfim, a parte que entendi...) desta greve. De facto, nem sequer queria desprezar os motivos das greves dos prisioneiros mais jovens em Robben Island. Falei disso como exemplo da possibilidade e da necessidade de questionar as motivações e a prática das greves, porque me parece estranho que tantos defendam esta greve e critiquem o governo como se estivesse fora de causa criticar e repensar o uso que se faz deste instrumento.
Sinceramente, não entendo como é que reivindicações que me parecem tão justas se transformam na confusão que vimos, e pergunto:
- Que respeito merece um sindicato que gere de forma tão confusa os motivos para ir para uma greve que tem o poder de paralisar o país?
- Como é possível todos os noticiários servirem a mesma versão dos factos? É credível que todos os meios de comunicação social estejam a ser manipulados pelo governo?
- Porque é que lhe parece que a resposta do governo foi um acto de pura demagogia?
Sobre usar os cidadãos para pressionar o empregador: em minha opinião, essa devia ser a excepção, depois de excluídas todas as possibilidades, e não a regra.
O governo mostrou menos preocupação com as negociações (e sim, é verdade que o rosto visível da Antran foi o de um jovem do PS, o que não é proibido, claro, mas que ocupou cargos importantes, o que já permite questionar-se a independência política da empresa), menos preocupação com as negociações, dizia eu, do que em tratar a greve como um combate a vencer. Tratou-se de denegrir o sindicato por todos os meios, profetizar até à histeria as consequências de uma greve apresentada como profundamente maléfica e esmagá-la em todas as frentes. Perante a insatisfação e o pânico dos cidadãos, pareceu-me o aproveitamento da greve para o governo sair habilmente como o salvador da Pátria. Ou seja, é verdade que o sindicato contou com a proximidade de eleições como forma de pressionar o governo (não necessariamente para tirar proveito político, embora talvez também...); e António Costa largou a cavalaria com intuitos políticos perante potenciais eleitores mais à Direita. Será uma leitura possível?
ResponderEliminarÉ uma leitura possível.
ResponderEliminarE volto ao meu desafio: se as greves fossem resolvidas entre patrões e assalariados, sem usar a população como refém, as coisas ficavam mais simples, e não havia lugar para leituras tão divergentes.
ResponderEliminarEnquanto, nos jornais nacionais, o Prof. Boaventura Sousa Santos descobre finalmente que Mário Nogueira tem desempenhado o papel de idiota útil e, nas ditas "redes sociais", os Cidadãos discutem seriamente o direito à greve, no mundo real, o Sr. Dr. Pedro Pardal Henriques - Sindicalista moderno, esclarecido e muito honrado -, entre uma voltinha de «Maserati» e um "raid" de trotineta eléctrica descobre uma insuspeitada vocação política (quem o diria?) e voilà, decide candidatar-se à Assembleia da República já nas próximas Legislativas!
E eu para aqui, feito idiota inútil, a pensar que ele planeava era tirar enfim a Carta de Pesados e arranjar emprego como Motorista...
Oh pá, não me faças rir, que o assunto é muito triste!
ResponderEliminar(Obrigadinha pela gargalhada)