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01 julho 2019

no comboio descendente

No comboio de regresso a Berlim, o homem sentado no lugar ao lado do que eu tinha reservado ia em posição de lótus, e de olhos fechados. Estava a contar com o meu lugarzinho à mesa e à janela, à frente do Joachim, mas para não incomodar aquele passageiro sentei-me num outro lugar que estava livre. Daí a nada ele desperta do transe e vira-se para o grupo de quatro mulheres na mesa do outro lado do corredor:
- Podem parar de falar? Nem com tampões nos ouvidos consigo escapar a esta barulheira! Estão aí a palrar o tempo todo, incomodam a carruagem inteira!
- Não é proibido falar no comboio!, responde uma delas.
- Esta carruagem é a do silêncio!, insistiu ele. Calem-se de uma vez por todas!
- Não se pode telefonar, mas pode-se falar!, teimava a outra.
O Joachim não ouviu nada, porque estava a trabalhar num artigo e a ouvir música com os phones. A rapariga ao lado dele estava tão incomodada como eu, e meteu-se na conversa:
- Atenção! A mim não me incomodam nada! Podem falar quanto quiserem.

Quem exige tanto dos outros não merece ser poupado, pensei eu. Levantei-me, fui ter com ele e pedi para me deixar passar para o meu lugar. Desfez o lótus, arrumou o saco dele, eu sentei-me à janela e ele sentou-se com os pés no chão, como todos os outros passageiros. E foi então que eu me dei conta de toda a obscenidade do que tinha acontecido uns minutos atrás: duas das quatro mulheres sentadas à mesa, ao nosso lado, tinham deficiência mental. O homem atrevera-se a ser desagradável com deficientes e as suas acompanhantes.

Disse ao Joachim para tirar os phones, e contei-lhe o que tinha acontecido. Em voz relativamente baixa e em português, falámos quanto nos apeteceu. Depois rimos, mostrámos fotos no telemóvel. Como se estivéssemos na nossa sala de estar.

Nunca me fiz tão gorda num transporte público como naquele comboio ontem. Nunca fui tão fria e antipática com uma pessoa sentada ao meu lado. E de cada vez que ele pegava na garrafa de água entre o assento dele e o meu e tocava inadvertidamente na minha perna eu franzia o sobrolho com o ar empoderado de #metoo e de "você está-me a incomodar!"

Quando ele saiu da carruagem por uns momentos, começámos todos a falar:
- Inacreditável!, disse eu.
- E a si é que ele não se atreveu a mandar calar!, respondeu uma das mulheres, e acrescentou: estive quase a chamar o guarda do comboio para o meter na ordem.

(Tem graça: nunca me ocorreu que fosse pessoa de impor respeito seja a quem for. E muito menos na Alemanha, onde me atribuí uma espécie de carta marcada por ser estrangeira. Talvez tenha chegado a altura de repensar quem sou neste país, em vez de me remeter por tique crónico a uma posição de low profile.)

E assim foi a viagem: um homem a passar quatro horas de incómodo, rodeado por pessoas que lhe tinham desprezo e não tinham a menor intenção de lhe oferecer sequer uma simpatia de anónimos.

Foi merecido. Mas depois destas coisas fico sempre a pensar que falhei, porque não fui capaz de encontrar a palavra certa que desarmadilhasse a situação e permitisse que todos se olhassem com respeito mútuo e de cabeça levantada.


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