05 dezembro 2021

tudo está bem quando acaba bem



Hoje, por ser domingo e eu também ser gente como a outra gente, fiz um intervalo na maratona de tradução em que me meti, para dar um saltinho com uns amigos ao Flohmarkt da avenida 17 de Junho. O Joachim andava à procura da senhora que faz écharpes lindíssimas, e eu andava por lá com o ar do costume (que é assim: varrer as tendas com olhos de scanner para identificar a toda a velocidade alguma coisa que me interesse, e depois, quando encontro alguma coisa que me interessa, começar a eterna ladainha de mim para comigo, "não precisas", "onde vais pôr?", "deixa ficar", "fica para a próxima") - quando de repente os meus olhos ficaram hipnotizados por um quadro com uma luz lindíssima. (E agora não me chateiem com a luz de Lisboa, e do Alentejo, e assim, também há coisas lindíssimas ó pra cá da serra da Estrela.)

Já andava de olho naquela luz desde que vi um quadro de um finlandês na casa de um amigo que usa a sua própria residência como galeria de exposições. Expõe os trabalhos dos artistas, e em troca recebe uma das peças. Ora bem, assim também eu! Da próxima vez que fizer uma casa, faço-a com menos vidro, para sobrarem algumas paredes para expor. Ai, espera! As paredes de vidro são óptimas para expor esculturas, se calhar podia começar uma colecção de esculturas em vez de pintura... (Já me estou a afastar do tema, e ainda agora comecei o post.)

Custava 30 euros. Pareceu-me demasiado barato para aquela luz, e desconfiei que seria cópia, reprodução... O vendedor dizia "eu sei lá o que isso vale", e fiquei sem saber se me estava a enganar, ou se era eu que o estava a enganar a ele. Comprei, e continuei o passeio pelo mercado toda orgulhosa daquele bocadinho de luz nórdica que levava pela mão. (Que levava pela mão a iluminar-me o cinzentíssimo dia que hoje aconteceu em Berlim.)

Mais à frente encontrámos uma peça muito especial - um "gira-discos" do final do século XIX com discos de metal, semelhante ao do filme que partilho a seguir. Mas desta vez a ladainha ("não precisas", "onde vais pôr?", "deixa ficar", "fica para a próxima") funcionou. Deixámos ficar. Talvez por custar um bocadinho mais do que 30 euros, ou talvez porque o disco que puseram a tocar tinha uma música tristonha e sem brilho, que não nos convenceu. Mas se calhar, no próximo fim-de-semana...
(Ai, agarrem-me!)


Perto das últimas barracas encontrámos os amigos, que olharam para o meu quadro lindíssimo e fizeram cara de "bem... enfim...". Vacilei um bocadinho, reconheço. (A sorte deles é que lhes estou muito grata por em tempos nos terem ensinado a apanhar marisco numa super maré baixa da Bretanha, de modo que me limitei a voltar para mim o quadro que até então levara orgulhosamente virado para o mundo, e mudei de assunto.)

Em casa, fui à internet pesquisar o Th. Graae da assinatura. Ora bem: Thomas Graae é um pintor nascido em Fjerritslev - tão ao norte da Dinamarca que mais um bocadinho e nascia na Noruega (daí aquela luz, claro!).
E o extraordinário detalhe: nasceu a 5 de Dezembro de 1897 - fazia hoje 124 anos! (Ele há coisas!) (Se calhar comprava um bilhete da lotaria hoje.) (E voltava à 17 de Junho na próxima semana, por causa do tal gira-discos) (Ai, agarrem-me!) ("Não precisas", "onde vais pôr?", "deixa ficar", "fica para a próxima")

Li aos meus amigos bretões a biografia do artista, num francês cheio de entrelinhas que diziam "et maintenant, prenez et embrulhez!"
Eles reconheceram imediatamente que tinham visto uma luz especial naquele quadro desde o princípio. De modo que, no fim, quem se vai lixar vai ser o marisco bretão, porque já nos estou a ver de novo de calças arregaçadas, ponchos da chuva e olhos de scanner a varrer a areia sob a água rasa de uma baía perto de Roscoff.

Tudo está bem quando acaba bem. (Excepto para o marisco bretão.)


1 comentário:

IreneA disse...

Os dois dedos formaram mais de palmo, mas interessantes, sigo na insônia.