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04 junho 2019

a minha vida dava um filme

Passei o domingo inteiro a tratar do jardim (pouco se nota, snif snif), tentando acabar o trabalho depressa para ir levar rosas a uma amiga que fazia anos nesse dia. Ora bem: um jardim é como uma tradução, nunca está terminado. Já passava das sete da tarde quando finalmente tomei o duche, cortei as rosas e me pus a caminho da casa dela. A ideia era dar as rosas, dar um beijinho, e pôr-me a andar. Mas o marido, que veio à porta, fez questão de me encher um copo de vinho e me mandar ter com o grupo de amigas sentadas na mesa ao fundo do jardim, junto ao lago.

(Ainda me arrisco a escrever uma autobiografia chamada "o emplastro acidental".)

Foi mais um daqueles momentos "a minha vida dava um filme": daí a nada estava a ouvir histórias incríveis àquelas mulheres. A que trabalha na televisão e ainda tem o George Clooney e o Brad Pitt na sua bucket list de maquilhagem, mas já fez a máscara do Obama (que no fim lhe deu um aperto de mão e agradeceu o trabalho). A que vejo muitas vezes com carros de colecção (tantos, que às vezes nem se lembra em que carro veio nem onde o estacionou) começou a contar que um pouco antes do Verão de 1989 tentou fugir da RDA, com o então marido e o filho bebé, pela Embaixada da RFA em Praga. Ao fim de alguns dias, os funcionários da Embaixada disseram-lhe que teria de regressar a casa, e daí a levariam para fora do país. Regressaram, reencontraram os pais que - para defesa deles - não tinham sido informados das intenções de fuga e de repente depararam com a ausência na casa muito bem arrumada e com os cestos dos papéis vazios (um clássico dos que fugiam: a casa impecável, por bem saberem que seria passada a pente fino). Passou as semanas seguintes aterrorizada, sempre à espera do momento em que a Stasi viria tirar-lhe o filho para ser educado por uma família leal ao regime. Finalmente, informaram-nos que tinham 24 horas para deixar o país, e que não podiam levar nada com eles. As poupanças, o carro, os objectos pessoais: ficou tudo. Mas puderam sair com o filho. 

(Eu a ouvir, e a pensar que a RDA os tratou como os nazis trataram os judeus que conseguiram escapar do país, e a olhar para o lago lindíssimo, os cisnes que passavam, o grou na outra margem, as copas das árvores centenárias, algumas delas plantadas por famílias de judeus que não sei se conseguiram fugir a tempo: quantas realidades paralelas se juntam a uma mesa de jardim?)

Outra amiga da roda contou que o muro a separou da avó, que vivia na RFA. Os pais dela meteram os papéis para sair do país, dizendo que se queriam juntar à família no ocidente. Dois anos depois, ela e o marido fizeram o mesmo pedido, e começou um martírio: várias vezes por mês eram convocados para ir prestar declarações à Stasi. Ela bem queria ir com o marido, por temer que a mais pequena contradição lhes fosse fatal, mas estava fora de causa. Várias vezes por mês iam separadamente ao interrogatório, sem saber se conseguiam regressar a casa, ou se se iriam juntar aos outros presos políticos. Ao fim de três anos, conseguiram autorização para sair. Um alívio, e também uma preocupação: que seria dos pais dela, que esperavam já há cinco anos? A autorização para estes veio umas horas depois, um último sinal do prazer sádico que o regime saboreava até ao limite. Saíram em Agosto de 1989. Três meses depois, quando o muro caiu, a primeira sensação foi de despeito: "então sofremos nós tanto para conseguir isto que eles agora recebem de mão beijada?!"

E depois a conversa mudou. Falaram de uma academia para cabeleireiros onde se consegue pintar o cabelo de graça e "mesmo quando sai um pouco mais cor-de-rosa ou laranja não tem mal, porque a cor se esbate ao fim de algumas semanas", além de que "nunca calhou de ficar verde". E da TºKºMax de Alexanderplatz que "tem as coisas mais interessantes, porque a clientela habitual tem gostos muito conservadores e só compra o que não interessa".

Alexanderplatz foi o palco da histórica manifestação de (segundo dizem) um milhão de cidadãos da RDA, no dia 4 de Novembro de 1989. Convocada por vários teatros de Berlim Leste, foi a primeira  manifestação autorizada pelo regime sem ter sido por este organizada. Exigia-se o fim da violência, a respeito pelos direitos constitucionais, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e a liberdade de reunião. Mais Democracia, em suma. Cinco dias depois, o muro caía. Trinta anos depois, pessoas que sofreram horrores para conseguir escapar ao regime de Berlim Leste vão a Alexanderplatz comprar sapatilhas de lantejoulas de uma marca cara, vendidas a preço de pechincha. Se a minha vida dava um filme, a delas dava um bom par de livros.

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